quinta-feira, março 24, 2022

A Feiticeira do Mar (Final)

             Pessoas Queridas,

Por fim, chegamos à última parte do conto.  Espero que gostem da resolução!


A Feiticeira do Mar

(Final)

Ilano pisca os olhos cheios de lágrimas enquanto ela volta as costas, sua expressão de dor e amargura confiadas tão somente ao espelho. A superfície de prata mostra também o rosto do jovem. Tem as feições contraídas, mas o brio que lhe resta é suficiente para que deixe a câmara em silêncio. Vai em direção ao túnel, ela adivinha. Vai chegar à cova antes que seja inundada na primeira maré da lua cheia, a mesma cova e o mesmo túnel por onde entrou o pastor, há um século, há dois séculos, tanto faz, são gotas num mar de solidão. Em contrapartida, os dias são enumerados, ano após ano, lua após lua, um calendário que se reinicia a cada vez que ela desperta na sala dos tesouros. A cada vez que seu pesadelo de escamas e sangue se assegura real.

Esta noite, o ciclo irá recomeçar. E Ilano não estará aqui para ver.

Quando a dor houver passado, talvez ainda reste algo de bom em suas lembranças sobre Cunala.

Ela se deita, olhos abertos fitando as espirais das conchas no teto. Pensa em Ilano, tão parecido com o pastor, mas cheio de uma doçura que nunca existiu no outro; pensa nele e fecha os olhos, as pálpebras de repente pesadas, tremores percorrendo sua pele enquanto a consciência afunda na espessa dimensão dos sonhos.

Seus membros já não lhe pertencem, ou talvez tenham deixado de existir. O corpo que coleia para fora do leito não obedece à sua vontade, e sim à voz do vingativo deus do rio, à maldição lançada sobre a jovem que rejeitou suas carícias. Ela se arrasta pelos cômodos do palácio, e o ruído de sua aproximação põe os servos em fuga enquanto a imagem do ouro acumulado invade seus pensamentos. É parte do seu fado, essa obsessão que cresce junto com a lua e a faz querer guardar seus tesouros, envolvê-los com as curvas de seu corpo e vigiá-lo para que ninguém o leve. Pois houve alguns, ela não sabe há quanto tempo, houve homens fortes e duas ou três mulheres que tentaram fazê-lo, e todos gritaram, cheios de horror e repugnância, quando a enorme serpente se ergueu diante deles. Seus rostos passam diante dela aos estilhaços, detalhes capturados em cacos de espelho: um par de olhos muito grandes, a barba escura de um heleno, os longos cachos da moça que era levada para ser escrava. Todos esses viveram com a feiticeira, todos ficaram no palácio durante a lua cheia -- todos tentaram roubar seus tesouros e por isso foram punidos. Seus traços se fundem num único rosto aterrorizado que ela revê enquanto sua pele sangra rasgada pelas arestas do metal.

Então, em meio ao pesadelo, outro rosto surge diante de Cunala. É o do amante que ela teve por anos, o único de quem se lembra com certa clareza quando está sob o efeito da maldição. Ele devia ter ido para a superfície, ela pensa, mas logo uma desconfiança vem encher seu coração de sombras: talvez, no fim, o belo pastor seja como os demais, talvez ele também tenha vindo por seu ouro e ela precise detê-lo, livrar-se da ameaça dessas mãos gananciosas antes que se fechem como garras sobre o seu tesouro. Neste momento estão vazias, ele as estende com as palmas para cima enquanto a boca se move proferindo palavras humanas. Cunala não as entende, mas algo nessa voz consegue apaziguar sua urgência de atacá-lo. Ela desliza para o lado e estende o pescoço, querendo ver e ouvir melhor o pastor de ovelhas --

-- e de repente o homem à sua frente não é ele, e sim um outro com traços parecidos e uma estranha doçura na voz. A feiticeira já o viu, não há muito tempo, mas é difícil situá-lo entre suas lembranças. Tudo que tem é o aqui e agora, um homem na câmara do tesouro, alguém que a maldição a impele a destruir. Ainda assim, o som que sai de seus lábios a faz hesitar; e quando, finalmente, o colhe em seus anéis, não é para esmagá-lo, e sim para trazê-lo até ela numa espécie de abraço.

