segunda-feira, dezembro 20, 2004

Top 20 2004 (final)... e até 2005!!

Oi, Pessoas! Tudo bem?

O post de hoje vai ser um pouco longo, porque será o último do ano. Luciana entra de férias no dia 22, depois vem o Natal, uma viagem a Caxambu (charrete, pedalinhos... um bom lugar para levar crianças!), e ainda o Réveillon, que vai ser aqui em casa. Vou ficar afastada da rede até Janeiro, e não queria deixar a Série Top 20 inconclusa até lá. E sendo assim... Vamos a ela!

1. Chapeuzinho Vermelho em Manhattan, de Carmen Martín Gaite. Mais uma releitura do conto de fadas, tendo como pano de fundo o direito à liberdade de escolher nosso próprio caminho. A protagonista é uma menina do Brooklyn que idolatra sua avó, uma cantora aposentada, detentora da receita de uma torta de maçã que desperta o interesse do solitário Mr. Edgar Woolfe, dono da confeitaria “O Doce Lobo’. As dúvidas, angústias e escolhas da Chapeuzinho Urbana são admiravelmente enoveladas em torno da velha e sempre deliciosa trama. Para ler e reler.

2. O Assassino Cego, de Margaret Atwood. A esposa de um magnata e sua irmã se envolvem com um fora-da-lei cuja especialidade são as histórias baratas de fantasia e ficção científica. Uma delas, a do Assassino Cego, é narrada à medida que se desenvolve a história dos protagonistas, e ambas contam com a mestria de Atwood para torna-las imperdíveis. Ah...! E tem uma surpresa no final... mas eu não vou estragá-la, OK?

3. Praça do Diamante, de Mercè Roboreda. Sensível retrato de uma mulher na Barcelona dos anos 30, quando a Guerra Civil influi profundamente nas vidas, amores e famílias de toda a Espanha. Cada pequeno acontecimento é narrado com tal harmonia e riqueza de detalhes que, no final, a impressão não é a de ter lido um livro, mas admirado um quadro. Muito bom!

4. Contos Romanos, de Alberto Moravia. Escrito há várias décadas, este livro continua divertido e delicioso de ler. O retrato dos tipos e da vida dos subúrbios de Roma mostra, ao mesmo tempo, o poder de observação, o talento literário e a capacidade de Moravia de penetrar na alma dos personagens. Impossível, ao ler, não descobrir ali semelhanças com muitos de nossos conhecidos... Ou quem sabe até mesmo com a gente?

5. Sei Lá, de Margarida Rebelo Pinto. Primeiro livro da autora, de quem já se publicara no Brasil Não Há Coincidências e que vem sendo chamada de "a Bridget Jones portuguesa". Com uma diferença: as personagens de Pinto não são do tipo "boazinhas e desastradas" nem fazem troça de si mesmas. São mulheres independentes, com pouca ou nenhuma auto-ilusão e línguas ferinas, além do incomparável "jeitinho português". E para mim, que já vivi lá (ou melhor, que já lá vivi), o reencontro com o calão (as gírias) e os sítios (lugares) conhecidos é muito porreiro... ou seja, muito legal! ;)

6. Sacred Ground, de Bárbara Wood. Mais um daqueles romances históricos que eu adoro, onde se misturam Antropologia e tradições dos nativos americanos. Na Califórnia, os objetos encontrados nas várias camadas de uma escavação são o ensejo para reconstituir a história de uma linhagem de mulheres fortes e intuitivas. A trama é batida, mas a narrativa é boa e prende, embora o desfecho não convença muito. Entretanto, é melhor que a média no gênero. Ah! E foi traduzido no Brasil, com o título de Solo Sagrado. Mas eu só descobri depois de comprar a versão pocket.

7. Diário de Lô, de Pia Pera. A história de Lolita, de Nabokov, é relida, dissecada e recontada com as palavras de ninguém menos que... É claro...! Lolita!! Com a sensibilidade, o mau-humor e a crítica arrasadora comum nos adolescentes, ela desconstrói sua relação com Humbert Humbert (aqui chamado Guibert) e cria um novo e surpreendente romance. Não percam... mas não deixem de ter o original por perto. Vocês voltarão muitas vezes a ele, com certeza!

8. A Cidade das Feras, de Isabel Allende. Primeiro "livro para jovens" da autora de A Casa dos Espíritos e vários outros best-sellers, conta a história de Alex e Nádia, dois jovens que participam de uma expedição à selva amazônica e se deparam com a tentativa de exploração da terra por empresários gananciosos. O encontro com o xamã Walimai (que aparece nos Contos de Eva Luna) e com o misterioso Povo da Neblina leva Alex e Nádia a uma busca de visão: uma jornada xamânica em busca de autoconhecimento e do contato com seus animais de poder. O final é meio precipitado, mas mesmo assim é um bom livro para quem gosta de aventura, fantasia e ficção com um fundo de espiritualidade.

E agora, de uma só vez, aqui vão duas menções honrosas:

1. Melhor livro de contos:

Os Melhores Contos do Faroeste, organizado por Jon E. Lewis. Um panorama abrangente do gênero, desde as primeiras incursões no século XIX até os trabalhos mais recentes (o último é de 1986). Ao longo do volume, pode-se observar as mudanças de perspectiva quanto aos tipos retratados - xerifes "durões" passando a usar mais o raciocínio para resolver problemas, mocinhas menos indefesas - e também na relação com a terra e os nativos, que, antes inimigos, passam a ser vistos de forma mais humana, embora não sem estranheza. Faz parte do livro o conto Um Homem Chamado Cavalo, de Dorothy M. Johnson (levado à tela em 1970 com o mesmo título), que, sozinho, já seria um bom motivo para ler a obra. Mas a maior parte dos outros textos também é de primeira qualidade. Vale a pena.

2. Melhor romance:

Ali e Nino, de Kurban Said. Este é um dos romances mais peculiares e controversos do século XIX. Publicado em 1937, ele narra uma história de amor que transcende fronteiras, e cujo próprio cenário já prenuncia o conflito: a cidade de Baku, no Azerbaijão, a fronteira da Europa no extremo Leste. A história se passa durante a Revolução Russa e a grande indagação - Baku passará a fazer parte da Europa ou continuará a pertencer à Ásia? - repercute no relacionamento entre o nobre muçulmano Ali Khan Chirvanchir e sua amada, Nino Kipiani, filha de um comerciante cristão da Geórgia. O choque entre as culturas, o panorama efervescente e a necessidade do casal de fazer escolhas e concessões para afirmar seu amor garantem um livro cheio de surpresas e reviravoltas, além de muito bem escrito... e, de certa forma, atual na previsão das guerras que ocorreriam no Oriente Médio e no Leste Europeu. Simplesmente imperdível!

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Bom, Pessoas... Eu disse que o post seria "um pouco" longo... mas não esperava que fosse tanto. Vou ficar por aqui, desejando a todos um feliz Natal, muita energia e inspiração no Solstício (dia 21 às 12:43, hora de Londres) e um final de ano repleto de paz e harmonia. Que 2005 possa trazer coisas boas a todos nós, a toda a Humanidade, a todo o Universo!

Abraços pra vocês,

Até Janeiro!

Ana Lúcia

quinta-feira, dezembro 09, 2004

Top 20 2004 (parte 3)

Oi, Pessoas! Tudo bem?

Finalmente, o Verão se faz sentir por aqui: um Verão extremamente quente e abafado, com chuvas rápidas e violentas no final da tarde (exatamente na hora em que eu tenho que sair para buscar a Luciana). A greve do Ministério da Cultura continua, por isso tenho tido tempo para ler, escrever e agitar atividades para o ano que vem. Já tenho nove minicursos agendados, no Rio e em Niterói, e preciso me empenhar na divulgação, além de conseguir outros lugares para dar cursos e palestras e contar histórias. É... Esta vida de self-made writer não é nada fácil...!

Num intervalo desse meu trabalho de formiguinha, preparei mais algumas dicas de leitura. Espero que gostem!

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1. Os Despossuídos, de Ursula K. Le Guin. Já falei sobre a autora e a obra aqui na Estante, mas ambas merecem uma segunda menção. Le Guin está em sua melhor forma ao discutir as diferenças entre as civilizações capitalista e socialista, além de questões como o papel da mulher na sociedade e o direito do indivíduo à diferença, através da história de Shevek, um cientista proveniente de um planeta árido e pobre – mas onde a sobrevivência é possível graças ao sistema igualitário – cujas crenças e valores são confrontados com o que vê numa visita a um planeta onde a sociedade é individualista, consumista e desigual. Qualquer semelhança com o nosso planeta é mera coincidência.

2. A Espera, de Ha Jin. Na China vermelha, um médico do interior é mandado trabalhar em um hospital na cidade, onde se apaixona por uma enfermeira. No entanto, a esposa que deixou em sua terra natal se recusa a lhe dar o divórcio, e o caso de amor permanece não-consumado por anos a fio, ao mesmo tempo em que o país vai se modificando sob o efeito da revolução. Junto com Cisnes Selvagens, As Boas Mulheres da China e Balzac e a Costureirinha Chinesa, este livro fornece um panorama da história social da China, além de de um texto agradável e bem-construído.

3. Filha de Feiticeira, de Celia Rees. No século XVII, uma jovem, cuja mãe e avó praticam secretamente a magia, é enviada aos Estados Unidos, onde passa a viver numa colônia de puritanos. Embora encontre bons amigos entre eles, seus modos “diferentes” e a simpatia pelos índios fazem dela o alvo das desconfianças do reverendo local. O enredo não é original, mas a autora o desenvolve com muita habilidade, evitando os lugares comuns e proporcionando algumas surpresas. O livro tem uma continuação, Sangue de Feiticeira, que também vale a pena ler, principalmente para os que são fãs de romances históricos (eu!), de histórias envolvendo bruxas e magia (eu!) e das tradições dos nativos americanos (eu de novo!).

4. Encanto de Mulher, de Rose Tremain. Lewis, um adolescente precoce, acompanha sua mãe a Paris, onde ela trabalhará na tradução de um romance. A autora, Valentina, é uma mulher sedutora, por quem Lewis não tarda a se apaixonar. A trama dá uma reviravolta quando Valentina desaparece misteriosamente, fazendo o menino mergulhar de cabeça na tentativa de descobrir seu paradeiro – e, ao mesmo tempo, em suas próprias e conturbadas emoções. Muito bom.

E, finalmente, outro livro já citado na Estante... mas que merece destaque na Categoria Infanto-Juvenil:

O Fabuloso Maurício, de Terry Pratchett. Maurício é um gato espertalhão, que comanda uma trupe de ratos falantes e um jovem flautista, o “garoto com cara de bobo”, num golpe que se baseia na história do Flautista de Hamelin. No entanto, o esquema torpe e sinistro que descobre numa cidade o leva a uma nova ação... e a um desfecho que eu duvido que alguém consiga antecipar. Leiam e me digam...!

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E, até lá... Abraços a todos!

Até a próxima!

Ana Lúcia

quarta-feira, dezembro 01, 2004

Top 20 2004 (parte 2)

Olá, Pessoas queridas! Tudo bem?

Por aqui não há muitas novidades. A Biblioteca Nacional continua em greve, assim como outros órgãos do Ministério da Cultura, e eu tenho me dedicado a ler, revisar alguns textos e fazer planos para o ano que vem. Também procuro sempre participar das assembléias de funcionários, quando há, e aproveito para dar um pulinho nas livrarias e sebos do Centro do Rio. Por que não? A vida não é só feita de trabalho...! ;)

Ontem voltei com um sorriso de orelha a orelha, porque encontrei duas preciosidades: Mythologies, de W. B. Yeats, no sebo Berinjela; e, no sebo do Paço Imperial, uma antologia, em Inglês, dos Contos de Fadas Russos coletados por Aleksandr Afanasev. Também chegou na Leonardo da Vinci um dos que eu tinha encomendado: The Great Fairy Tale Tradition, de Jack Zipes, aquele cujas teorias ainda hão de me fazer publicar uma edição revisada do meu próprio livro sobre as origens dos contos de fadas. De qualquer forma, foram excelentes aquisições para minhas estantes. E para a Estante Mágica também... Esperem e verão!

Até lá, aqui vão mais cinco dos livros que li este ano e que recomendo a vocês:

1. Deuses Americanos, de Neil Gaiman. Mais uma crônica fascinante (e algo sombria) do escritor de Sandman. Neste livro, ele parte do pressuposto de que os Deuses levados para a América por imigrantes de todas as épocas e de todas as partes do mundo permaneceram no local, mesmo depois de seus adoradores haverem partido. Alguns deles desapareceram ou enfraqueceram, mas outros estão ativos, preparados para uma batalha final contra os novos Deuses: aqueles que surgiram do culto ao dinheiro, às novas tecnologias e a tudo que faz parte do modo de vida americano. Para ler, se emocionar... e refletir.

