domingo, junho 17, 2018

Depoimento para um Colégio



Esta semana, o pai de uma estudante me procurou através de uma colega da Biblioteca Nacional querendo um depoimento sobre a carreira de escritora, mas que falasse especialmente de como é ter sua publicação recusada. Isso acontece com 99% ou mais dos escritores, aconteceu comigo, por isso não tive problema em explicar.

Tinha feito um vídeo bacaninha, mas ficou pesado demais, não tive como enviá-lo. * O depoimento acabou indo por escrito e apressado, mas acho que eu disse o que tinha a dizer. 

E compartilho com vocês.

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Meu nome é Ana Lúcia Merege, sou escritora, principalmente de fantasia para jovens. Escrevo desde sempre, mas comecei a mandar originais para editoras por volta de 1995. Nessa época não havia redes sociais, a Internet estava começando, não havia blogs e plataformas de publicação digital; o jeito de publicar era mandar o texto impresso para a mesa do editor e torcer para que fosse lido. Só que, desde aquela época, os editores recebem muito mais obras do que conseguem ler, de forma que frequentemente você não conseguia nem um retorno. Se conseguisse, mais de 99% das vezes o livro era recusado, mesmo que o editor gostasse dele, porque publicar e divulgar um livro custa caro e as editoras dificilmente apostam em pessoas desconhecidas (eis por que celebridades conseguem lançar livros facilmente e escritores tarimbados às vezes não: eles têm um público que irá comprar o livro e dar retorno financeiro à editora). 

No meu caso, tive muitas recusas (e na maioria das vezes fui ignorada) ao mandar meu primeiro original, que era de um livro para jovens chamado O Caçador. Aí resolvi fazer uma publicação independente, que vendia para amigos e alunos. E olha a sorte que eu dei: um editor gostou dele e resolveu publicar! E continuei dando sorte porque -- isso já era 2009, vejam o tempo que levei até conseguir! -- estavam começando as redes sociais, eu comecei a postar em um blog (que existe desde 2002**) e conheci pessoas que me encaminharam a outras editoras. Estas gostaram do que eu fazia, e então comecei a publicar. Tenho hoje mais de dez livros publicados, inclusive uma trilogia de fantasia iniciada pelo livro O Castelo das Águias, pela Editora Draco, de São Paulo. Também organizei e participei de coletâneas de contos, estou sempre em eventos - este ano vou estar na Feira Medieval, dia 8 de julho, na Quinta da Boa Vista, e depois na FLIP e na Bienal do Livro. Não sou superconhecida, mas tenho uma carreira e certo reconhecimento por parte de quem escreve dentro do gênero fantástico. 

Apesar das dificuldades que encontrei - e ainda encontro, não é fácil conquistar leitores, ainda mais em editoras pequenas! -- eu nunca desisti. Quem gosta de escrever e contar histórias sempre fará isso e encontrará um jeito de aparecer, mesmo que seja em blogs ou plataformas digitais, ou com livros independentes. A quem quer seguir esse caminho sugiro que leia muito, leia coisas variadas, veja filmes, seja observador em todos os sentidos... e escreva, faça cursos, exercite sempre a escrita. É importante também falar com outros escritores e trocar ideias, vão encontrar um monte de gente no Facebook e outras redes sociais. Nesse processo críticas e recusas são normais, mas se alguém vier falando que seu trabalho é ruim porque parece com o de determinado escritor, não desanime. No início é comum a gente meio que imitar os escritores de quem gosta. É preciso algum tempo para que encontremos nossa própria voz.

***

Isso foi o que escrevi, na pressa, para ser lido diante dos estudantes. Alguém tem algo a acrescentar ou quer deixar seu depoimento?

* atualização: consegui mandar bem cedo no dia seguinte! 

** este blog aqui, mas começou com outro nome e no servidor do IG. Nem sei se ainda existe. 

quarta-feira, junho 06, 2018

O Inverno da Vida e da Morte : trecho do conto em andamento


Pessoas Queridas,

         Tendo fechado o próximo livro de Athelgard  e mais um outro que é surpresa, deixo com vocês um trecho do conto em andamento, narrado por um personagem da nova geração dos Contos da Clepsidra -- Liserbal -- em que ele reconstrói lembranças de quando era bem criança e estava prestes a ganhar um irmão. Ou irmã, como sua mãe reivindicava depois de dar dois varões à família do marido. Complicado? É que estamos em Cartago, em torno do ano 314 antes da Era Cristã. E mesmo assim essa é uma família bem avançada para os padrões da época. :)
         Se alguém quiser ler e opinar, ficarei feliz!



-- Liser! – Do cômodo onde as mulheres se reuniam para tecer, minha mãe me viu e me chamou antes que encontrasse os homens. – Onde vai com essa pressa? Me diga o que aconteceu.
-- Foi o Tio Aníbal – ofeguei, sem querer parar, porque eu era um soldado com uma missão. Minha mãe, porém, me deteve com um franzir das sobrancelhas, e logo minha avó Enidala deixava o tear e corria para me pegar pelos braços.
-- O que houve com seu tio? – perguntou, aflita.
-- Levou um tombo, no jardim – respondi, e a comoção foi geral. Minha avó me largou e correu ao encontro do irmão; minha mãe, pesada demais para correr, mandou uma das tecelãs chamar meu pai e me deu a mão para irmos juntos até o jardim. Seus dedos eram macios e quentinhos. Cheguei o mais perto dela que pude, mas evitei olhar para sua barriga, porque nos últimos tempos ela vinha se mexendo sozinha, e aquilo me assustava um pouco. Era muito diferente de pôr a mão e sentir os movimentos lá dentro. A Avó Zora tinha explicado que o novo irmãozinho era muito inquieto, e que por isso gostava tanto de se mexer, mas mesmo assim eu preferia não olhar. Compensaria brincando bastante com ele quando nascesse. Mesmo que fosse uma irmã, como minha mãe vinha pedindo em suas preces a Pene-Baal desde que engravidara pela terceira vez. Não que ela não houvesse se alegrado com a chegada de Tarish, de olhos verdes como esmeraldas, que recebera o nome do avô caravaneiro. Amaria do mesmo jeito o novo bebê, se viesse menino. Mas, uma vez que dera herdeiros varões à Casa Aníbal, ter pelo menos uma filha era um direito que minha mãe reivindicava como seu.


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Ilustração em estilo fofo pela Sheila Lima Wing. Aqui o pessoal do conto já está mais velho, e a família está completa. Quem você acha que é o Liser?

Curtiu? Leia outro conto do pessoal de Cartago clicando aqui.