Sua cabeça paira sobre a do rapaz como a ponta de uma lança. Os olhos encontram os dele e percebem medo, mas também algo mais forte, que o faz desafiar o próprio destino. As mãos se erguem para tocar a pele e o sangue de Cunala, os braços ao redor de seu corpo, que aos poucos vai relaxando o aperto. O jovem poderia se libertar, mas em vez disso continua a abraçá-la, retendo-a para que não volte a se arrastar sobre as pilhas de ouro. Assim ficam os dois por muito tempo, imagens se sucedendo na mente da feiticeira até que, pouco a pouco, as tintas comecem a esmaecer e a se apagar.

Quando, enfim, Cunala reabre os olhos, sua impressão é de ter tido novamente aquele pesadelo. Está deitada em seu leito, na câmara de nácar onde se movem os servos que trouxeram o desjejum; a câmara está aquecida, mas sua pele arde, e, ao olhar para o ventre e as coxas, percebe que estão cobertos de bálsamo. Ela se volta para os servos, que nunca antes haviam ousado tirá-la de perto do tesouro, e vê sorrisos nas bocas de lábios carnudos e dentes serrilhados. Eles se inclinam numa reverência e a deixam ali, tentando compreender o porquê de não haver despertado sobre a pilha de ouro e cambaleado sozinha até o leito, mas suas dúvidas não se prolongam por mais do que um instante. Só o tempo de descobrir Ilano entre as sombras do aposento.

-- Perdoe-me. Não pude ir – ele murmura. Cunala tenta dizer que está perdoado, mas antes que consiga falar o rapaz avança e se ajoelha junto ao leito, os braços em torno dela, a boca afundada na escuridão do seu cabelo. Ele repete que não conseguiu partir, voltou em segredo pelo túnel e descobriu a verdade sobre a maldição, mas, em vez de medo ou repulsa, sentiu ainda mais amor e orgulho por ela suportar a horrível metamorfose ao longo de séculos. Cunala diz que tornará a acontecer, e Ilano responde que sabe, mas escolheu não deixá-la sozinha; na próxima lua cheia, e em quantas mais vierem, ele estará a seu lado e a abraçará antes que ela possa se infligir o mínimo corte. Ele faz essa e outras afirmações, jura que irá amá-la para sempre e faz promessas que talvez não possa cumprir, mas a feiticeira não contesta, porque neste momento palavras não têm importância. Tudo que importa é ouvir a voz que suplantou a do deus do rio, estar nos braços que a impediram de se ferir e de feri-lo, sentir a força e a pureza desse amor que venceu a morte.

E, se não for assim para sempre, ela terá a doce lembrança de agora.

-- Você parece contente – diz Ilano, da cama, algum tempo depois.

Cunala assente, fitando o espelho de prata. Seus olhos estão límpidos, verdes, cristalinos. Não haverá tempestade, hoje, no Grande Mar.


***

E aí, o que acharam? Deixem nos comentários! Também adoraria saber se curtem histórias nesse estilo, ou escritas num estilo um pouco mais solto e ambientadas na Antiguidade. 

Não deixem de visitar o perfil Um Mês, um Conto no Instagram -- e, se gostaram desta história,  fiquem ligados no da Editora Draco. Muito em breve, nós levaremos nossos leitores a navegar nas águas do Mediterrâneo na companhia de um heleno e de um astuto capitão fenício!