2. Papoulas Vermelhas, de Alai. Um panorama abrangente, rico em detalhes e escrito de forma irrepreensível, do que era o Tibete antes da ocupação pelo exército chinês. Através dos olhos de um jovem considerado idiota, membro de uma das famílias que dominavam a região, a idéia de uma terra habitada por iaques mansinhos e lamas pacíficos vai ficando para trás a cada página.

3. Um Barril de Risadas, um Vale de Lágrimas, de Jules Feiffer. Ilustrado pelo autor, este é um dos melhores infanto-juvenis que li este ano. Conta a história do Príncipe Roger, cuja bênção (ou maldição) era fazer com que todos que se aproximassem dele caíssem na risada. Aconselhado por um mago, Roger parte em busca da cura para o seu problema e encontra os tipos mais improváveis. Leve e divertido, vale a pena, até mesmo para adultos.

4. O Rei de Girgenti, de Andrea Camilleri. Partindo de uma notícia que leu, por acaso, em um velho jornal, o autor de vários livros policiais de sucesso escreveu (mais: imaginou!) a crônica de um camponês que, durante um curto período de tempo, se autoproclamou Rei da região italiana de Agrigento. Comecei a ler sem grandes expectativas, mas não consegui parar até chegar ao final.

E agora nossa menção honrosa... o melhor livro brasileiro do ano!!

As Pelejas de Ojuara, de Nei Leandro de Castro. Saborosíssima saga de um herói (ou anti-herói) ao estilo de Macunaíma: o caboclo Ojuara, cujas aventuras se passam num panorama que evoca os mitos e a literatura oral do Brasil. Vários amigos, inclusive freqüentadores da Estante, já haviam me recomendado este livro e eu passo a dica adiante. Realmente imperdível!

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Bom, pessoal... Por hoje é só. Espero que, entre gêneros tão variados, todos gostem de pelo menos um desses livros!

Abraços pra vocês,

Até a próxima!

Ana Lúcia

quinta-feira, novembro 18, 2004

Top 20 2004 (parte 1)

Oi, Pessoas! Tudo bem?

Conforme prometido, hoje começarei a publicar a série Top 20 2004: a indicação dos 20 livros de que mais gostei, de janeiro até outubro deste ano. Na verdade, serão 25, pois decidi conceder algumas menções honrosas relativas a cinco diferentes categorias. Espero que vocês gostem!

Aqui vão as dicas:

1. A Vida Antes do Homem, de Margaret Atwood. Uma das minhas autoras preferidas (que voltará a aparecer nesta série), Margaret conta aqui a história do triângulo amoroso entre Nate – um homem bom, mas inseguro e confuso quanto a seus próprios sentimentos, - sua esposa Elizabeth e a jovem paleontóloga Lesje, que se dedica ao estudo dos dinossauros. A psicologia masculina e feminina e as relações humanas são abordadas com a maestria de sempre, e a narrativa, embora detalhada, nunca se torna tediosa. Vale a pena ler.

2. Anastácia e Bonifácia, de Flávio de Souza. Esta é uma das várias recriações de contos de fadas que li nos últimos tempos. A história, aqui, é a da Cinderela, que começa a ser contada sob o ponto de vista de suas irmãs adotivas (a Anastácia e a Bonifácia do título) mas que adquire contornos surpreendentes, grotescos e até sombrios quando passa a admitir a intervenção de outros personagens. Criativo da primeira à última página.

3. A Wizard of Earthsea, de Ursula K. Le Guin. Primeiro volume do Earthsea Quartet, relata o aprendizado de Ged, um jovem mago cujo maior inimigo reside dentro de si mesmo. Toda a tetralogia é ótima, mas a trama e a narrativa deste livro são as melhores. Ah! E se alguém quiser saber mais sobre a autora e sua obra, basta procurar por Ursula K. Le Guin na lista de posts mais antigos da Estante. Aposto que não se arrependerão de conhecê-la!

4. Abril Despedaçado, de Ismail Kadaré. No interior da Albânia, o hábito milenar da rixa de sangue entre famílias determina o destino de um rapaz e afeta as vidas de um escritor e de sua jovem esposa, em visita à região. Tanto os costumes locais quanto as questões psicológicas são abordados com rara sensibilidade. Imperdível.

E agora, a indicação especial... na Categoria Não-Ficção!

As Sete Filhas de Eva, de Bryan Sykes. Fascinante relato de um dos maiores especialistas mundiais em genética, conta como a identificação de um elemento do DNA herdado pela linha materna permitiu aos cientistas traçar a herança dos povos europeus desde a Pré-História. Mesmo quem não entende nada sobre genética e ciência em geral (como é o meu caso) irá compreender as explicações, dadas de forma muito simples e clara, e se interessar pelas conclusões. Ah, sim... ele fez uma ficçãozinha no final, tentando imaginar uma história de vida para cada uma das sete ancestrais... Mas a pesquisa é seríssima, e o livro foi considerado uma das mais importantes publicações na área desde A Hélice Dupla, de James Watson, um dos descobridores do DNA juntamente com Francis Crick.

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Bom, Pessoas... Por enquanto é só. Espero que possam aproveitar estas dicas. Semana que vem tem mais... OK?

E, agora, umas brevíssimas linhas sobre mim. Agradeço muito a solidariedade de vocês quanto ao meu estresse. Valeram a força e os toques...! Agora, com a Biblioteca Nacional em greve (hehehe) e alguns contatos sendo feitos, acho que estou conseguindo relaxar um pouquinho, embora ainda tenha que lutar contra a ansiedade. Também ajudou muito a acolhida que tive no Colégio Gaia (gente, nunca dei tantos autógrafos!), a qual me levou, mais uma vez, a ter a certeza de que pelo menos algumas das sementes que venho lançando estão caindo em bom solo. Se são árvores amigas ou flores... então, a seu tempo, hão de germinar!

Abraços pra vocês,

Até a próxima!

Ana Lúcia

P. S. Com a greve da BN, estou descansando mais... mas, por outro lado, o computador de casa tem uma verdadeira barreira de antivírus, que impede o meu acesso a várias páginas e sistemas de comentários. Por isso, não conseguirei visitar todos vocês como gostaria. Espero que compreendam... e acreditem, volto assim que puder!

Abraços,

Ana

segunda-feira, novembro 08, 2004

Um Cocar, um Xaxado e a Invencível Paixão de Ler

Oi, Pessoas! Tudo bem?

Pois é... Eu ando meio sumida da rede há algum tempo. Mas acreditem que não é por querer. Além de problemas no computador, tenho tido pouco tempo livre, e o que sobra está sendo dedicado à divulgação do meu trabalho, além de outras atividades que me são propostas quando travo contato com diretores de escolas, chefes de bibliotecas e outras pessoas ligadas à área da cultura e da educação.

Hoje, por exemplo, fiz um trabalho com crianças de pré-escola de um CIEP, no âmbito do Projeto Paixão de Ler, com o qual a Prefeitura do Rio procura fomentar o amor ao livro e à leitura. A cada ano um escritor é homenageado; desta vez é Rachel de Queiroz, e a atividade de que participei foi um encontro para falar da história do Ceará. Vendo-me aqui, com meus óculos e ar compenetrado, cercada pelos livros do meu escritório e ouvindo música medieval, vocês não acreditariam, mas hoje já sentei no chão, já brinquei de roda, já usei um cocar de índio e até fingi dançar o xaxado. Foi cansativo... mas bem divertido.

Já na sexta-feira, irei ao Colégio Gaia, onde meu livro O Caçador foi adotado como leitura paradidática para a quinta série. Vamos ver o que meus jovens leitores (ai, que metida!) têm a me dizer sobre as peripécias do protagonista em busca da floresta livre. Segundo eu soube, alguns reclamaram que outros personagens de contos de fadas e populares ficaram de fora (como o Aladim, por exemplo) e que o Caçador devia ter ficado com a Branca de Neve... Vocês, que leram o livro, o que acham?

Em relação ao meu trabalho mais “específico”, estou na batalha para conseguir lugares onde ministrar meu curso sobre os contos de fadas. Algumas edições já estão agendadas para o ano que vem, na Biblioteca Machado de Assis, em Botafogo, mas estou buscando espaço em outras instituições. Por isso, se alguém tiver contatos interessantes que possa me fornecer, inclusive fora do Rio, ficarei muitíssimo grata.

Estou querendo principalmente ir a São Paulo, onde eu iria fazer uma palestra e lançar meus dois livros, o que, como sabem, acabou não acontecendo. Tenho muitos amigos queridos em Sampa, a maioria dos quais não conheço pessoalmente, e seria ótimo se pudesse rolar alguma coisa por lá. Vamos ver se algo acontece em 2005!

De qualquer forma, não espero agendar mais nada até o final do ano, que está muito próximo, ao passo que eu estou precisando descansar. Até a Luciana disse ontem que estou muito estressada, e, se uma criança de três anos e meio percebe isso, é porque a coisa deve ser séria. Então, vou diminuir o ritmo e me concentrar em produzir um plano de ação e material de divulgação para o ano que vem, além de adiantar o trabalho na Biblioteca Nacional. E aqui na Estante pretendo começar, na semana que vem, a publicar uma série com os Top 20 de 2004: os vinte melhores livros que li este ano (até agora), com destaque para as categorias conto, romance, infanto-juvenil e não-ficção. Para quem gosta de minhas dicas de leitura, será uma boa oportunidade de aumentar a cartinha para o Papai Noel!

Então, Pessoas Queridas, fico por aqui. Espero poder visitar a todos ao longo das próximas semanas, mas se eu não puder não fiquem zangados. Vocês sabem o quanto são importantes para mim.

Abraços a todos,

Até a próxima!

Ana Lúcia

P. S. Aproveito para avisar que mandei informações sobre a forma de adquirir meus livros a todos que as solicitaram. Se alguém ainda está esperando resposta, por favor, não deixe de me avisar... OK?

Abraços,

Ana

terça-feira, outubro 19, 2004

Linda Hogan e a Saudade do Que Ainda Não Li

I want the world to be kinder.
I am a woman.
I am afraid.
I saw a star once, falling toward me.
It was red
with brilliant arms
and then it was gone.

(Linda Hogan. Harvesters of Night and Water.)


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Pessoas Amigas,

Este poema (que eu adoraria ter escrito) é de Linda Hogan, uma autora que descobri por acaso, quando procurava poetisas nativas americanas na Internet. De site em site reuni muitas informações sobre ela, e hoje, relendo as anotações, senti vontade de escrever a seu respeito. Espero que vocês também achem interessante!!

De origem Chickasaw (tribo da região do Colorado), engajada em causas sociais e ambientais, Linda Hogan nasceu em Denver, em 1947. Sua obra, iniciada em 1979 com o livro de poemas Calling Myself Home, evoca imagens pertinentes à literatura oral de sua tribo para estabelecer o que se pode chamar um espaço sagrado, ainda que a contínua exploração (e dessacralização) da terra não permita que esse lugar seja mais do que uma metáfora. Em outras palavras, os textos se referem a um reino natural, onde as águas são impregnadas de profunda magia e as cavernas são lugares de iniciação, principalmente para as mulheres, aqui e sempre conectadas às energias terrestres e subterrâneas.

A atenção dada ao gênero, ao mesmo tempo em que se preocupa com os problemas do meio-ambiente, faz com que Linda Hogan seja às vezes chamada de ecofeminista. De fato, em suas entrevistas ela enfatiza o fato de que os problemas raciais e sociais, de um modo geral, atingem mais duramente as mulheres, enquanto, em suas obras, fica patente a identificação entre o colonizador/explorador e a mentalidade patriarcal (ou mesmo masculina). A luta contra a opressão e a violência dirigida às mulheres é, assim, um aspecto complementar da luta por melhores condições ambientais: sem que isso seja alcançado, será impossível restaurar o equilíbrio entre a Natureza e os seres humanos.

Linda Hogan é autora de uma peça premiada (A Piece of Moon), contos, romances, seis livros de poesia e um de ensaios, Dwellings, em que trata dos habitats de diversos animais (muitos deles de injustificada “má fama”, como as cobras e os morcegos), ao mesmo tempo em que reflete sobre as lições de espiritualidade e harmonia contidas no meio-ambiente. Infelizmente, até onde sei, nenhuma de suas obras foi traduzida no Brasil, e os poemas ou trechos de prosa disponíveis na Internet são muito poucos. Sendo assim, ainda vou demorar algum tempo para ter um livro de Hogan em minhas mãos: os dois, três ou quatro meses que a Livraria Leonardo da Vinci leva para trazer uma encomenda dos Estados Unidos. E eu ainda nem escolhi o que vou pedir.

Pois é... E agora vocês devem estar se perguntando: mas, Ana, você está escrevendo sobre algo que ainda não leu? Como pode...?

