domingo, janeiro 26, 2020

Três Países


        Vivemos em três países diferentes. Isso me ocorreu quando esperava na fila da padaria. À minha frente, um homem de meia-idade, calvo e de bermudas, discorria para um amigo mais novo sobre os indiscutíveis avanços do governo federal, tudo de bom que os ministros vêm fazendo e como em apenas um ano o Brasil já cresceu tanto que caminha para se tornar uma potência. O problema é que a imprensa, vendo-se privada das tetas em que mamou durante tantos anos, só divulga notícias falsas, de forma que o senhor na fila da padaria não sabe como as pessoas ainda compram jornais e assistem à televisão. Ele mesmo se informa através de um jornal online que é o único realmente conservador, parece até que certo filósofo autoproclamado é um dos colunistas. De qualquer jeito, a coisa vai tão bem que em breve os opositores do governo perderão qualquer oportunidade de virar a mesa, principalmente se o governo for reeleito. Depois de quatro anos, a imprensa não terá mais como esconder a verdade, e a aprovação popular será tão grande que aos canalhas só restará calar a boca.

        A mim, que geralmente não me calo, naquele momento achei que fosse o mais prudente, inclusive por educação. Não conheço, portanto não me cabe opinar sobre o país onde vive aquele senhor; no meu os ministros só cometem barbaridades, quisera fosse apenas contra a língua pátria, e, se o Brasil caminha para algum lugar sob essa direção, não tenho a menor dúvida de que é o abismo. Mas não havia de ser eu a discutir com o estrangeiro, naquele momento exaltando a inteligência e o preparo de um famoso jurista egresso do sul. Restou-me voltar as costas e conversar com a senhora que esperava na fila atrás de mim, e assim falamos sobre as vantagens e desvantagens de adicionar ovos ou linguiça à farofa, e concordamos em discordar, e nos despedimos sorridentes, sem que eu soubesse – e nem queria saber – se  vivemos no mesmo país ou se ela habita a mesma terra que produz pessoas de bem, tais como aquele homem de meia-idade, calvo e de bermudas.

         E o terceiro país? Ah, é aquele em que vivem as pessoas que estavam do lado de fora, esperando que concluíssemos nossas compras para pedir que, com o troco, lhes pagássemos algo para comer. Mas esse é um país que quase ninguém enxerga.  

quarta-feira, janeiro 01, 2020

De Palavras e Rotinas

      Acordo tarde no primeiro dia do ano, e a primeira pergunta que me faço é: continuo contando as palavras?

      Não entendam mal. Não estou praticando a austeridade ou coisa do tipo. As palavras a que me refiro são as escritas; contá-las é uma prática de vários autores, que adotei desde 2017. Naquele ano eu escrevia furiosamente as histórias das gêmeas de Cartago, então foram quase 100.000 palavras a mais que no ano seguinte, e o que acabou ontem foi muito próximo do anterior. Deve ser essa a média mesmo, em torno de 180.000 por ano, se tudo continuar como está: um pouco de escrita espremida nos dias de semana, entre o transporte e o trabalho diário, duas ou três horas produtivas no sábado, outras tantas no domingo, se não houver nenhum evento e se eu seguir uma rotina cuidadosamente planejada. Seus passos: acordar antes de todos na casa, não ligar a TV durante o café da manhã, sentar logo em seguida para escrever e, se for no laptop, não olhar a Internet em hipótese nenhuma. Às vezes ainda dá para reverter a situação se abrir só o e-mail, mas se for rede social a escrita já era. Fim da história.

     Chamei isso de rotina, mas me parece mais ser um truque, um artifício que eu uso para me concentrar. De qualquer jeito, funcionou, inclusive nesta manhã do primeiro dia do ano: acordei tarde, como disse (passava de oito e meia), fiz café e uma torrada, olhei pela janela, pensei em sair para dar uma volta, decidi que mais tarde iria com meu marido (mas fez calor demais e não fomos), tomei café com torrada, pensei em ver um filme antes que ele ou minha filha acordassem e fossem jogar videogame, pensei em me rebelar – hoje vou descansar e não escrever! --, dei risada dessa simples ideia, me levantei para ligar o laptop, mas antes de chegar ao escritório lembrei que tinha um caderno em branco e tinha decidido estreá-lo nesse primeiro de janeiro.

      E como eu sou uma autora que está tentando se disciplinar, sentei à mesa e comecei a escrever as primeiras páginas do caderno, as primeiras do dia, as primeiras do novo ano.

      E como eu sou uma pessoa de hábitos, decidi que vou continuar a contar as palavras.

      Só aqui, neste primeiro post  de 2020, foram 394.

      Feliz Ano Novo!