Até lá!

quinta-feira, março 17, 2022

A Feiticeira do Mar (Segunda Parte)

Pessoas Queridas,

Aqui vai a segunda parte de "A Feiticeira do Mar". Espero que gostem do desenrolar da história, do romance e do mistério!



A Feiticeira do Mar

(Parte 2)

Ele começa em tom formal, agradecendo pela ajuda, depois se solta um pouco e diz que sua avó sempre falou sobre Cunala, sobre o palácio no mar e a cova na superfície. Fica junto a uma aldeia chamada Pedra do Abutre, não longe da grande cidade onde ele vive, e onde também há quem faça oferendas com vistas a ganhar as boas graças da feiticeira. Ela pergunta qual a cidade, e ele esclarece tratar-se de Gadir, fundada pelos fenícios sobre um arquipélago e agora sob os auspícios de seus deuses exigentes e caprichosos. Baal, Astarte...

-- E Melkart – diz Cunala, sem disfarçar o travo de rancor. É esse deus dos fenícios que vem angariando cada vez mais devotos, e com isso se fortalece, amplia seu poder sobre as águas e os ventos e as marés. Isso, porém, ela guarda para si, preferindo ouvir mais a respeito do náufrago, que diz se chamar Ilano e pertencer a uma família muito antiga de Gadir. Possuem uma salga de peixe, e ele tentava ampliar os negócios vendendo seu produto na Sicília. Muita esperança e boa parte do dinheiro da família viajavam naquele barco que nunca chegará a seu destino.

Cunala não tem como ajudá-lo a enfrentar essa perda. A tempestade não foi trazida por ela; o mar tem seus caprichos. Também não pode resgatar os tripulantes, pois seu poder a faz saber que estão todos mortos. Ela diz isso a Ilano, e o rapaz chora lágrimas amargas que ela recolhe no seio. Do abraço à primeira carícia, ao primeiro beijo com gosto de sal e mel – não é muito, na verdade, o tempo que transcorre.

Ilano tem pouca experiência, mas o que a maioria dos jovens compensa apenas com ardor ele oferece em carinho e cuidado. Suas mãos são ternas, a voz é doce; o ato em si é desajeitado, mas nunca brutal. Quando terminam, ele continua a fitar Cunala com os olhos muito abertos, cheios de um brilho diferente do que havia até então.

-- Quero ficar com você – ele murmura. A feiticeira hesita – já viu esse brilho noutros olhos, e lembra o que aconteceu --, mas no fim decide seguir com seus planos. Não será isso que irá perder Ilano para sempre, e ela merece esse presente, sete dias e sete noites em que terá um amante, quem sabe um amigo, alguém que a ajude a não esquecer as palavras humanas. É isso, e nada mais, que ela promete ao náufrago.

Ilano não entende o porquê de um prazo tão curto, mas aceita e jura devotar a Cunala cada instante que passar no palácio. Nessa noite, os dois se dedicam ao conhecimento do outro, bocas, mãos e cada desvão do corpo do outro, um aprendizado que dispensa palavras, mas que, ao menos para Cunala, é o que se mostra mais urgente. Por sua vez, Ilano tem perguntas, porém as guarda para fazer ao longo dos dias seguintes: os sete dias que passarão juntos, boa parte deles na cama, mas às vezes diante das janelas translúcidas que lhes permitem ver o mar sem deixar o palácio.

A paisagem de rochas e algas é sempre a mesma, mas Ilano se encanta com os cardumes prateados, com os polvos lentos e solenes, com o ruído surdo das correntes e os súbitos clarões do mar noturno. Em Gadir, ele sempre esteve cercado pela água, mas nunca foi além da superfície. Jamais teria sonhado ver essas maravilhas, como jamais teria sonhado estar com alguém como Cunala, e tanto o mar quanto a mulher o têm cada vez mais preso a seus encantos. Ela percebe o que se passa com ele, e às vezes pensa em adverti-lo, mas sempre acaba por deixar a ideia de lado. Não há por que antecipar o sofrimento que virá no fim, provavelmente intenso para ele – um homem doce, e ainda tão jovem --, porém mais duradouro para ela, porque as lembranças dele se misturarão com as de outros amantes, a todas as ausências que acrescentam peso à sua solidão.