E a resposta é: sim, estou. Estou, porque os fragmentos a que tive acesso e as críticas e resenhas que li a respeito de Hogan me fizeram antecipar não apenas poemas bonitos e sensíveis e histórias interessantes, mas também o mergulho em uma forma de pensar e de perceber as coisas que é muito parecida com a minha. Estou, porque me identifiquei com as poucas palavras que li e sinto que vou gostar das próximas. E, sobretudo, estou, porque sou um pouco como aquele poeta que falava sobre a saudade do que não se viu e não se fez. Ou, no meu caso... o que ainda não se leu...! ;)

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Este é um dos poucos sites que encontrei com poemas de Linda Hogan.

Links para outros poemas, ensaios sobre a obra da autora e uma foto muy antiga podem ser encontrados aqui.

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Aproveito este último pedacinho de página para agradecer a todos que estão pedindo informações (alguns, até comprando...!) e se prontificando a ceder espaço em seus sites para os meus livros. Acho que não preciso dizer, mas lá vai... Vocês são o máximo...!!

Abraços a todos!

Até a próxima!

Ana Lúcia

quarta-feira, outubro 06, 2004

Os Contos de Fadas : publicado meu novo livro!!

Oi, Pessoas! Tudo bem?

Ontem aconteceu uma coisa muito legal... Meu livro ficou pronto...!

Em Abril deste ano, anunciei aqui na Estante o lançamento de uma obra de ficção, “O Caçador: um conto de fadas em mosaico”. Na mesma época, eu estava enrolada preparando as apostilas para um curso sobre as origens e a história dos contos de fadas... vocês se lembram?

Pois bem, alguns meses e três edições do curso depois, aqui estou eu, anunciando o lançamento de um pequeno livro que contém a matéria dada durante as aulas. Os tópicos abordados podem ser consultados em um post anterior, a respeito do curso – é só clicar num dos últimos da lista aí ao lado, e os mais antigos aparecem -, mas vale lembrar que meu enfoque não situa os contos de fadas (apenas) como Literatura Infantil, e sim como um fenômeno histórico e literário, com elementos comuns ao imaginário de todas as culturas, cuja transmissão é constantemente perpetuada e renovada através de narradores e escritores contemporâneos.

Bom... Então, eis o meu novo livro, que espero poder compartilhar com vocês. Assim como O Caçador, ele é independente e não tem distribuição; por isso, peço aos interessados em comprá-lo que, por favor, avisem aqui nos comentários, deixando seu endereço de e-mail para que eu entre em contato.

Aproveito para informar que ainda tenho alguns exemplares de O Caçador (corram! corram!) e que procuro novos lugares onde possa dar o curso sobre contos de fadas. Assim, se vocês puderem e quiserem divulgar meu trabalho, eu ficarei muito grata e muito feliz!

Abraços a todos. Tenho que voar!

Até a próxima,

Ana Lúcia

segunda-feira, setembro 27, 2004

Kokopelli: um Mito Anasazi

Pessoas Queridas,

Vocês conhecem de sobra a minha admiração pela cultura e pelos mitos dos nativos americanos. Ana e a Margem do Rio traz uma bela história amazônica, e por aqui já andou uma Cinderela algonquina, sem falar nos muitos pulos e uivos do Coiote. Então, hoje é a vez de um personagem conhecido principalmente nas culturas Hopi e Navajo, e que parece ter tido um papel de destaque entre os Anasazi, antepassados dos Pueblo: Kokopelli.

Associado à figura dos tricksters, mas principalmente aos mitos de fertilidade, Kokopelli, com sua flauta e sua aparente corcunda, está representado nos mais antigos petroglifos do Sudoeste da América do Norte. Comparativamente, ele pode talvez nos fazer lembrar de outros flautistas (e sedutores), como Krishna, Hermes e Pan; as lendas a seu respeito são inúmeras, mas a que vou contar foi adaptada do livro que acompanha as Cartas do Caminho Sagrado, de Jamie Sams (que, vocês devem saber, é um dos meus livros de cabeceira). Quanto à cultura Anasazi e à Mesa Verde, vocês podem encontrar um resumo aqui, bem como uma imagem e mais informações acerca de Kokopelli.

Então... senta que lá vem história!! ;)

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Kokopelli e Flor do Gelo

Tinha sido um ano muito seco na região de Mesa Verde quando Kokopelli, o grande xamã, apareceu para falar ao povo. À distância, ele parecia ser corcunda, mas quando se aproximava era possível perceber que, na verdade, tinha às costas uma grande sacola de talismãs, remédios e sementes que trazia para comerciar. Em sua cabeça, um arranjo de plumas vermelhas dava a impressão de que usava uma coroa de fogo, e sua flauta reluzia ao Sol, o brilho uma fonte de encantamento tão grande quanto a música.

Ao terminar de tocar, ele embrulhou a flauta em um pano tecido, como se fosse uma criança, e a consagrou ao Povo que Habita as Estrelas, proclamando que a melodia vinha das estrelas e chamava o Pai Trovão para se unir à Mãe Terra. Dessa união nasceria uma Criança Mágica, que, um dia, viria a liderar seu povo e conduzi-lo de volta ao Céu. Isso porque – disse o xamã – tinha havido um tempo, antes da Criação, em que todos os seres eram como centelhas pertencentes ao Fogo Primordial, e que tinham vindo à Terra para semeá-la com pensamentos, idéias e ações.

Tão logo Kokopelli falou, o fogo explodiu em inúmeras fagulhas, e ao longe o povo de Mesa Verde ouviu o som dos trovões, que traziam enfim a chuva tão esperada. Kokopelli aconselhou a todos que pegassem seus potes de barro e corressem para coletar a preciosa água da chuva, assim que começasse a cair no alto da meseta. Todos se apressaram a fazê-lo, à exceção de uma jovem muito bonita, cujo olhar voltado para as nuvens transmitia inocência e serenidade.

Curioso, Kokopelli se aproximou e perguntou à moça por que não correra para buscar os potes. A resposta o maravilhou e encheu de assombro: ela já colocara os potes no alto da meseta, pois, tão logo ouvira a flauta do xamã, soubera que ele iria trazer a chuva. O rosto às vezes bondoso, às vezes brincalhão de Kokopelli se abriu então num sorriso, e ele exclamou: Quer dizer que é você!

O povo de Mesa Verde encheu todos os recipientes que puderam ser transportados à meseta e, depois, se reuniu numa prece de agradecimento ao Grande Espírito e ao xamã que trouxera a chuva, Kokopelli. Este colocou a flauta nos braços da jovem - que pertencia ao Clã do Milho e se chamava Flor do Gelo – para que todos soubessem que, dali em diante, ela partilharia sua música e sua semente.

Conta a lenda que Flor do Gelo deu à luz um filho que se tornou o líder da tribo, e que tinha em si a bondade de sua mãe e o Fogo Criador de seu pai. Ele também se tornou um grande xamã e usou sua magia para cumprir a missão que lhe fora destinada. Sim, porque a região de Mesa Verde, no Colorado, foi abandonada – às pressas, ao que tudo indica - por volta do ano 1250 de nossa era... o que nos leva a imaginar se a lenda, afinal, tinha um fundo de verdade, e se a Criança Mágica foi capaz de reconduzir seu povo às estrelas.

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Lindo, não? Eu também achei... ;)

Esperando que o Fogo Criador nos ajude a revelar o que temos de melhor,

Aqui vai meu grande abraço!

Até a próxima!

Ana Lúcia

terça-feira, setembro 21, 2004

Bibbi Bokken e a "outra" Ana: dicas de leitura

Pessoas Queridas,

Estes últimos tempos têm sido de muita correria e muitos afazeres. Para não deixar passar mais uma semana em branco, aqui vão duas dicas de leitura: obras escritas em princípio para o pessoal mais jovem, mas que têm tudo para agradar ao público em geral e, em especial, àqueles que gostam de histórias sobre livros, escritores e bibliotecas.

1. Ana e a Margem do Rio

Este livro de Godofredo de Oliveira Neto (Editora Record) tem como narradora uma jovem indígena, Ana, da etnia Nauá, que foi educada numa missão de freiras e cujo talento inato para escrever foi notado não apenas pelos professores locais, mas por pesquisadores do Brasil e do exterior. Ana registra em um caderno uma das velhas histórias que ouviu da mãe: a da parceria entre um jacaré e uma jibóia, com o concurso de outros animais e de dois índios que vagam à procura de sua gente, uma odisséia que parece não ter fim, tão complexa é a questão da identidade para os nativos americanos. Assim é também para Ana, cuja história vai sendo contada à medida que sua narrativa avança e se aprofunda, mesclando à lenda Nauá elementos de outras tradições e da própria cultura do colonizador. Quem é essa jovem, tão sensível, tão consciente e ao mesmo insegura de sua própria identidade? Qual dos caminhos que lhe são apresentados ela vai escolher? Em que margem do rio e da vida decidirá ficar?

Dêem asas a sua sensibilidade lendo a história de Ana... e depois preparem-se para uma longa jornada até a Noruega, a fim de descobrir um mistério fascinante:

2. A Biblioteca Mágica de Bibbi Bokken

Do autor de O Mundo de Sofia, Jostein Gaarder, em parceria com o escritor infanto-juvenil Klaus Hagerup (Cia. das Letras), esta é a história dos primos Berit e Nils e do seu envolvimento com a misteriosa Bibbi Bokken, que lhes aparece nos lugares mais improváveis, protagoniza uma série de eventos estranhamente coincidentes e tem, segundo parece, a ambição de possuir uma biblioteca de livros roubados. Ou seriam contrabandeados? Ou seriam, simplesmente... mágicos?

Para descobrir qual das suas hipóteses é verdadeira, Nils e Berit devem aprender um pouco sobre os livros, as bibliotecas e sua história, informações que vão sendo repassadas para o leitor. O grande barato é que, embora se utilize da mesma fórmula epistolar e do tipo de mistério usados em seus livros anteriores, Gaarder consegue desta vez fugir ao tom didático, mantendo o tom ágil, casual e bem-humorado de que se valem os primos em sua correspondência. Uma boa leitura, apesar do final um tanto previsível... e uma boa maneira de aliar o prazer à aquisição de conhecimentos, ainda que básicos, acerca de livros e bibliotecas.

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Espero que minhas alunas do curso de Organização e Dinamização de Bibliotecas Escolares cheguem a ler isto. Muitas delas me disseram que vieram visitar a Estante, mas, tímidas que são, preferiram não deixar comentários. O que eu respondo é: não renunciem a deixar sua marca. Aqui há muitos livros, mas um número infinitamente maior de páginas em branco. Escrevam, pois, não só neste espaço, mas onde quer que haja espaço. Estou esperando por vocês.

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Correndo, mais uma vez, atrás do meu sonho,

Abraços a todos!

Até a próxima!

Ana Lúcia

terça-feira, setembro 14, 2004

Ilustríssima Barnabé (parte 2)

Pacientíssimas Pessoas,

Duas semanas, um feriado, uma virose, uma aula inaugural e 210 repetições do “Carta de Capistrano” separam este post da sua primeira parte. O tempo continua curto e os deveres são muitos, mas no meio do corre-corre consegui reservar uns minutos para passar por aqui e, conforme combinamos, falar do lado mais interessante da minha vida de Barnabé.

A parte mais criativa e prazerosa do meu emprego tem a ver com o fato de eu poder exercitar o que considero minha verdadeira vocação: o trabalho com a palavra, tanto escrita como falada. Possuir essa habilidade (vamos combinar que esse é o caso) e, principalmente, gostar de exercê-la são por si fatores diferenciais em relação a meus colegas, a maioria dos quais não gosta de falar em público e não tem facilidade para produzir textos. Por outro lado, assim que cheguei à Divisão de Manuscritos, achei que aquele acervo maravilhoso precisava ser mais difundido para o grande público, e comecei a trabalhar nesse sentido. No início foram pequenas mostras, na nossa sala mesmo, que mais tarde ganhariam o corredor. Com o respaldo da minha chefe, da chefe da chefe e assim por diante, as exposições foram se tornando mais elaboradas, passando a incluir peças de outras Divisões, que eram sempre apresentadas como parte de um contexto e não como simples “curiosidades”.

Guardei todos os folders com textos de apresentação e todos os cartazes dessas mostras, algumas das quais chegaram a ser noticiadas em jornais e revistas. Quinto do Ouro, que tratava da administração colonial, deve ter sido a que fez mais sucesso, mas a menina dos meus olhos é inegavelmente A Escrita no Tempo, datada do ano 2000. Como o nome já diz, ela tratava da evolução da escrita, e contava com Livros de Horas e obras raras. Foi a única a ter um orçamento, a ganhar um banner do lado de fora da Biblioteca e a ocupar o saguão de entrada. A montagem foi feita pelo pessoal da casa, mas a seleção de peças, pesquisa, textos e legendas foram da minha exclusiva competência. É claro que fiquei muito orgulhosa com isso e cheia de planos para novas exposições, mas meus dias de curadora não-oficial estavam para acabar. É que esse período foi realmente muito criativo, em todos os sentidos... e assim, nove meses depois, eu tive que me afastar para dar atenção a esse pequeno/grande projeto que se chama Luciana.

