segunda-feira, julho 26, 2004

Minhas Febres Ficcionais

Pessoas Queridas,

Antes de mais nada, quero que saibam que estou muito feliz por vocês continuarem comigo. É claro que nunca duvidei de sua amizade, de seu carinho... mas, por outro lado, estive afastada da rede durante um bom tempo, e os livros da Estante estavam começando a criar teia de aranha. Felizmente, parece que esse período está chegando ao fim, ao mesmo tempo em que eu vou me recobrando de mais uma das minhas febres ficcionais.

Vocês já ouviram, com certeza, falar em “bloqueio de escritor”: aquelas fases pelas quais todos nós (a não ser os extremamente disciplinados, suponho) passamos no decorrer de nossas vidas de escrevinhadores amadores ou profissionais. Isso aparece muito nos filmes... a pessoa se senta diante do papel (em geral é uma máquina de escrever, ultimamente já aparecem computadores) e fica durante horas fitando aquele espaço em branco. No caso dos mais agitados, aparece depois uma outra cena em que ele/ela arranca o papel da máquina e o amassa e o joga no chão já coberto de bolinhas de papel... e assim vai, numa seqüência que já conhecemos, até que aconteça o fato que vai tirar nosso/a valente escriba desse estado de suspensão.

Ao longo dos 30 anos em que venho escrevendo (não: isto não é um exagero), eu passei por essas fases com freqüência, ficando longos períodos, às vezes anos inteiros, sem produzir uma linha sequer; Atualmente, as exigências do trabalho, o estímulo proporcionado pelos leitores deste blog e de meu livro (que los hay, los hay!) e um mínimo de disciplina conseguida a duras penas me levam a manter uma certa “produção mínima”, embora nem sempre no campo ficcional. Então, à parte algumas linhas acrescentadas a um conto, uma ou outra revisão e um poeminha bissexto, fico escrevendo apenas artigos, textos para a Biblioteca Nacional e reflexões em meu diário. E, como já me conheço de outros Carnavais, fico esperando a próxima onda que vai me levantar e me levar a produzir páginas e mais páginas de prosa.

Se alguém me perguntar, não sei dizer como acontece. Pode ter a ver com a posição dos astros – algo como Mercúrio conjunto a Marte ou em trígono com a Lua – mas também, possivelmente, com algum estímulo externo, como um livro que eu tenha lido, uma imagem num filme, algo que me disseram durante uma conversa. Realmente, não sei explicar. Só sei que, ocasionalmente, surge alguma situação que aciona um “mecanismo” dentro de mim... e eu me vejo compelida a escrever, a escrever, a escrever febrilmente e quase sem descanso.

Esses períodos são muito produtivos, mas também me deixam cansada, talvez da mesma forma que acontece com um folhetinista ou um autor de novela. Nesse período, leio muito pouco, assisto pouco a filmes, emprego na escrita a maior parte do meu tempo de lazer. E outro tipo de tempo também, confesso... Em 1991, escrevi capítulos e capítulos de “O Clã da Raposa Branca” (da fase da fantasy pré-histórica) na empresa em que fazia estágio; “O Caçador” foi escrito na nossa casa em Lisboa, e os anos (1995 e 96) em que trabalhei na PUC foram muito áridos, anos de bloqueio de escritor, mas em 1997 recomecei a escrever as histórias de Athelgard, e não pequena parte delas foi rabiscada durante minhas aulas do Mestrado. Felizmente, o auge da febre havia cessado na época de escrever a dissertação. Pois como eu poderia falar sobre Tecnologia da Informação com todos aqueles caçadores, guerreiros e saltimbancos aos pulos na minha cabeça?

As últimas “febres ficcionais” têm sido mais disciplinadas, mas são perceptíveis mesmo assim. No ano passado, eu estava numa fase muito segura e tranqüila. Escrevi apenas um conto, “O Potro Dourado”, mas revisei as 680 páginas da minha trilogia “A Irmandade” (todo escritor de fantasy que se preza deve ter sua própria trilogia!) e reescrevi trechos de “O Caçador”. Também publiquei artigos em revistas e escrevi inúmeros posts para a Estante que demandaram pesquisa e uma certa técnica, se não um pouquinho de criatividade. Em suma, um período muito bom.

Já este ano, depois de publicar “O Caçador”, eis que uma onda me pegou de surpresa... e, assim, passei estes últimos meses imersa num universo de ficção do qual é difícil sair para textos mais ligados ao cotidiano. Ao mesmo tempo, tive que assumir novas tarefas no trabalho e acabei por me comprometer, de certa forma, com atividades na Casa da Leitura, sem falar na vida pessoal - que eu jamais deixaria de lado – e no esforço para promover, um pouquinho que fosse, o meu primeiro livro. Com tudo isso, a Estante Mágica ficou meio abandonada, e só posso dizer em minha defesa que foi por uma boa causa. Quer dizer... Bom... Espero que ninguém discorde disso depois de ler “O Caçador” ou os contos de Athelgard! ;)

Enfim, pessoal... É isso. Entre bloqueios de escritor, períodos tranqüilos e disciplinados (meus prediletos) e il furore di scribere que me ataca de vez em quando, aqui estou eu. E devo dizer, mais uma vez, que é um grande prazer e uma grande honra tê-los comigo.

Até a próxima!

Abraços pra vocês,

Ana Lúcia

segunda-feira, julho 19, 2004

Bem-Vindos à Estante Mágica!!!