Sem querer falar do assunto, Cunala se desvia das perguntas que, como a maioria dos homens, Ilano faz a respeito de seus antecessores. Em vez disso, conta sua própria história: a história de uma jovem comum, de uma beleza sem par, diziam, porém mais uma moça vivendo numa aldeia à sombra da Pedra do Abutre, naquele tempo em que os deuses fenícios ainda não haviam destronado os locais. Lá vivia um antigo senhor do rio, que cobiçou Cunala e tentou arrastá-la para sua morada sob as águas. Para livrar-se dele, ela se atirou ao mar, onde a Grande Mãe lhe deu refúgio e onde, com o tempo, cresceram seus poderes de feiticeira. Há muito ela suplantou o deus do rio, que desapareceu pelo esquecimento, como tantos senhores das águas, dos bosques e das cavernas. Suplantou e sobreviveu a ele, embora carregasse uma maldição que a impediu de voltar ao mundo dos homens e causou a morte de muitos dos seus amantes. O último foi o pastor de ovelhas, que ela pensou poder manter para sempre a seu lado... e cujo rosto lhe vem à memória sempre que ela vê o perfil bem desenhado de Ilano.

As lembranças são dolorosas, mesmo para alguém tão provado pelo tempo como a feiticeira. Ela não fala do pastor nem conta os detalhes da maldição, embora isso lhe passe pela cabeça sempre que as mãos do amante encontram suas cicatrizes. São miríades de linhas brancas que se entrecruzam em seu ventre, em seus seios, em suas coxas, e sobre elas algumas rosadas mostrando os ferimentos mais recentes. Outras virão, muito em breve: ela nem precisa olhar para as conchas enfileiradas ao lado da cama, às quais jamais se esquece de fazer o acréscimo diário. Cunala sabe, porque seu ânimo é cada vez mais sombrio; ela se enfureceu com os servos, por entrarem sem avisar em seus aposentos, e com os homens na superfície pela escassez de oferendas. Zangou-se até com Ilano e suas perguntas. E quando, nessa mesma noite, volta a sonhar com a câmara do tesouro, ela compreende que já não pode adiar o assunto doloroso.

-- A lua cheia se aproxima – diz Cunala ao jovem hispânico. – Você precisa deixar o palácio. Leve moedas, joias, o que puder ajudá-lo em seu regresso a Gadir. Aqui... em breve... deixará de ser um lugar seguro.

Cada palavra é um espinho ferindo sua boca. Ela não quer que Ilano se vá, não porque o ame – sua alma é velha demais, experiente demais, ela conhece demasiado o mundo e a si mesma para receber a dádiva do amor --, mas porque gosta de sua companhia e de ter companhia. Mais uma vez, precisa resistir ao desejo de prolongar sua estada ali, como fez com o pastor, pois sabe que no fim virão a amargura e o arrependimento. De qualquer modo não é justo. Salvar a vida de alguém para depois decidir onde e como ele irá vivê-la – é o mesmo que salvá-la pela metade.

Ilano não recebe bem as palavras da feiticeira. Ele a ama, diz, sem saber quantos homens fizeram o mesmo ao longo dos séculos que dura a maldição. Ele fala sem saber que em sua voz ecoa a dos amantes mortos. Cunala insiste que ele vá, ameaça-o com seus encantos e até com sua ira, mas tudo que consegue é que se ajoelhe e implore que o deixe ficar, ainda que como um simples escravo. Então ela decide contar sobre o pastor de ovelhas, e o faz num tom sussurrado que a cada momento se torna mais áspero.