Quando regressei da licença-maternidade, a Biblioteca Nacional tinha passado por uma reforma. Haviam sido criados um auditório e um espaço para exposições, essas realmente institucionais, com curadores de fora, pessoas contratadas para escrever os textos, firma especializada para montar e grana para bancar. Claro que nós, funcionários, colaboramos (e muito) nas pesquisas, mas a tendência é, cada vez mais, nos tornarmos “carregadores de piano”. Ainda assim, as exposições setoriais continuaram, e continuam, apesar das restrições de espaço. Aqui na sala, no momento, temos apenas uma vitrine com quatro peças de acervo; mas elas estão lá, com legendas bem explicativas, acompanhadas de um texto escrito por mim. Outros textos surgem aqui e ali, para a homepage da Biblioteca, para catálogos, para releases. Não é muita coisa, é verdade. Mas foi toda a minha prática de escrita ao longo de um ano e meio de bloqueio no campo da ficção.

E agora, que estou escrevendo bastante, publicando artigos e livros (em grande parte graças ao incentivo dos visitantes deste blog!) e precisando de lugares para divulgar meu trabalho, conto com o público da Casa da Leitura, onde se realizou pela primeira vez o curso sobre Contos de Fadas e onde estou, este mês, ministrando um sobre Organização de Bibliotecas Escolares. Os alunos comentam que transmito muito entusiasmo pela leitura e pelos livros em geral, e também que tenho boa-vontade, sou simpática... o que deve ser a maior razão pela qual sou sempre convocada para acompanhar visitas na Biblioteca. Podem ser os VIPs da Library of Congress, a Susan Sontag ou uma turma de estudantes... Nove em dez vezes, quando há visitas na Divisão, Merege está aqui para recebê-las!

Essa é uma parte muito gratificante do trabalho, já que posso me dirigir diretamente aos leitores e transmitir um pouco do que sei. Visitas oficiais, vindas do Gabinete, não são tão legais, porque em geral a agenda está apertada e é preciso falar muito rápido. Pesquisadores, por sua vez, são especialistas, e eu sou uma generalista, gosto de falar em termos amplos para um público mais leigo. Seguindo o mesmo raciocínio que uso ao montar as exposições, sempre mostro as peças do acervo dentro de um contexto, e quase sempre dou um jeito de falar um pouco sobre História do Livro ao mostrar nossos códices medievais. Se o grupo estiver interessado, nosso papo vai longe... e eu saio cansada, mas satisfeita, com aquela sensação gostosa que fica quando se partilha uma história.

Estou na profissão certa? Acho que sim. Mas às vezes surgem questionamentos sobre estar ou não agindo corretamente, brincando de Coiote com coisas tão sérias. Uma vez, por exemplo, recebemos uma turma de segundo grau de uma escola particular (e caríssima) a quem, como de hábito, mostrei os tais livros medievais. Eu os folheei sem luvas, porque estas atrapalham meu tato (antes que me crucifiquem, devo dizer que muitos especialistas acham melhor não usar). Acontece que, entre os alunos, havia um garoto que, depois de exibir seus conhecimentos durante toda a minha explicação, comentou que havia morado nos Estados Unidos, e que lá aprendera que é preciso usar luvas para tocar em acervo raro. Argumentei da forma descrita acima, e ainda tentei brincar dizendo que tinha tomado banho no sábado, mas ele foi inflexível: E os óleos da mão?

Bom, nesse ponto, creio que a maioria das pessoas teria parado para pensar naquilo, reavaliado suas atitudes, tido enfim uma crise de consciência sobre seus deveres para com a preservação do acervo, esse juramento de Hipócrates livresco do qual eu acabava de ser lembrada por aquele brilhante rapaz. Mas tudo que eu fiz foi dar esse meu sorriso cheio de dentes e perguntar, em tom de confidência:

- Vem cá: você leu, ou viu, O Nome da Rosa? Já pensou em quantos monges devem ter lambido o dedão e tacado em cima dessas páginas? Não é o óleo dos meus dedos, aliás recém-lavados, que vai destruir esse pergaminho... né?

Com isso, é claro, a turma caiu na gargalhada, a professora inclusive, e até o mala sorriu, embora tenha sido um sorriso meio amarelo. Mas a avaliação que recebi dessa visita foi a melhor possível. E eu aposto, ou pelo menos gosto de pensar que, de todos os barnabés que viram aqui na Biblioteca, nenhum ficou tanto tempo quanto eu na memória desses jovens.

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Esperando que vocês também não me esqueçam,

Abraços a todos!

Até a próxima!

Ana Lúcia

quarta-feira, setembro 01, 2004

Ilustríssima Barnabé (parte 1)

Pessoas mui queridas,

Conforme eu prometi, e nosso amigo Milton já cobrou, aqui vai um post especialmente dedicado a descrever as dores e as delícias da minha vida de funcionária pública, também conhecida pela simpática alcunha de barnabé. Ou talvez seja melhor dizer: o primeiro post. Pois uma frase puxa outra, e há tantas histórias que gostaria de contar! Acho que elas não caberão numa única conversa.

Antes de começar, deixo aqui uma solene promessa: não reclamarei do meu salário. Todos sabem como ele está defasado depois de anos e anos de reajuste, e, sobretudo, já me cansei de ouvir dizerem que eu “ganho muito bem” em comparação ao resto do país. Também não vou dizer, pois todos que já foram a uma repartição sabem disso, que trabalhamos em péssimas condições, que falta material de consumo – desde borrachas plásticas a cartuchos de impressora - , que a política interna da instituição não se preocupa nem com a qualidade de vida nem com o crescimento profissional de seus funcionários. Direi apenas que, apesar dos pesares, gosto da minha profissão, tenho muito carinho pela Biblioteca Nacional e – embora aqui não me considerem uma escritora, professora ou mesmo pesquisadora – o fato de trabalhar na Casa é uma boa referência quando encaminho um artigo para publicação ou a proposta de um curso ou palestra. Aos trancos e solavancos, estou construindo uma carreira, como fizeram Lima Barreto, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e tantos outros “ilustríssimos barnabés” que vieram antes de mim. Assim, já viram... Se tenho algo de que me queixar, não é de estar em má companhia...! ;)

Mas vamos ao que interessa: o meu trabalho na Biblioteca Nacional. O que eu faço por aqui quando não estou escrevendo em nenhum blog?

Bom, para começar, eu sou uma bibliotecária, e minhas funções, definidas na descrição do cargo, se referem ao processamento técnico (i. e., registrar, classificar, catalogar e guardar livros) e difusão do acervo bibliográfico da BN (ou seja, atendimento ao público). E, de fato, é isso que faz a maior parte dos bibliotecários da Casa. Eu, porém, pertenço a um grupo de elite: os funcionários da Coordenadoria de Acervo Especializado. E em tese deveria ser especializada também, embora a Casa não nos proporcione nenhum tipo de treinamento, nem nos libere de nossos deveres para estudar. Vamos aprendendo, alguns em cursos feitos por conta própria, mas a maior parte no dia-a-dia, os fundamentos de História, Artes e Literatura que deveriam se constituir na base do nosso curso.

No meu caso, tive a sorte de já trazer alguma bagagem cultural e de ter sido lotada na Divisão de Manuscritos, onde há algo a fazer além de processamento e atendimento. Não que eu não faça isso também! Aliás, faço bastante: a maior parte de meu trabalho consiste em ler manuscritos (do século XIX para cá) e preencher planilhas com a sua descrição física e um resumo do conteúdo. No momento estou trabalhando com a coleção do jornalista Paulo Tacla, um armário de 1,80 m repleto do início ao fim de cartas, cartões, rascunhos de discurso e recortes de periódico. Também estou ajudando a inventariar o acervo (de cerca de 800.000 itens) da Divisão, o que significa duas ou três horas por dia rasgando pastas de papel ácido e as trocando por pastas de papel alcalino, nas quais transcrevo o resumo do documento ali contido. No mês passado escrevi 392 vezes (juro!) a frase Carta de João Capistrano de Abreu a João Lúcio de Azevedo, mudando apenas o local e a data. Sabem aquele castigo que davam na escola, de escrever trocentas vezes a mesma coisa? É mais ou menos por aí.

Outro ponto alto da minha rotina acontece nas manhãs de quinta e sexta-feira, quando estou no plantão de atendimento. Por determinação da chefia, tenho que ficar das 10 às 11:30 da manhã, nesses dois dias, sentada ao balcão, recebendo, tirando dúvidas e encaminhando os pedidos dos leitores. Entretanto, quando não estou no plantão e os funcionários encarregados de pegar as obras não estão à vista, posso ser solicitada a parar o que estiver fazendo e localizar livros e manuscritos nos armários. Este post, por exemplo... desde que comecei a escrevê-lo já fui interrompida duas vezes. E haja inspiração!

Mas o que descrevi até agora foi apenas a parte rotineira (e freqüentemente chata) do meu trabalho. Falta falar do melhor... daquilo que se constitui no meu diferencial em relação a meus colegas... daquelas coisas que Merege faz bem, e que, por isso, hoje em dia só Merege faz. Aí vocês vão ver por que continuo gostando de trabalhar aqui, e por que acho que estou no lugar certo para exercitar minha criatividade.

Vão ver... mas só no próximo post, pois este já está bem longo. E, lamento, só na semana que vem. Amanhã e depois vai ser impossível, pois minha cota do inventário está atrasadíssima... e eu terei que ficar no balcão praticamente a manhã inteira. Fazer o quê?

Então, a vocês que ficam,

Saudações barnabés!

Abraços a todos,

Ana Lúcia

segunda-feira, agosto 23, 2004

Fantastik: uma revista sobre fantasy fiction

Oi, Pessoas!! Tudo bem?

Hoje quero trazer uma dica de leitura especial para aqueles que gostam de fantasy fiction, em livros, quadrinhos, cinema e até mesmo games e RPG. Trata-se da revista Fantastik, lançada pela Mythos Editora, a qual vem preencher uma lacuna entre as publicações voltadas para o gênero.

Ao contrário da maior parte das revistas (há exceções, mas são raras), que costuma ser voltada para RPG e jogos e/ou publicar quadrinhos, Fantastiktem o diferencial de trazer vários (bons) artigos sobre Literatura, como uma análise das obras de fantasy no Brasil, assinada por Roberto de Sousa Causo (Número Zero), uma entrevista com a autora da série O Mundo de Crestomanci, Diana Wynne Jones, considerada por muitos uma precursora de J. K. Rowling (Número 1) e inúmeras resenhas de obras literárias. A revista traz também novidades no mundo dos games, quadrinhos e cinema: o Número Zero focalizava Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, que estava sendo lançado na época, enquanto o Número 1 tem matérias sobre Hellboy e Eu, Robô. Entre os dois, houve o Número Meio (sim, isso mesmo, o Número 0,5!!), lançado talvez como forma de testar o mercado para ver se Fantastik seria bem aceita pelo público. Pessoalmente, espero que sim... e que em breve eles anunciem que estão aceitando colaboração dos leitores!! ;)

Sem querer fazer propaganda da editora, não posso me furtar a comentar outra novidade que vi no site: eles estão publicando a primeira aventura da série Elfquest, de Wendy e Richard Pini, que conquistou fãs em todo o mundo na década de 80. Eu fui uma dessas fãs, especialmente do Strongbow, o caçador caladão que inspirou alguns personagens de meus contos, inclusive um outro Caçador que alguns de vocês já conhecem. Infelizmente, a história só está sendo lançada no Brasil agora, e ainda por cima em P&B e em formato pequeno... mas, mesmo assim, vale a pena!

Para quem não conhece a série, o site oficial (em Inglês) conta tudo. Já para quem não conhece O Caçador, basta procurar a sinopse e um trecho nos arquivos da Estante Mágica. Acho que vocês vão gostar... ou, pelo menos, apreciar o esforço.

E para quem leu e gostou, ou para quem simplesmente torce por mim, uma novidade. A data e o evento ainda não estão confirmados, mas é bem provável que o livro tenha um lançamento em São Paulo, na última semana de Outubro. Anotem, amigas e amigos paulistas! Quem sabe não teremos oportunidade de nos conhecer pessoalmente?

Abraços a todos (virtuais, por enquanto)!

Até a próxima!

