quarta-feira, novembro 11, 2009

Uma Versão Diferente da Cinderela



Pessoas Queridas,

Como devem saber, todos os povos possuem suas narrativas tradicionais, muitas das quais se assemelham a outras de diferentes origens, ainda que não tenha havido contato entre as culturas. Isso se dá, segundo a teoria arquetípica, porque essas narrativas ancestrais fazem parte do inconsciente coletivo; seus personagens não são indivíduos, mas figuras míticas que existem universalmente. Assim, em várias partes do mundo encontramos narrativas cujos personagens e motivo central são semelhantes entre si, embora as circunstâncias variem de acordo com a cultura que produziu cada uma das versões.

A história da Cinderela tem mais de 300 variantes, desde a chinesa (na qual, um narrador me disse uma vez, o sapatinho é de palha) até a “Maria Borralheira” de Sílvio Romero. A que vou contar agora vem do povo Algonquino, uma nação que se estende pela costa oeste da América do Norte, desde Vancouver, no Canadá, até a Califórnia, nos Estados Unidos. O texto foi adaptado por mim do livro “O Violino Cigano”, de Regina Machado (Cia. das Letras, 2004), que por sua vez a retirou de “World Tales”, de Idries Shah. Mais uma prova de como as histórias se transmitem como numa teia... e como nós, os contadores, não resistimos a acrescentar mais um fio.

Então, com vocês...

OOCHIGEASKW, UMA CINDERELA ALGONQUINA

Numa aldeia Micmac, à beira de um grande lago, vivia um viúvo com suas três filhas. A mais velha era vaidosa e impaciente; a segunda, preguiçosa e rabugenta; a terceira, humilde e de bom coração. Suas irmãs a maltratavam o tempo todo, obrigando-a a fazer o trabalho pesado e a cuidar do fogo. Às vezes, a mais velha a queimava com cinza quente, o que a deixou com tantas cicatrizes que passou a ser chamada Oochigeaskw, a menina do rosto marcado.

Na fronteira dessa aldeia viviam dois irmãos, um rapaz e uma moça. Eles não chamariam a atenção de ninguém, se não fosse por um detalhe: o rapaz era invisível aos olhos de todos, a não ser os da irmã. E todos sabiam que, se um dia alguma jovem pudesse vê-lo, casaria com ele... o que todas, levadas pela curiosidade e pela fascinação, gostariam de fazer.

Uma a uma, as jovens da aldeia se submetiam à prova estabelecida pelo rapaz, indo ao encontro da irmã dele e passeando com ela à beira do lago. Em dado momento, a irmã do rapaz invisível parava e indagava se a amiga estava vendo seu irmão, e, caso a resposta fosse afirmativa, perguntava de que era feita a corda de seu arco e com o que ele puxava seu trenó.

Sem poder vê-lo, as jovens arriscavam respostas. “A corda é feita de couro cru”, diziam, ou ainda, “Ele puxa o trenó com um galho flexível de árvore”. A irmã percebia que as moças tentavam enganá-la, mas mesmo assim as convidava à sua tenda, onde servia ao irmão alimentos que, pouco a pouco, iam desaparecendo, sem que as convidadas pudessem ver quem comia. Por fim, as jovens desistiam de ver o que quer que fosse e voltavam para casa.

Certo dia, as irmãs de Oochigeaskw resolveram tentar a sorte, mas não quiseram levar a mais nova, a quem deixaram com serviço dobrado para fazer enquanto estivessem fora. No fundo, elas não acreditavam poder ver o rapaz invisível, mas tinham esperanças de que ele se deixaria seduzir por sua beleza. O rapaz e sua irmã, contudo, se portaram exatamente como das outras vezes, e as duas voltaram para casa sem nada ter conseguido.

No dia seguinte, o pai delas chegou com uma porção de conchinhas muito bonitas, que as filhas mais velhas pegaram para si. Enquanto isso, Oochigeaskw, que sempre andara descalça, pediu e obteve do pai um velho par de mocassins, e depois foi à floresta e arrancou cascas de bétula, com as quais fez um vestido. Ao retornar, pediu conchinhas às irmãs para adorná-lo. A mais velha não a atendeu, mas a segunda ficou com pena e lhe deu algumas conchinhas. Oochigeaskw enfeitou seu vestido com elas, conforme aprendera com seus ancestrais, calçou os mocassins do pai e saiu para também tentar a sorte com o ser invisível, embora as outras moças tentassem impedi-la, dizendo que era tão feia que nem seria recebida pela irmã do rapaz.

De fato, com a estranha roupa de casca de árvore, os velhos mocassins e o rosto coberto de cicatrizes, Oochigeaskw não era atraente. Mas a irmã do ser invisível, que enxergava além das aparências, a recebeu com um sorriso e a levou para caminhar à margem do lago.

- Você pode ver meu irmão chegar? – perguntou ela, de repente.
- Sim, e ele é muito belo – disse Oochigeaskw.
- De que é feita a corda do seu trenó?
- Do arco-íris.
- E a corda do seu arco?
- São as estrelas da Via Láctea – murmurou a moça.
- Eu sabia desde o início que você o veria! – exclamou a irmã, feliz. – Venha, vamos para casa esperá-lo.

Ao entrar na tenda, a irmã preparou um banho com raízes perfumadas para Oochigeaskw. Enquanto a banhava, suas cicatrizes iam desaparecendo e seu cabelo se tornando espesso e brilhante. A irmã a penteou e depois a vestiu com um lindo vestido de casamento, bordado em conchinhas dispostas em desenhos, como faziam os antepassados. Então, disse-lhe para sentar no lugar reservado àquela que seria a esposa de seu irmão.

Quando ele, belo e forte, entrou na tenda, viu a jovem que o esperava e perguntou:

- Já não nos vimos antes?
- Sim, hoje, no final da tarde – respondeu ela, os olhos brilhando como estrelas.

E, desse dia em diante, Oochigeaskw, a menina do rosto marcado, ficou na memória de seu povo como a mulher do ser invisível... Aquela que soube ver.

(Publicado neste blog em 2004. Porque recordar é viver.;) )

Ilustração da artista norte-americana Doranna,