O mar escurece através das janelas enquanto ela murmura: o homem antes de Ilano foi o que mais falou a seu coração. A feiticeira deixou que ficasse, porque pensava ter achado um jeito de mantê-lo ali para sempre. A cada quarto de lua, mandava-o ficar na superfície, oculto nas proximidades da Cova de Cunala, alimentando-se das oferendas que levava consigo. Depois, voltava para ela, que o fazia beber um elixir a fim de preservá-lo da velhice. E assim viveram juntos muitos e muitos anos.

-- Então, ele começou a ter saudades de casa – sussurra a feiticeira. -- Lembrava-se dos pais, chorava por tê-los abandonado, e seu coração se afastou de mim. No entanto, muito tempo havia se passado; ele se converteria num ancião assim que se afastasse de minha magia. Eu lhe disse isso, mas mesmo assim ele partiu, e eu não pude impedi-lo. Não sei o que aconteceu, mas... se ele voltou à sua aldeia... deve ter sido apenas para morrer nos braços de homens e mulheres que poderiam ter sido seus netos.  

Ilano engole em seco, mas mesmo assim insiste em ficar. Não precisam ser anos; que seja uma lua, um quarto de lua, o tempo que Cunala decidir. Ela pensa na solidão que a aguarda quando ele se for, dias e noites sem outro som que não os ruídos do mar, sua cama vazia, mas disso mesmo consegue fazer sua fortaleza: ela é capaz de passar por tudo outra vez. O que não quer é reviver sua história com o pastor, nem que aconteça a Ilano o mesmo que a ele, ou ainda que se arrisque a acabar como alguns dos outros – e antes que se traia, revelando aquilo que, por monstruoso demais, decidiu guardar só para si, Cunala endurece suas palavras e seu coração.

-- Nem mais um dia. Eu me cansei de você – diz ela. Usa seu poder para fazê-lo acreditar que é verdade. Escorraçado, o jovem mal consegue erguer os olhos cheios de dor, e assim permanece enquanto a feiticeira põe em seus ombros a pele de uma ovelha deixada na gruta pelos devotos. Não torna a oferecer dinheiro e joias, porque estão na sala dos tesouros e ela a evita o mais que pode na proximidade da lua cheia, mas lhe dá um odre de vinho e alguma comida para levar na viagem. Dentre os súditos fiéis, convoca os que podem sair à superfície, seres com pinças e duras carapaças, e ordena que escoltem Ilano pelo túnel de terra que dá acesso à cova em Pedra do Abutre.

-- Perto dali passa um rio que se encontra com o mar, e deve haver barcos. Entre num deles e siga sua vida – diz Cunala. – Não olhe para trás.


(Continua... Voltem dia 24/3 para ler o final!)

***

E aí, o que acharam? Deixem nos comentários! E não se esqueçam de visitar o perfil Um Mês, um Conto no Instagram!

Até a próxima!

quinta-feira, março 10, 2022

A Feiticeira do Mar (Primeira Parte)

 Pessoas Queridas,

Hoje começa o projeto "Um Mês, um Conto", idealizado pelos amigos Paloma Bernardino e Luca Creido. Vários autores irão postar contos de fantasia divididos em três partes, e as postagens serão divulgadas pelo instagram do projeto.


Minha participação se dá com um conto (até agora) inédito, passado na Antiguidade. Espero que gostem!


A Feiticeira do Mar 

(Parte 1)

 

O sonho é o mesmo, noite após noite. Cunala está em seu palácio, no salão onde se erguem montes de joias sobre as quais ela rasteja. O metal lhe fere a pele, e a feiticeira se debate, sem saber se este é apenas mais um pesadelo ou uma daquelas noites das quais desperta em agonia, nua sobre uma pilha de ouro sangrento.