Ana Lúcia

segunda-feira, agosto 16, 2004

Ana e os Lobos: poema bissexto

Pessoas,

Hoje quero postar aqui um poema que acabo de escrever. Se fosse impresso ainda teria cheirinho de tinta... mas, como este é um diário virtual, usem o faz-de-conta, OK? ;)

Este poema surgiu a partir da réplica que eu dei à pergunta "Qual é a porção lobo que existe em você?", da comunidade do Orkut Lobos : lindos animais. À parte as linhas tortas surgidas daí(um dia eu juro que aprendo a escrever poesia... ainda não foi desta vez!), foi curioso notar como a maior parte das pessoas que diz gostar de lobos se identifica com os solitários, que, na Natureza, não são encontrados com freqüência. Eu sou exatamente o contrário: um espírito clânico. E, dentre os muitos simbolismos do Lobo, aquele com o que mais me identifico é o de algumas nações nativas americanas, que relacionam o Lobo com o arquétipo do Mestre. Quando ele aparece como totem, isso significa uma propensão ou uma necessidade de estar junto, de transmitir sabedoria ou conhecimento ou pelo menos partilhar vivências e histórias... que é, como todos sabem, o que mais gosto de fazer!

Então, para vocês, que uivam sob a mesma lua, aí vai o poema:

.....

Ana e os Lobos

Eu e os lobos? Que dizer dos lobos?
São belos animais. Fortes e sábios,
Fiéis e cautelosos (não são bobos!).
Sua experiência, seu tempo, seu canto,
Passam adiante. São bons pais. Bons mestres.
Brincam de rolar com seus filhotes
- mais do que eu, Coiote.
Alguns são pioneiros... solitários.
Outros, como eu, espíritos gregários.
Mas em comum têm o cantar canções,
O vaguear na noite da floresta,
O mergulho do seu corpo ágil,
Feito flecha,
No espaço e no tempo.
Sem planos. Sem memória.
Assim sou eu, também, pensando histórias.
Vou inventando... sonhando... Vou voando,
Dando a mim mesma o máximo de corda.
E quando o sonho toma forma, corro atrás,
- bem como o Lobo faz.


.....

Boa caçada... e até a próxima!

Abraços a todos,

Ana Lúcia

terça-feira, agosto 10, 2004

Luciana: Pequeno Passo, Gigantesco Salto

Oi, Pessoas!! Tudo bem?

Pois é... Vários de vocês andam perguntando pela Luciana, que esteve por muito tempo ausente do blog, salvo por uma ou outra citação rápida. Eu costumava falar bastante a seu respeito, e de repente parei... não foi?

Na verdade, existe uma explicação, que eu só posso dar agora: na sua versão anterior, a Estante Mágica passou muito tempo na lista de “indicações” do Blig e, com isso, recebeu visitas não apenas de pessoas legais, mas também daquele tipo de gente que entra nos blogs alheios para ofender e ridicularizar o autor. Eu pedi que retirassem o blog da lista, mas isso só aconteceu após uns quatro meses, mais ou menos... e, por isso, preferi me restringir a artigos e informações sobre meus cursos e meu livro, sem entrar muito no campo pessoal. Não que, com isso, os “engraçadinhos” tenham parado de aparecer... Mas prefiro um milhão de vezes ler algo do tipo “sua nerd, vá praquele lugar, você escreve demais” do que insultos dirigidos à Luciana, como vi acontecer em outros blogs que falam sobre crianças. Isso é muito triste, revoltante mesmo... Mas é verdade.

Agora, que não figuro mais em nenhuma lista infame e voltamos a estar entre amigos, é com prazer que volto a falar sobre a Luciana, especialmente sobre as mudanças que ocorreram nos últimos meses. Para quem não sabe, minha filha está com três anos e meio, tem cachinhos louros, é alegre, marota e muito, muito tagarela (a quem será que ela puxou?). Seu gosto por livros e por ouvir histórias persiste, e percebemos um talento ou, pelo menos, uma atração pela dança do tipo clássico. Ela está muito esperta para a idade, argumenta muito bem (embora com uma lógica toda particular) e tem um temperamento meio autoritário, mas que quase sempre conseguimos contornar (sem dúvida, O Reizinho Mandão será uma das próximas “leituras estratégicas” da Mamãe). Na creche, está aprendendo as primeiras letras, muitas das quais já conhece e até reproduz... Enfim, está crescendo e se desenvolvendo a olhos vistos, o que nos deixa felizes e orgulhosos da nossa grande pequena!!

Mas o maior progresso, o que mais se pode notar porque realmente aconteceu em etapas bem marcantes, foi no campo do desenho. No início do ano, Luciana só fazia rabiscos; há três meses, começou a fazer, uma vez por outra, aqueles desenhos do tipo célula (um círculo com pontos e traços, como se fossem olhos): e de repente, de duas semanas para cá, lá está ela desenhando pessoas, com olhos, boca, orelhas (raramente lembra do nariz), um corpo pequeno, braços, pernas e mãos e pés com dedos longuíssimos. Mais que isso: ela coloca, espontaneamente, detalhes que têm a ver com o personagem representado. O pai ganha óculos; a mãe, cabelos mais longos; o Nemo, barbatanas e o Capitão Gancho, um grande chapéu. Quanto aos auto-retratos, são o máximo dos máximos, pois Lulu nunca se esquece de que seus cabelos são enroladinhos e faz um monte de círculos no alto da cabeça do boneco! E amarelos, se houver lápis ou giz de cera disponíveis...!

A essa altura, sei o que vocês estão pensando. Com malícia, condescendência ou (possivelmente) compreensão, devem estar achando que sou uma mãe muito “coruja” e que, ora bolas, por mais inteligente que seja, a Luciana não está fazendo nada diferente do que qualquer criança da sua idade. É isso, não é?

Pois saibam que tenho plena consciência das duas coisas. Uma, de ser uma tremenda "coruja", como aliás toda mãe que se preza. Outra, de que a Lulu é perfeitamente normal, não está superadiantada para a idade, está se desenvolvendo dentro dos padrões esperados. O que me surpreende e ao pai dela, e que nos deixa maravilhados (e se possível ainda mais "bobos" é ver como ela chegou a isso numa espécie de salto, sem que percebêssemos a transição... como tão de repente aquele bebê que mal sabia andar e falar se transformou nessa garotinha cheia de frases, trejeitos e muita, muita vontade própria. É mais ou menos como se tivéssemos ido dormir, deixando no jardim um botão de rosa... e de manhã a encontrássemos aberta, com pétalas de cores ainda mais belas do que jamais teríamos esperado.

Sabemos que nossa pequena flor ainda não está completamente desabrochada: que ainda precisa de muito alimento, muito Sol, muito cuidado e carinho de seus jardineiros. Mas as cores que estão dentro dela não seremos nós a lhe dar: elas já estão lá. E por mais que o presenciemos, jamais nos cansaremos de nos maravilhar com o espetáculo de cada nova pétala que se abre. Ou de constatar, como diria João Cabral, que

(...) as mãos que fazem coisas
nas suas já se adivinham
...

.....

Pois é... Ela está crescendo... O que mais posso dizer?

.....

Abraços pra vocês,

Ana Lúcia

segunda-feira, agosto 02, 2004

O Fabuloso Maurício



Quando os ratos descobriram os livros - e a noção de livros, de um modo geral, ainda era difícil para a maioria dos mais velhos - encontraram, na livraria que invadiam todas as noites, O Livro.

Era um livro incrível(...).

Lá havia animais usando roupas. Havia um coelho que caminhava nas patas de trás e usava terno azul. Havia um rato de chapéu que tinha uma espada e usava um grande colete vermelho, completo, com um relógio numa corrente. Até a serpente usava colarinho e gravata. E todos eles falavam, e nenhum deles comia nenhum dos outros, e - era esta a parte inacreditável - todos falavam com humanos, que os trtavam bem, como humanos pequenos (...).

Sim, O Sr. Coelho vive uma aventura era motivo de muitas discussões entre os Mutantes. Qual seria sua finalidade? Seria, como Perigoso Feijão acreditava, uma visão de algum futuro glorioso? Teria sido feito por humanos? A livraria tinha sido feita para humanos, é verdade, mas com certeza os humanos não fariam um livro sobre Ratânio Roberto, o rato que usava chapéu, enquanto ao mesmo tempo envenenavam ratos debaixo dos assoalhos. Ou fariam? Quanta loucura seria preciso para pensar desse jeito?


*****

Estas são as elocubrações que ocupam a mente de Perigoso Feijão, Pêssegos, Sardinhas, Bronzeado Intenso e dos demais membros de sua comunidade de ratos mutantes. Tornados racionais através da ingestão de restos da cozinha - ou do laboratório? - de uma universidade de bruxos, eles viajam na companhia de Maurício (um gato malandro, mas no fundo de bom coração) e de um garoto flautista, aplicando pequenos golpes - na verdade, um único golpe - em cidades do interior. Numa delas, entretanto, eles se deparam com algo bem mais complexo e assustador do que todas as coisas que tinham visto até agora, e devem usar de todo o seu talento, coragem e um bocado de sorte para escapar com vida. Ou com as sete vidas, no caso de Maurício...!

Essa história ágil, bem-escrita e que foge ao lugar-comum (acreditem: em fantasy, isso é bastante difícil), saiu da pena mágica de Terry Pratchett, um dos escritores mais conhecidos, prolíficos e criativos do gênero. Pratchett é o criador da série Discworld, cujo estilo humorístico (e um tanto cínico) já conquistou fãs no mundo inteiro, e da qual já foram lançados seis volumes no Brasil. Esta nova obra, entretanto, é independente... e um dos melhores livros que li nos últimos tempos.

Se alguém quiser seguir essa dica, estes são os dados:

PRATCHETT, Terry. O Fabuloso Maurício e seus roedores letrados. São Paulo : Conrad, 2004.

Leiam... e depois me digam...!

Abraços a todos,

Ana

segunda-feira, julho 26, 2004

Minhas Febres Ficcionais

Pessoas Queridas,

Antes de mais nada, quero que saibam que estou muito feliz por vocês continuarem comigo. É claro que nunca duvidei de sua amizade, de seu carinho... mas, por outro lado, estive afastada da rede durante um bom tempo, e os livros da Estante estavam começando a criar teia de aranha. Felizmente, parece que esse período está chegando ao fim, ao mesmo tempo em que eu vou me recobrando de mais uma das minhas febres ficcionais.

Vocês já ouviram, com certeza, falar em “bloqueio de escritor”: aquelas fases pelas quais todos nós (a não ser os extremamente disciplinados, suponho) passamos no decorrer de nossas vidas de escrevinhadores amadores ou profissionais. Isso aparece muito nos filmes... a pessoa se senta diante do papel (em geral é uma máquina de escrever, ultimamente já aparecem computadores) e fica durante horas fitando aquele espaço em branco. No caso dos mais agitados, aparece depois uma outra cena em que ele/ela arranca o papel da máquina e o amassa e o joga no chão já coberto de bolinhas de papel... e assim vai, numa seqüência que já conhecemos, até que aconteça o fato que vai tirar nosso/a valente escriba desse estado de suspensão.

Ao longo dos 30 anos em que venho escrevendo (não: isto não é um exagero), eu passei por essas fases com freqüência, ficando longos períodos, às vezes anos inteiros, sem produzir uma linha sequer; Atualmente, as exigências do trabalho, o estímulo proporcionado pelos leitores deste blog e de meu livro (que los hay, los hay!) e um mínimo de disciplina conseguida a duras penas me levam a manter uma certa “produção mínima”, embora nem sempre no campo ficcional. Então, à parte algumas linhas acrescentadas a um conto, uma ou outra revisão e um poeminha bissexto, fico escrevendo apenas artigos, textos para a Biblioteca Nacional e reflexões em meu diário. E, como já me conheço de outros Carnavais, fico esperando a próxima onda que vai me levantar e me levar a produzir páginas e mais páginas de prosa.

Se alguém me perguntar, não sei dizer como acontece. Pode ter a ver com a posição dos astros – algo como Mercúrio conjunto a Marte ou em trígono com a Lua – mas também, possivelmente, com algum estímulo externo, como um livro que eu tenha lido, uma imagem num filme, algo que me disseram durante uma conversa. Realmente, não sei explicar. Só sei que, ocasionalmente, surge alguma situação que aciona um “mecanismo” dentro de mim... e eu me vejo compelida a escrever, a escrever, a escrever febrilmente e quase sem descanso.

