terça-feira, julho 06, 2004

Tricksters


Quase todas as civilizações possuem, entre seus mitos e contos populares, um personagem que assume o papel de trapaceiro, o qual se diverte em pregar peças – em inglês, tricks, de onde o termo tricksters adotado pelos estudiosos -, semear a discórdia e, com freqüência, desafiar não apenas as leis e a moral estabelecida pela sociedade, mas também o poder dos deuses. Algumas vezes, o personagem é apenas um tipo brincalhão, que quase sempre termina em desgraça, assumindo características semelhantes às dos pícaros (vejam o artigo sobre Literatura Picaresca!); em outras, pelo contrário, ele assume o papel de um herói cultural, desafiando a ira divina a fim de conquistar algo anteriormente vedado aos homens. Dessa forma, pode-se pensar em Prometeu como numa espécie de trickster, embora o roubo do fogo, tal como ocorre na lenda grega, tenha sido um ato de heroísmo; Ulisses com seu cavalo de Tróia age com a astúcia de um trickster, enquanto Hermes, embora seja contado entre os deuses, é um tipo acabado de trapaceiro.

Não muito diferente, apesar de mais complexo, é Loki Laufeyjarson, o trickster dos povos nórdicos. Segundo a tradição encontrada nos Eddas –que se constituem na principal fonte de conhecimento sobre a mitologia escandinava – , Loki é aparentado com os gigantes do fogo, inimigos mortais dos Aesir, os deuses guerreiros liderados pelo não menos complexo (e trapaceiro) Odin; entretanto, os dois têm um pacto de sangue, e Loki é visto em várias ocasiões auxiliando os Aesir a saírem de situações difíceis... algumas das quais, é verdade, foram criadas por ele mesmo.

Enquanto Loki, assim como outros trapaceiros, possui um lado sombrio e destrutivo – a partir de um certo ponto, ele trabalha deliberadamente contra os Aesir, o que o leva a um castigo pior que o de Prometeu -, há tricksters cujas histórias são apenas engraçadas, embora muitas vezes possam conter um ensinamento ou um ponto destinado à reflexão. É assim, por exemplo, com a história africana de Exu (alguém conhece, aqui no Brasil? hehehe), que saiu com um chapéu de duas cores para provocar a discordância entre vizinhos que o viam de ângulos diferentes. Também os contos de outro trapaceiro da África, o Coelho, que foi imortalizado na América através do “Br´er Rabbit” de Joel Harris e que, mais tarde, serviria de inspiração para a criação do rematado trickster que é Bugs Bunny (o nosso conhecidíssimo Pernalonga).

Por sua vez, o obstinado Wile E. Coyote foi inspirado no mais conhecido dos tricksters norte-americanos (também existem, entre outros, o Corvo, a Aranha e o Homem-Esqueleto, cada um com seu próprio ciclo de histórias). Trata-se, naturalmente, do Coiote, apresentado em geral como um tipo atrapalhado e azarado, glutão, fanfarrão e perpetuamente interessado em sexo. O Coiote é um dos tricksters mais divertidos e mais estudados da mitologia e, assim como Loki, virá a merecer um post especial daqui a algum tempo. Não são todos que têm tantas histórias para contar! ;)

E por falar em histórias, a Literatura também tem diversos personagens que se assemelham aos tricksters, desde o astuto Ulisses ao Macunaíma de Mário de Andrade. Renard, a raposa do romance medieval, Till Ulenspiegel na Flandres, o Autólico de Shakespeare e o Peer Gynt de Ibsen são apenas alguns exemplos desses agentes da esperteza e da trapaça, os quais, embora muitas vezes ajam em proveito próprio, são essenciais para conferir sabor e emoção a qualquer história... e para criar o fator dissonante que, ao questionar a vontade dos deuses, incendeia, destrói e recria mundos em todas as mitologias.

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Existe bastante literatura a respeito dos tricksters. A Internet disponibiliza uma excelente análise de Renato Queiroz, retirada de um trabalho sobre o Saci, além de alguns estudos acerca de tricksters e malandros específicos. Quanto a livros, a análise do pícaro em “A Jornada do Herói”, de Christopher Vogler (Ed. Ampersand) diz o essencial sobre esse tipo de personagem. A figura aparece ainda em diversas passagens da obra de Carl Gustav Jung e de Joseph Campbell, que também tratam de outros arquétipos universais, principalmente o do herói. Livros sobre Mitologia geral, ou sobre a Mitologia específica de cada povo, trarão certamente algumas histórias a respeito de tricksters.

Para quem lê Inglês, os recursos são ainda mais vastos, a começar pelos livros “Mythical Trickster Figures”, de William J. Hynes (que é bem caro, custa 34 dólares mesmo em edição paperback) e “Trickster Makes this World”, de Lewis Hyde. Este pode ser comprado por 11 dólares na Internet, mas nem todas as críticas são favoráveis. O melhor, na minha opinião, é acessar o site da Mythinglinks, no qual, além de definições e artigos vários, vocês poderão conhecer e ler histórias sobre tricksters do mundo todo.

Boas travessuras!

Um comentário:

Anônimo disse...

Blog muito bom, tá de parabéns. :)