Para seu alívio, o dia a encontra na câmara de nácar que lembra o interior de uma concha. Ao lado está o desjejum trazido por seus súditos, fruto de diferentes sacrifícios. O deles próprios, seres do mar, que ofertam a carne de seus semelhantes, e o dos homens e mulheres da superfície, que temem sua ira e querem apaziguá-la. Eles lhe trazem animais da terra, além de grãos, azeite e vinho deixados numa gruta. Na lua cheia, a maré carrega as oferendas, e por isso o lugar é chamado de Cova de Cunala: seu principal local de devoção, ligado à sua morada por um túnel escavado na rocha. Pois sob o Grande Mar há inúmeras portas, embora poucos, até hoje, as tenham atravessado.

Entre as ondas e os seres do mar, a feiticeira vive em silêncio.

Ela contempla sua imagem num espelho de prata. Tem traços delicados, a pele ainda mais translúcida em contraste com os cabelos negros. Seus olhos refletem a cor do mar, e hoje eles lhe dizem que uma tempestade se aproxima. Isso traz um sorriso a seus lábios: Cunala ama as tempestades. Não as provoca, exceto quando algum navegante é tolo o suficiente para incorrer de verdade em sua ira, mas raramente as detém, por mais que a gente da superfície lhe dedique oferendas. O que ela faz é deixar que os ventos soprem, que as ondas quebrem sobre os barcos e os atirem contra os rochedos, que seus destroços sejam arrastados para as profundezas. Quanto aos homens... Qual deles não sabia dos riscos, quando entregou seu destino aos caprichos do mar?

As águas se agitam, percorridas por uma vibração que ela sente ao deixar o palácio. A tempestade começou, e a feiticeira quer estar lá, dançar nos turbilhões, ouvir o bramido das ondas e o uivo do vento. Não quer perder um só momento do espetáculo, por isso busca uma corrente marinha e se impulsiona até a superfície, onde um rochedo acaba de cobrar seu tributo a um barco mercante. Os destroços passam diante dos olhos de Cunala: primeiro as ânforas em que levavam a carga, depois madeiras e remos, restos de corda e velas feitas em trapos. Por fim, os homens. Estes costumam ser pesados, mas demoram a chegar ao fundo porque resistem, lutam para voltar à superfície e ao que resta do barco. Alguns conseguem, talvez acabem sobrevivendo à tempestade; outros tornam a afundar e se debatem até perder as forças. Então sobrevém uma estranha calma, e é quando eles se entregam ao mar e se deixam conduzir numa última viagem.

Os homens colhidos pelas ondas neste naufrágio ainda não aceitaram seu destino. Cunala os vê em meio a redemoinhos de espuma, clamando aos deuses por misericórdia enquanto suas bocas não se enchem de água. Nesse momento nada mais importa, o barco, os bens, todas as coisas levadas pelo mar. Eles nem percebem quando a feiticeira sobe numa rocha, embora – quem sabe? – talvez, num último momento, a visão da mulher de vestes esvoaçantes fique para sempre gravada em suas pupilas.

Cunala se põe de pé e ergue a cabeça. O vento uiva em seus ouvidos; as ondas batem contra as rochas, molhando seus pés e salpicando-lhe o rosto com água salgada. A feiticeira ri, ergue os braços e grita para a tempestade, trazendo uma chuva de raios que se abatem sobre o mar. Eles atingem o mastro, naquele destroço de barco que teima em se manter à superfície, e os homens que ainda estavam lá são precipitados para o meio das ondas. É quando a voz de um deles rasga o céu.

-- Ó Mãe! – é o que ele grita, e poderia ter usado qualquer das línguas faladas no entorno do Grande Mar: não é à sua própria mãe que se dirige, e sim à Mãe Primordial que vive em todas as mulheres. Muitos homens a invocam, mas raramente o fazem com tanta força, com tanto fervor. É isso que atrai a atenção de Cunala para esse náufrago.