Esses períodos são muito produtivos, mas também me deixam cansada, talvez da mesma forma que acontece com um folhetinista ou um autor de novela. Nesse período, leio muito pouco, assisto pouco a filmes, emprego na escrita a maior parte do meu tempo de lazer. E outro tipo de tempo também, confesso... Em 1991, escrevi capítulos e capítulos de “O Clã da Raposa Branca” (da fase da fantasy pré-histórica) na empresa em que fazia estágio; “O Caçador” foi escrito na nossa casa em Lisboa, e os anos (1995 e 96) em que trabalhei na PUC foram muito áridos, anos de bloqueio de escritor, mas em 1997 recomecei a escrever as histórias de Athelgard, e não pequena parte delas foi rabiscada durante minhas aulas do Mestrado. Felizmente, o auge da febre havia cessado na época de escrever a dissertação. Pois como eu poderia falar sobre Tecnologia da Informação com todos aqueles caçadores, guerreiros e saltimbancos aos pulos na minha cabeça?

As últimas “febres ficcionais” têm sido mais disciplinadas, mas são perceptíveis mesmo assim. No ano passado, eu estava numa fase muito segura e tranqüila. Escrevi apenas um conto, “O Potro Dourado”, mas revisei as 680 páginas da minha trilogia “A Irmandade” (todo escritor de fantasy que se preza deve ter sua própria trilogia!) e reescrevi trechos de “O Caçador”. Também publiquei artigos em revistas e escrevi inúmeros posts para a Estante que demandaram pesquisa e uma certa técnica, se não um pouquinho de criatividade. Em suma, um período muito bom.

Já este ano, depois de publicar “O Caçador”, eis que uma onda me pegou de surpresa... e, assim, passei estes últimos meses imersa num universo de ficção do qual é difícil sair para textos mais ligados ao cotidiano. Ao mesmo tempo, tive que assumir novas tarefas no trabalho e acabei por me comprometer, de certa forma, com atividades na Casa da Leitura, sem falar na vida pessoal - que eu jamais deixaria de lado – e no esforço para promover, um pouquinho que fosse, o meu primeiro livro. Com tudo isso, a Estante Mágica ficou meio abandonada, e só posso dizer em minha defesa que foi por uma boa causa. Quer dizer... Bom... Espero que ninguém discorde disso depois de ler “O Caçador” ou os contos de Athelgard! ;)

Enfim, pessoal... É isso. Entre bloqueios de escritor, períodos tranqüilos e disciplinados (meus prediletos) e il furore di scribere que me ataca de vez em quando, aqui estou eu. E devo dizer, mais uma vez, que é um grande prazer e uma grande honra tê-los comigo.

Até a próxima!

Abraços pra vocês,

Ana Lúcia

segunda-feira, julho 19, 2004

Bem-Vindos à Estante Mágica!!!

Olá, Pessoas!! Sejam bem-vindos à minha Estante Mágica!!

Esta é a segunda vez que este blog muda de endereço. O template permanece o mesmo, ao menos por enquanto, mas ainda faltam alguns ajustes. O conteúdo, vocês já sabem... Literatura, Leitura, História, Mitologia e um pouquinho do cotidiano de uma escritora agora já publicada, mas (ainda) quase totalmente desconhecida!

Para marcar meu retorno à blogosfera, pensei em escrever um post especial - era o que todos nós merecíamos, eu acho -, mas não consegui me decidir a respeito do tema. Então, baseada na grande possibilidade de a maior parte de vocês, que virão aqui nos primeiros tempos, já me conhecer - e, portanto, ser condescendente com as minhas pequenas maluquices - decidi republicar de uma só vez cerca de 30 artigos das primeiras versões da Estante Mágica, e ainda alguns textos que, já há algum tempo, venho querendo incluir na página. Mais tarde, eles irão desaparecer da lista de "últimos posts publicados" e ficarão acessíveis através de um link para aqueles que desejarem conhecer melhor meu trabalho como escritora de ficção, mas por enquanto é só consultar a lista para lê-los.

Aqui vai uma antecipação do conteúdo:

Minha Autobiografia é um texto que escrevi sobre minha vida, minha trajetória pessoal e profissional, que culmina com a publicação de O Caçador. Desse meu primeiro livro independente, coloquei também a sinopse e o trecho inicial, como acabou ficando na obra publicada. Alguns de vocês, que leram a versão anterior, talvez possam notar mudanças no diálogo... e algumas delas foram sugeridas por leitores do blog. Só pra vocês sentirem como são importantes! ;)

Coloquei também alguns textos sobre Athelgard, o mundo em que se desenvolve a maior parte de meus contos e romances, e os trechos iniciais de dois desses trabalhos: a novela O Jogo do Equilíbrio, que pretendo publicar dentro de um ano, e um conto curto chamado O Potro Dourado. Gostaria muito que vocês deixassem seus comentários a respeito e me informassem sobre seu interesse em ler o texto completo, assim como trechos de outros contos. Lembro a todos que minhas histórias não são muito realistas, fazem o gênero fantasy fiction... sobre o qual, aliás, também publiquei e republiquei alguns posts.

Em suma, gostaria de convidá-los a percorrer esses textos e visitar ou revisitar aqueles que lhes parecerem interessantes. Ao longo desta semana, tentarei avisar a todos sobre meu novo endereço, e recomeçarei a postar regularmente na semana que vem. Espero que vocês todos continuem comigo, e tragam seus amigos para uma visita, a fim de que nosso círculo aumente cada vez mais... e que sempre tenhamos novas histórias para partilhar!

Um grande abraço a todos!

Ana

sexta-feira, julho 09, 2004

Curso : Os Contos de Fadas

Descrição e Objetivo

Este curso enfoca os contos de fadas sob uma ótica multidisciplinar, situando-os como fenômeno histórico e literário e discutindo algumas das interpretações relativas ao seu significado.

O objetivo é apresentar esses contos como um patrimônio universal, com elementos comuns ao imaginário de todas as culturas, cuja transmissão é constantemente perpetuada e renovada através de narradores e escritores contemporâneos.


Conteúdo

- O que é conto de fadas? : definições do gênero segundo várias abordagens.
- Tipologia dos contos de fadas. O conto popular e o conto literário.
- A estrutura narrativa e os motivos comuns.
- Contos de fadas, símbolos e arquétipos universais.
- A gênese dos contos de fadas: os primeiros contadores e a tradição oral.
- Ritos, mitos e contos.
- Fontes de origem: Antigüidade, Oriente e o mundo céltico-bretão.
- O universo medieval e os contos de fadas.
- O maravilhoso frente ao racional : os contos de fadas e o Século das Luzes.
- Os contos de fadas a partir do séc. XVIII. As primeiras recolhas.
- Charles Perrault e o surgimento da Literatura Infantil.
- Os Irmãos Grimm.
- Hans Christian Andersen.
- Contos literários do século XIX.
- A transmissão para Portugal e para o Brasil: Romero, Cascudo, Lobato.
- Os contos de fadas no mundo atual.
- Contos modernos e revisitados. Autores contemporâneos.
- Pedagogos, terapeutas e narradores modernos: a redescoberta dos contos de fadas como chave para o autoconhecimento.

Público-alvo

Educadores, professores, bibliotecários, contadores de histórias, pesquisadores e amadores de Folclore, História e Literatura.

Duração

Este curso pode se adaptar às necessidades e demandas do público, sendo ministrado de forma compacta (encontro único de 4 horas ou dois encontros de 2 horas) ou com maior aprofundamento do assunto e a inclusão de leituras e atividades relacionadas (duração de 10 ou 16 horas, divididas de acordo com a conveniência do grupo).

Para saber mais, envie-me um e-mail!

O Jogo do Equilíbrio : primeiras páginas

Uma das piores coisas do mundo é acordar na manhã seguinte a uma briga. Esse foi o meu primeiro pensamento, quando, antes mesmo de abrir os olhos, um movimento involuntário reavivou a dor na minha testa. Mariotte me acertara em cheio daquela vez. Infelizmente, eu não fora esperto o bastante para deixar que ela o fizesse no início, antes que quase todos os pratos da casa tivessem sido quebrados pela sua fúria. Eu devia ter sabido que não adiantaria tentar me esquivar e justificar o meu atraso, quando, numa noite que julgava especial, ela me esperava há várias horas, com um jantar que levara a tarde toda a preparar e uma criança que a aborrecera um bocado antes de dormir. Bom, pior para mim, pensei, enquanto desprendia cuidadosamente os dedinhos dele da minha barba. Eu levara um bom tempo a acalmá-lo e fazê-lo adormecer de novo, e isso antes de me dar ao trabalho de varrer todos os cacos para que ele não viesse a pisá-los com os pés descalços. Depois, já com uma boa dose de dor de cabeça, tivera que esfregar o chão e as paredes, removendo o vinho e a comida que Mariotte fizera voar pelos ares. Meus pratos favoritos, para ser exato. Ela conseguira perpetrar uma vingança completa.

Respirei fundo antes de abrir os olhos. Alain dormia profundamente ao meu lado, meio de bruços, com uma das faces enterrada no travesseiro e os cachos úmidos de suor. Sem fazer barulho, levantei-me, vesti as calças e uma túnica leve e, metendo os pés nas sandálias, fui até a sala para avaliar o trabalho da madrugada. Exceto pelas manchas no tapete, estava tudo em ordem, como se nada houvesse acontecido ali. Bem que podia ter sido mesmo um sonho, pensei, enquanto me agachava para acender o fogo. Bem que Mariotte podia ter ido apenas dormir na casa do padrasto, e aparecer agora mesmo com o pão e o leite para o nosso desjejum. E bem que ela podia fazer isso de qualquer jeito, apesar da nossa briga da noite anterior. Não tinha sido a primeira, afinal, nem seria a última. Ela pouparia um bocado de esforço a nós dois se voltasse de uma vez.

Deixei a chaleira no fogo enquanto ia rapidamente até lá fora. Quando voltei, com um jarro sobre o ombro e os cabelos molhados, a água borbulhava, e preparei um chá para aliviar a dor de cabeça. Dei mais uma olhada em Alain enquanto a bebida esfriava. O sono agora já não era tão pesado, ele resmungava e contraía as pálpebras, e provavelmente iria acordar antes que eu pudesse estar de volta das compras. Então, se não me encontrasse por perto, ia fazer um escândalo que acordaria toda a vizinhança, e depois ficaria emburrado boa parte da manhã. Isso era tudo de que eu não precisava para começar o dia, por isso fui bater à porta de Rowenna.

- Ah! Bom dia, Cyprien. Isto é, se é que alguém pode ter um bom dia, depois de uma noite como a de ontem - disse ela, examinando minha testa com o cenho franzido. - Mas que horror que está isso aqui! Por que você não fez umas compressas? Agora vai levar um quarto de Lua para desaparecer.

- Isso é o de menos - suspirei. - Talvez até me ajude a fazer logo as pazes com Mariotte. A raiva ia durar mais, se ela não tivesse conseguido me acertar nem uma vez com aqueles pratos.

- Lá isso é verdade. E ela chegou a quebrar muitos? Pelo estardalhaço, deve ter sido pelo menos uma dúzia.

- Nove, pelas minhas contas. E duas travessas, sendo uma aquela colorida que foi da minha avó. Se eu soubesse disso, teria dado um jeito de vendê-la. Estão pagando um bom dinheiro pela antiga louça do Povo Alto.

- Pois é, mas agora é tarde - disse Rowenna. - E você ainda vai ter que comprar uns pratos novos. Está saindo para fazer isso?

- Talvez, se Bendoux já tiver aberto a loja. Mas na verdade eu ia apenas comprar coisas para o desjejum. Você podia dar uma olhada no Alain enquanto isso? Ele está dormindo, mas vai armar uma cena, se acordar e não encontrar ninguém.

Rowenna atravessou a rua com os pés descalços e entrou em minha casa. Felizmente, eu tivera todo o cuidado ao varrer os cacos. Ela se sentou ao lado da janela, trançando os cabelos, e eu tomei meu chá enquanto avaliava os estragos no tapete. Valeria a pena tentar salvá-lo?

- Rowenna, o que é que pode tirar as manchas desse tapete?

- Depende - respondeu ela, distraída. - Manchas de quê?

Enumerei os pratos do jantar, mas, antes que chegasse à sobremesa, ela me fez parar e sugeriu que eu arranjasse um tapete novo. Falar do creme de leite não ia melhorar as coisas, por isso me resignei a gastar mais algumas moedas na oficina de Jarmille. Abri a bolsa para ver se poderia ser em breve. Infelizmente, algo me dizia que não.

- Bom, vou tratar das compras - disse eu, pegando o chapéu. - Quer que eu traga alguma coisa? Pão, ovos, leite?

- Para mim, não, mas você pode trazer o leite da Colette - disse Rowenna. - No estado dela, é preciso se alimentar bem, e Alfonz não vai se levantar tão cedo. Ouviu o barulho? Esta noite, ele trouxe mais dois ou três cavalos. Espero que isso não venha a acabar mal.

Eu também - falei, pensando na responsabilidade que me caberia, se Alfonz fosse preso, junto a Colette e à criança que ela esperava. A família deles era bem grande, felizmente, mas, como seu cunhado mais velho - isso admitindo que Mariotte voltaria para mim - eu certamente não poderia deixar de me envolver com o drama da jovem esposa deixada só e grávida.

Principalmente porque fui eu que ensinei o marido dela a roubar cavalos.

O Potro Dourado: primeiras páginas

O vento ainda soprava quando Mikela saiu da tenda. Em volta do acampamento, a chuva tinha deixado seus sinais: folhas lustrosas e gotejantes nos arbustos, galhos partidos, nuvens espessas e baixas no céu sombrio. As tendas tinham resistido, mas o toldo que protegia o fogão de pedras desabara, e um caldeirão, esquecido ali pelas mulheres, transbordava com a água da chuva. Que bom seria, pensou Mikela, se em vez disso pudessem vê-lo sempre cheio de comida!

Recolhendo as saias, ela se agachou sobre as cinzas molhadas, esvaziou o caldeirão, ouvindo o rumor da conversa na tenda vizinha. Então, o marido de Blanche já tinha voltado, assim como o outro caldeireiro, o gordo Samael. Talvez tivessem vindo mais cedo por causa da chuva. Isso não era bom, pois certamente queria dizer que não tinham achado trabalho, mas era o que qualquer homem sensato teria feito. Qualquer um, até um cabeça-dura como Estienne. E, de fato, se os seus olhos não a enganavam, era ele mesmo que vinha vindo, puxando o cavalo pelas rédeas, enquanto Estin se encolhia sob uma manta no alto da carroça.

- Alô, mãezinha! - O vento trouxe até ela a voz alegre, não a do filho, mas a do marido. Graças a Deus, pelo jeito de falar, ele tivera sorte. Molhado até os ossos, ele veio ao encontro da mulher, deixando que Estin conduzisse a carroça até o abrigo das árvores.

- Conseguimos trabalho - foi logo dizendo Estienne, antes de beijá-la. - É numa fazenda aqui perto, precisam de vários consertos e de algumas ferramentas. Há trabalho para uns cinco dias, talvez mais. E eu já trouxe uma parte do pagamento. Consegui até um frango. Há quanto tempo seus filhos não vêem carne, hem, mãezinha?

- Há muito, mas não morreram por isso e hoje vão comer bem - disse Mikela, e o homem sorriu, pois tinha ouvido o que esperava. Mão na mão, os dois olharam em torno, contemplando sua única riqueza. Agnès, de quatro anos, que brincava ao lado da tenda com a prima Amine; Lorenz, ensaiando os primeiros passos; Estin, ocupado em secar o pêlo dos cavalos com a ajuda do amigo Samy. E nesse momento os olhos do pai se estreitaram, percebendo a ausência cada vez mais comum nos últimos tempos.

- Onde está o Zemel? - Uma censura, mais do que uma pergunta. - Até onde eu sei, é tarefa dele tratar dos cavalos.

- É, sim. Mas ele não está aqui. Ele foi até a aldeia, logo depois que vocês saíram. Deve ter ficado em algum lugar, esperando passar a chuva.

- Hah! Eu sabia! - resmungou Estienne. - Perambulando por aí, como sempre. É disso que ele gosta.

- Ele foi tentar a sorte - disse Mikela. - Você sabe que ele faz o melhor que pode.

- O que não é muito.

- Não é culpa dele. E também não é culpa de meu pai - acrescentou ela, em tom defensivo. - Ele não queria ter ficado aleijado como ficou. Não queria ter parado de treinar Zemel. E, se ele diz que devíamos ir para Pwilrie...

- Ah, não! Não de novo!

- ... Então, talvez devêssemos tentar, ao menos por algum tempo - insistiu Mikela. Contrariado, Estienne sacudiu a cabeça, deixando claro que não queria falar no assunto, embora ambos soubessem que não podia ignorá-lo. Não se quisesse o bem de Zemel, como queria o dos outros filhos. E no entanto aquilo podia representar um golpe duro para toda a família.

- Vamos pensar nisso numa outra hora - disse Mikela, por fim, diante da obstinação do marido. - Vamos pegar as coisas que você trouxe e acender o fogo. Você e Estin vão se secar e mudar de roupa e eu vou começar a fazer um ensopado. Você vai se sentir bem melhor, vai pensar melhor... assim que tiver posto alguma coisa dentro da barriga.

quinta-feira, julho 08, 2004

O Caçador: primeiras páginas

Antes que o Sol nascesse já havia muitas léguas de caminho em seus pés, e era ao som de seus passos, com a luz surgindo entre as faias, que erguiam vôo os primeiros pássaros da manhã. Era um rapaz alto, de ombros largos e braços sólidos, que, na última estação, acabara enfim de crescer tudo que lhe era devido. Por causa disso a jaqueta de couro, herdada de um homem menor, tivera que ser posta de lado, e durante o último Inverno ele se abrigara com um manto de peles, costuradas com uma agulha de osso e tendões de veado. Agora era de novo Primavera, e à agradável sensação de ter os pés secos somava-se o cheiro vivo do ar e das árvores, misturado ao aroma do pão que vinha dos fornos do castelo. Um pedaço de pão quente, hummm... Com mel... Na sua imaginação, ele antecipava a chegada, a recepção sempre festiva das mulheres, que admiravam as peças de caça que trazia e o convidavam para comer e descansar perto do fogo. Além disso, falavam com ele, uma tagarelice sem fim que nem sempre entendia, mas que era bem-vinda após um quarto de Lua ouvindo apenas os sons da floresta. Não que também não os apreciasse, mas gostava de ter com quem falar, ao menos para se certificar de que ainda sabia fazê-lo. Melhor ainda era cantar, pois ajudava a encurtar o caminho. Agora mesmo, seguindo a trilha, ele entoava algumas notas entre os lábios quase fechados, um som tão baixo que ninguém o teria notado na escuridão da floresta; mas a voz se tornava mais clara à medida em que o Sol se erguia, e assim, a vinte passos dos portões, a cantiga chegou finalmente aos ouvidos do sentinela.

Como sempre, o homem cochilava em seu posto, apoiado na lança que jamais conhecera uma batalha. Esse, aliás, era também o caso do seu dono, embora se tratasse de um veterano por quem já tinham passado muitos Invernos: um velhote de juntas duras e modos quase amigáveis, que já descria completamente da necessidade de suas funções. Tanto que mal abriu os olhos antes de deixar entrar o rapaz, embora qualquer um pudesse ver que aquelas mãos e aquele arco teriam sido bastantes para tomar o castelo. Ou será que o velho era dos que acreditavam nos boatos - era um daqueles que cuspiam para o lado, a fim de evitar o mal, enquanto juravam que a esposa do rei protegera as muralhas com um encantamento?

O caçador jamais pusera os olhos sobre a rainha. Viera para fazer o que fazia todo quarto de Lua: deixar uma parte do que conseguira, receber sua paga, voltar para a floresta. Nem as mulheres da cozinha esperavam que fosse diferente, pois agiram como sempre, empurrando-lhe comida e tagarelando sem parar enquanto ele se sentava perto do fogo, as pernas estiradas para descansar da viagem, devorando com grandes dentadas o seu desjejum. Falavam e falavam e emanavam um cheiro desconcertante, algumas delas ao menos, pensou ele, sem saber de onde vinha aquele odor que tanto o atraía. Tudo que sabia é que, a cada visita que fazia ao castelo, mais se tornava difícil partir; mas até então não conseguira entender o motivo, por isso não havia uma razão pela qual ficar. Assim, tão logo acabou de comer, ele se levantou e pegou a bolsa, preparando-se para a jornada de regresso à floresta. Estava de costas para a porta quando, de repente, uma das moças deu um pequeno grito, um alerta a partir do qual o silêncio dominou a cozinha. Inquietas, as mulheres se calaram, só restando o ruído das panelas que borbulhavam no fogo; e quando se virou, pensando em perguntar o que havia, o caçador se viu frente a frente com um homem de aspecto assustado, que já abria a boca para começar a lhe falar.

- A rainha - disse ele, e sacudiu a cabeça, sem entender o porquê da ordem que transmitia. - Você é chamado para uma audiência com ela. A sós.

- A sós...! - sussurraram as mulheres, mas o caçador não viu o medo em seus olhos, pois já tinha deixado a cozinha em companhia do mordomo. Com passos rápidos, os dois percorreram vários corredores, logo chegando a uma outra ala do castelo, onde os aposentos eram frios e quase nus. No último deles - havia um grande espelho numa das paredes, escuro como o fundo de um poço - o mordomo se esgueirou para trás de uma tapeçaria, de onde voltou com o rosto ainda mais pálido para mandar entrar o caçador.
Um fio de consciência de onde estava e de quem era o fez ajeitar as roupas antes de se apresentar perante a rainha, de olhos baixos como para qualquer estranho, mas de pé, ao menos no instante que antecedeu a ríspida ordem para se curvar. O caçador pôs um joelho no chão e esperou, até que a mesma voz o mandou erguer o rosto. À sua frente, sobre o trono, estava uma mulher de meia-idade, envolta nas peles dos arminhos que ele apanhara no início do Inverno. Não era difícil suportar seu olhar, porque nada havia nele do calor inquietante dos olhos das outras mulheres. Também não havia a benevolência com que o fitavam quando ele era mais jovem, no tempo em que mendigava os restos das cozinhas, antes que a floresta o ensinasse a ganhar seu sustento. Na rainha não havia calor ou piedade, mas também não havia ódio. Só o que havia era desprezo - e isso era tão familiar ao caçador que já deixara há muito de incomodá-lo.

- Então, você é o que traz a carne - disse a rainha, afagando a pele do arminho. - Tem uma boa faca? Uma faca afiada, que chegue até o coração? Não importa - continuou, dispensando-o, com um gesto, de desembainhar a faca de caça. - Importa que conheça bem os caminhos da floresta... Os mais profundos, para onde vão as feras...

Sorriu, com os olhos brilhando, de perversidade sem dúvida, mas o caçador não o percebeu e retribuiu o sorriso. Vendo isso, a rainha se mostrou ainda mais satisfeita: ali estava um bom servo, que a temia e a admirava e jamais a desapontaria, o homem perfeito para desempenhar aquela tarefa. Pois ela tinha uma missão para lhe dar, e esta não podia ser adiada. Era uma missão muito importante, e além disso secreta, por isso ninguém mais poderia ficar sabendo. Tendo deixado isso bem claro, a rainha se inclinou para a frente e começou a falar, sem pressa, para que o caçador não pensasse estar sendo traído por seus próprios ouvidos; mas suas palavras eram tão inacreditáveis que ele deu um salto, assim que ela revelou a missão, e gaguejou por um longo tempo até conseguir fazer uma pergunta. Ela estava brincando com ele, a sua boa senhora? Ou aquilo era uma forma de testar a sua fidelidade ao falecido rei?

- Claro que não! Quero que se livre dela, e é tudo - retrucou a rainha. - Por que outra razão eu perderia meu tempo com você?

Sem esperar resposta, ela continuou a lhe dar instruções, insistindo em que as repetisse, até se assegurar de que não tinha mais dúvidas. Então, mandou-o erguer a mão e fazer um juramento: que cumpriria a missão que lhe fora confiada, que nunca falaria sobre isso a ninguém, que levaria o segredo para o túmulo, ainda que tentassem arrancá-lo sob tortura. Sem outra saída, o rapaz jurou, e mais uma vez a rainha sorriu, dizendo que o recompensaria por seus serviços. Então, recostou-se em suas almofadas e convocou o mordomo, a quem também deu instruções, enquanto o caçador refletia sobre o que ela o encarregara de fazer. Era completamente absurdo - mas eram ordens da rainha, e, por isso, ele as repassou várias vezes até ficarem gravadas, não deixando espaço em seus pensamentos para questionar e erguendo os olhos já sombrios quando o mordomo anunciou a entrada de Sua Alteza Real. Era ela, então, que ele devia escoltar até a floresta, a fim de colher flores - ela, que jamais deveria regressar daquele passeio, e a quem ele podia... Hummm. Uma das coisas que não entendera bem fora aquela frase da rainha.

- Lembre-se: pode fazer tudo - repetiu ela, em voz baixa, enquanto a enteada se afastava a fim de buscar uma cesta para suas flores. O caçador assentiu, mais confuso que nunca, e se afastou, seguido pela princesa, que não precisara de tempo para decidir que temia mais a fúria de sua madrasta do que a companhia daquele bárbaro. Ela atravessou os portões ao seu lado, sem fugir, mas procurando manter uma pequena distância entre ambos. Parecia amedrontada, e o caçador se aproximou e pôs a mão em seu ombro, guiando-a para a trilha que se iniciava entre as árvores. Era a primeira vez, ao que se lembrava, que tocava no corpo de uma mulher, mas a sensação que poderia resultar disso estava encoberta pela piedade: ela era tão jovem e frágil, matá-la parecia tão errado quanto abater uma cria do último Outono.