Num impulso, ela mergulha e nada em direção ao barco. Ainda não viu o rosto do homem, mas sabe que deve salvá-lo. Ele tenta voltar à superfície, e em seus esforços gasta o ar que tem nos pulmões, por isso está quase inconsciente quando Cunala o alcança. Ainda consegue vê-la, arregalar os olhos cheios de espanto, mas em seguida eles rolam nas órbitas, e isso a faz saber que cada instante passou a ser precioso.

Ela se concentra, convocando os súditos mais próximos enquanto sopra no rosto do náufrago. Uma bolha de ar se cria ao redor da cabeça do homem, permitindo-lhe respirar até que possa ser levado para a superfície e deixado num ponto em que as ondas não tornem a arrastá-lo. Era o que Cunala pensava ao socorrê-lo: pouparia sua vida, pelo amor da Mãe que vive no mar, mas o deixaria entregue ao destino, para que outros homens ou deuses se apiedassem dele. No entanto, o corpo que ela segura nos braços é jovem e forte, e o rosto envolto pela bolha lembra o de alguém que não pode esquecer, de forma que, no fim, a feiticeira não consegue ignorar o apelo. Os súditos que chamou não questionam a ordem, e o jovem é transportado, sobre escamas e dorsos brilhantes, até as profundezas do mar.

Na antecâmara do palácio, outros servos estão a postos para despir o náufrago e enxugá-lo com panos de lã. Depositam-no numa cama em outro aposento e partem em silêncio, enquanto a feiticeira murmura os encantos que irão induzi-lo a um sono profundo. Assim ela poderá ver melhor, ou ao menos contemplá-lo por algum tempo antes que acorde e fale com ela, sabe-se lá em que língua, sabe-se lá se com medo, ou raiva, ou ímpeto de fuga. Também que indague sobre o barco ou sobre os companheiros, pois as respostas que Cunala tem para lhe dar não são alegres.

Ela se pergunta se ele é responsável por eles, o que tornará as coisas ainda mais difíceis. As pistas são contraditórias: ele parece jovem demais para ser o capitão, mas suas roupas não eram as de um simples marinheiro. Suas mãos são fortes, mas não grosseiras. O rosto é bonito, com traços bem desenhados e queixo forte, o cabelo castanho-escuro é cheio de cachos. Cunala se pergunta de onde vem – Hispânia, Cartago, Oriente --, e então decide que não importa. De qualquer forma ele lhe agrada, e ela fará com que a deseje e permaneça ao seu lado. Desta vez, porém, não será como foi com a maioria dos outros – e pensando nisso ela consulta o calendário de conchas que mantém sobre uma pedra, perto de onde repousa o jovem resgatado. É o seu jeito de contar os dias, marcados pela alta e baixa das marés: para cada um, uma concha alinhada sobre a pedra lisa, e quando somam vinte ela sabe que em breve será lua cheia.

-- Sete dias – diz, em voz alta. É o tempo que terá ao lado desse belo jovem, e não é muito, portanto ela não deve desperdiçar um só momento antes de despertá-lo. Para isso, usa os lábios duas vezes: primeiro, murmurando o encanto que irá tirá-lo desse estado suspenso, e em seguida, quando ele já franze a testa e flexiona os músculos, beijando-o no canto da boca. Ele abre os olhos, que logo se arregalam, cheios de surpresa, diante da mulher e da câmara com paredes cobertas de conchas nacaradas.

-- Eu estou... – pergunta, mas em seguida junta as mãos diante do peito. – Não acredito, não pode ser... Você é Cunala!

O nome sai de sua boca com uma forte carga de medo, mas também veneração. Isso a faz saber que ele é hispânico, descendente dos povos antigos da península, e não de helenos ou fenícios, que dificilmente saberiam quem é a feiticeira do mar. Ela o acalma, assegura que nada lhe fará de mal, e depois de algum tempo o temor recua o suficiente para que o jovem recobre a fala.

(Continua... Voltem dia 17/3 para ler a segunda parte!)

***

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Até a próxima!