O Caçador: sinopse da obra

Muitas eras atrás, num reino cujo nome ficou esquecido, um caçador recebeu uma estranha ordem de sua rainha: escoltar a princesa até a floresta e ali matá-la, levando o seu coração como prova de que a missão fora cumprida. Todos sabemos o que aconteceu a partir daí... mas apenas no que se refere à princesa. O que teria acontecido com o caçador?

Ana Lúcia Merege convida o leitor a percorrer uma das possíveis trajetórias do personagem, que passa por mil peripécias a fim de encontrar o que chama de “floresta livre”. Assim, ele pesca no rio um par de botas mágicas, presencia o encontro entre a Fera e o pai da Bela, ajuda um príncipe a despertar uma princesa que dorme... até que, finalmente, encontra uma história na qual tem a chance de desempenhar o papel principal.

Repleto de aventura e evocando, ao mesmo tempo, a magia dos contos de fadas, este livro narra também a viagem de aprendizado de um jovem em busca de sua identidade: uma jornada às vezes dura, às vezes divertida, mas que, mais cedo ou mais tarde, todos nós somos levados a empreender.

Uma Autobiografia Anacrônica



Ontem

Nasci em 1969, no Rio de Janeiro, sob o signo de Aquário. Invento histórias desde que me entendo por gente, com o incentivo do meu avô Jorge (que já está no céu, que saudade!) e da minha irmã Luiza, a quem eu vivia pedindo que desenhasse meus personagens.

Aprendi a ler com uns quatro anos, e desde aí me tornei uma tremenda “traça”. Por volta dos seis resolvi que ia ser arqueóloga, mas desisti quando me disseram que, para isso, eu teria que morar no Egito. Mesmo assim, continuei a me interessar por Arqueologia e temas ligados à Pré-História. Também gosto muito de Mitologia, especialmente a nórdica, o que viria a se refletir nos meus escritos posteriores. Mas antes disso eu acrescentei um monte de coisas à minha bagagem: pratiquei Yoga, li sobre Xamanismo, estudei Astrologia e fiz teatro amador. Na verdade, eu pensei durante um bom tempo em seguir a carreira de atriz, até descobrir que só fazia bem um certo tipo de personagem: o que tivesse a ver comigo, ou, mais exatamente, com o meu universo ficcional.

Daí a querer me tornar escritora foi muito rápido, até porque eu já estava mesmo rabiscando alguma coisa além dos indefectíveis poemas da juventude. Minhas primeiras tentativas foram no gênero romance histórico - algo vagamente ambientado na Guerra dos Farrapos - mas logo a fantasia acabou por levar a melhor. Foi quando eu comecei a escrever histórias sobre os deuses nórdicos (nenhuma sobreviveu à autocrítica) e, em seguida, sobre o universo mágico que mais tarde eu viria a chamar de Athelgard, dentro do qual estou trabalhando até hoje.

Por outro lado, eu sabia que é difícil viver de escrever ficção no Brasil, e tinha que escolher uma profissão paralela. Letras e História eram opções, mas, seguindo a dica de uma amiga, acabei por entrar para o curso de Biblioteconomia. Minhas matérias preferidas eram as que tratavam da História do Livro, da Leitura e da Literatura, e minha monografia foi sobre a influência dos árabes na cultura ibérica. Ao escrevê-la, eu já estava de malas prontas para ir viver em Portugal, onde me reuniria ao João, com quem me casei uns meses antes da formatura, e que estava fazendo mestrado em Lisboa. Enquanto vivemos lá, trabalhei na biblioteca da Universidade Católica Portuguesa - a foto aí em cima é desse tempo -, conheci lugares maravilhosos da Europa (sempre de mochila nas costas) e escrevi meu primeiro livro, O Caçador, uma fantasia baseada em vários contos de fadas.

De volta ao Brasil, fiz concurso para a Biblioteca Nacional, onde estou até hoje. Trabalho na Divisão de Manuscritos (meus preferidos são os Livros de Horas medievais), escrevo textos de divulgação e às vezes monto exposições. Fiz também mestrado em Ciência da Informação, que concluí com uma dissertação sobre a trajetória e o possível futuro do livro.

Em 2001 dei uma parada nos escritos para ter, cuidar e curtir ao máximo a minha filha Luciana, mas no ano seguinte voltei a escrever com força total. E foi quando eu senti que era hora de publicar alguma coisa, compartilhar meu universo de ficção e trocar idéias com pessoas que também gostem do gênero fantasia.

A primeira versão do blog A Estante Mágica de Ana surgiu no Blig, em Dezembro de 2002. O endereço mudou em Junho do ano seguinte (Nova Estante Mágica), quando o círculo de leitores já havia aumentado bastante. Foi principalmente o incentivo destes que me levou a publicar alguns artigos e a me decidir - na falta de um editor que se interessasse pelos originais - a publicar O Caçador de forma independente.

Contando com a ajuda de minha irmã, Maria Luiza (o que faço até hoje) e meu cunhado, Walter Vasconcelos, para a parte de programação visual, o livro saiu em Março de 2004, pela Fábrica de Livros do SENAI -Rio. Como todo livro independente, ele foi divulgado através do "boca a boca" - naquele tempo as redes sociais não eram o que são hoje! -, nos cursos que eu dava sobre contos de fadas, entre meus amigos e conhecidos e principalmente através deste blog que, agora, está em sua terceira versão.

Hoje

Muita coisa rolou desde esse recomeço. O Caçador foi republicado pela Franco Editora, de Juiz de Fora - MG, e já foi adotado em várias escolas; publiquei, primeiro independente, depois pela Editora Claridade, de São Paulo, o ensaio Os Contos de Fadas : origens, história e permanência no mundo moderno; entrei em contato com a Editora Draco, de São Paulo, e comecei a publicar uma série de fantasia ambientada em Athelgard, iniciada por O Castelo das Águias, que saiu em 2011 e é talvez meu trabalho mais conhecido até agora. Também publiquei um livro infantojuvenil, Pão e Arte, pela editora carioca Escrita Fina. E, em todo esse tempo, vêm saindo contos meus em várias antologias, além de uma ou outra organizada por mim.

Atualmente me dedico a divulgar o segundo livro da série iniciada por O Castelo das Águias, cujo título é A Ilha dos Ossos, e a escrever contos e artigos. Livros para o público infantil e infantojuvenil estão nos meus planos também. E uma coisa que adoro é ser convidada para falar sobre meu trabalho em escolas, feiras do livro e outros eventos literários!

Aqui, na Estante Mágica, publico algumas crônicas, textos sobre Literatura, Mitologia, História e assuntos correlatos, dou dicas literárias e, last but not least, falo um pouco sobre as batalhas do meu dia-a-dia, sobretudo as que têm por objetivo construir uma carreira como escritora. Espero que vocês gostem e que me ajudem a ampliar cada vez mais este círculo.

Para isso, além de acompanhar as novidades aqui da Estante, convido-os - e peço que convidem seus amigos - a me seguir no Twitter ou curtir a página da Estante no Facebook. Se preferirem, escrevam pra mim. Vou responder, ainda que possa levar um tempinho. :)

Obrigada pela visita!

quarta-feira, julho 07, 2004

A Origem do Arlequim



(...) Sem fama e sem vintém,
Amando os vinhos e os baralhos,
Eu, nesta veste de retalhos
Sou tudo quanto te convém.

(Manuel Bandeira. O Descante de Arlequim)


Já que estes dias - ao menos tradicionalmente - são dias de folia, vou aproveitar para falar de um trickster que tem tudo a ver com isso : Arlecchino. Ou, como há tantos Carnavais ouvimos dizer... o Arlequim.

Imortalizado em sua roupa de losangos, famoso pela agilidade e pela desfaçatez, o Arlequim parece ter origens mais antigas que a "Commedia dell'Arte" surgida na Itália do século XVI. Alguns autores encontram referências nos espetáculos cômicos da Grécia e da Roma antigas, conhecidos como "mimos" (daí vêm os termos "mímica" e "pantomima"), nos quais os atores usavam máscaras e provocavam o riso da platéia por meio de ditos e contorções grotescas. Também é digno de nota o parentesco entre o Arlequim e os saltimbancos medievais, igualmente vestidos de retalhos - ou de trapos - e muitas vezes, por força das circunstâncias, agindo com a esperteza e o senso de oportunidade típicos de um trickster.

Uma origem bem diferente - e sombria - para o nosso (anti-)herói é proposta por Affonso Romano de Sant'Anna, segundo o qual "Arlequim" é uma corruptela de "Harila-King", o rei de um exército bárbaro anglo-normando, que invadia, queimava, estuprava e dizimava aldeias inteiras por volta do ano 1100. A formidável maça usada pelo guerreiro viria, com o tempo, a se transformar no porrete do Arlecchino italiano, e suas vestes ensangüentadas e esfarrapadas no traje de losangos. Vale lembrar, a esse respeito, que o romance "O Arqueiro", de Bernard Cornwell (aquele da trilogia arturiana iniciada com "O Rei do Inverno"), também cita um misterioso "Arlequim", associando-o ao mesmo cenário de morte e destruição na Inglaterra do século XIV. Naturalmente, o autor atribuiu contornos ficcionais ao personagem; mas é possível que tenha se baseado nos mesmos registros citados por Sant'Anna, o qual, aliás, aponta outras semelhanças entre o chefe bárbaro e as primeiras representações teatrais do Arlequim .

Sejam quais forem suas origens mais remotas, não há dúvidas de que o Arlequim, tal como chegou até nós, foi popularizado a partir da Commedia dell'Arte, a forma de representação mais livre e burlesca que surgiu na Itália, a partir da segunda metade do século XVI, em contraponto às peças clássicas, sérias e estudadas que eram encenadas no período. Várias companhias de artistas aderiram ao novo estilo, no qual as histórias tinham temas populares, mesclando a sátira e o romance, os duelos e a comédia, as proezas acrobáticas e as frases de duplo sentido. Os tipos representados eram sempre os mesmos, figuras universais e quase caricatas: o amante, a donzela, o doutor, os serviçais. Nesse último grupo se achava o Arlecchino, ou Arlequim, o mais esperto dos criados, às vezes servidor de dois patrões. Trabalhando em proveito próprio e tirando vantagem da fraqueza dos senhores, ele aparece muitas vezes como o amado de Colombina - a criada da mocinha -, a qual, diga-se em seu favor, era sempre mais correta e leal do que seu volúvel e versátil namorado.

Foram inúmeros os atores que representaram Arlequim. Segundo Roberto Delpiano, o primeiro de que se tem notícia foi Alberto Naselli, de Bérgamo, em 1572. Seus trajes eram uma calça larga e uma jaqueta coberta de retalhos e sua máscara era feita de madeira. Com o tempo, a indumentária se tornou mais sofisticada, assim como o caráter do personagem, que passou a dar voz a críticas sociais cada vez mais incisivas.

A Commedia dell'Arte declinou a partir do século XVIII, mas a figura do Arlequim - assim como as de seus companheiros Colombina e Pedrolino, mais tarde transformado no romântico Pierrot - já havia se incorporado ao imaginário popular, surgindo principalmente nas manifestações festivas como o Carnaval. Na virada do século XIX para o XX eles foram constantemente representados por artistas como Léon Cavallo, Degas, Cézanne e Picasso; no Brasil, seriam tema constante entre os escritores modernistas, como Bandeira, Menotti del Picchia e Mário de Andrade, criador do grande trickster que é Macunaíma. As fantasias e alegorias de Carnaval também se baseavam nos personagens, sem falar nas marchinhas, que foram o tipo de música mais constante nos bailes até a década de 1960.

Mais ou menos a partir daí, uma conjunção de fatores, tais como o investimento da indústria fonográfica e da mídia em geral no espetáculo proporcionado pelas escolas de samba, acabou por mudar completamente a "cara" do nosso Carnaval. No entanto, mesmo que não o vejamos mais tomando sorvete com a Colombina, tenho a impressão de que o Arlequim continua a fazer parte da memória e da alma brasileiras. Seu espírito está presente em nós - naquela parte de nós que é brincalhona e irreverente, que vive o dia de hoje, que é criativa e contestadora e sobrevive conforme é possível. E, talvez, ele viva também em nosso lado mais romântico e arrebatado... aquele que inspirou Geraldo Carneiro e John Neschling a escrever esta canção.

Olha a Lua

Olha a Lua,
Minha doida, minha triste Colombina.
Conta por que sofres tanto assim.
Será que é pouca
a minha alma louca de Arlequim?
Dentro de mim um sonho danado
de viver embriagado
pelo lado avesso...

Olha a Lua
Antes que ela vá pra trás do edifício.
Não, não tenha medo
de falar do teu segredo,
de contar na escuridão
as penas do teu coração.

(...)