Olá, Pessoas!! Sejam bem-vindos à minha Estante Mágica!!

Esta é a segunda vez que este blog muda de endereço. O template permanece o mesmo, ao menos por enquanto, mas ainda faltam alguns ajustes. O conteúdo, vocês já sabem... Literatura, Leitura, História, Mitologia e um pouquinho do cotidiano de uma escritora agora já publicada, mas (ainda) quase totalmente desconhecida!

Para marcar meu retorno à blogosfera, pensei em escrever um post especial - era o que todos nós merecíamos, eu acho -, mas não consegui me decidir a respeito do tema. Então, baseada na grande possibilidade de a maior parte de vocês, que virão aqui nos primeiros tempos, já me conhecer - e, portanto, ser condescendente com as minhas pequenas maluquices - decidi republicar de uma só vez cerca de 30 artigos das primeiras versões da Estante Mágica, e ainda alguns textos que, já há algum tempo, venho querendo incluir na página. Mais tarde, eles irão desaparecer da lista de "últimos posts publicados" e ficarão acessíveis através de um link para aqueles que desejarem conhecer melhor meu trabalho como escritora de ficção, mas por enquanto é só consultar a lista para lê-los.

Aqui vai uma antecipação do conteúdo:

Minha Autobiografia é um texto que escrevi sobre minha vida, minha trajetória pessoal e profissional, que culmina com a publicação de O Caçador. Desse meu primeiro livro independente, coloquei também a sinopse e o trecho inicial, como acabou ficando na obra publicada. Alguns de vocês, que leram a versão anterior, talvez possam notar mudanças no diálogo... e algumas delas foram sugeridas por leitores do blog. Só pra vocês sentirem como são importantes! ;)

Coloquei também alguns textos sobre Athelgard, o mundo em que se desenvolve a maior parte de meus contos e romances, e os trechos iniciais de dois desses trabalhos: a novela O Jogo do Equilíbrio, que pretendo publicar dentro de um ano, e um conto curto chamado O Potro Dourado. Gostaria muito que vocês deixassem seus comentários a respeito e me informassem sobre seu interesse em ler o texto completo, assim como trechos de outros contos. Lembro a todos que minhas histórias não são muito realistas, fazem o gênero fantasy fiction... sobre o qual, aliás, também publiquei e republiquei alguns posts.

Em suma, gostaria de convidá-los a percorrer esses textos e visitar ou revisitar aqueles que lhes parecerem interessantes. Ao longo desta semana, tentarei avisar a todos sobre meu novo endereço, e recomeçarei a postar regularmente na semana que vem. Espero que vocês todos continuem comigo, e tragam seus amigos para uma visita, a fim de que nosso círculo aumente cada vez mais... e que sempre tenhamos novas histórias para partilhar!

Um grande abraço a todos!

Ana

sexta-feira, julho 09, 2004

Curso : Os Contos de Fadas

Descrição e Objetivo

Este curso enfoca os contos de fadas sob uma ótica multidisciplinar, situando-os como fenômeno histórico e literário e discutindo algumas das interpretações relativas ao seu significado.

O objetivo é apresentar esses contos como um patrimônio universal, com elementos comuns ao imaginário de todas as culturas, cuja transmissão é constantemente perpetuada e renovada através de narradores e escritores contemporâneos.


Conteúdo

- O que é conto de fadas? : definições do gênero segundo várias abordagens.
- Tipologia dos contos de fadas. O conto popular e o conto literário.
- A estrutura narrativa e os motivos comuns.
- Contos de fadas, símbolos e arquétipos universais.
- A gênese dos contos de fadas: os primeiros contadores e a tradição oral.
- Ritos, mitos e contos.
- Fontes de origem: Antigüidade, Oriente e o mundo céltico-bretão.
- O universo medieval e os contos de fadas.
- O maravilhoso frente ao racional : os contos de fadas e o Século das Luzes.
- Os contos de fadas a partir do séc. XVIII. As primeiras recolhas.
- Charles Perrault e o surgimento da Literatura Infantil.
- Os Irmãos Grimm.
- Hans Christian Andersen.
- Contos literários do século XIX.
- A transmissão para Portugal e para o Brasil: Romero, Cascudo, Lobato.
- Os contos de fadas no mundo atual.
- Contos modernos e revisitados. Autores contemporâneos.
- Pedagogos, terapeutas e narradores modernos: a redescoberta dos contos de fadas como chave para o autoconhecimento.

Público-alvo

Educadores, professores, bibliotecários, contadores de histórias, pesquisadores e amadores de Folclore, História e Literatura.

Duração

Este curso pode se adaptar às necessidades e demandas do público, sendo ministrado de forma compacta (encontro único de 4 horas ou dois encontros de 2 horas) ou com maior aprofundamento do assunto e a inclusão de leituras e atividades relacionadas (duração de 10 ou 16 horas, divididas de acordo com a conveniência do grupo).

Para saber mais, envie-me um e-mail!

O Jogo do Equilíbrio : primeiras páginas

Uma das piores coisas do mundo é acordar na manhã seguinte a uma briga. Esse foi o meu primeiro pensamento, quando, antes mesmo de abrir os olhos, um movimento involuntário reavivou a dor na minha testa. Mariotte me acertara em cheio daquela vez. Infelizmente, eu não fora esperto o bastante para deixar que ela o fizesse no início, antes que quase todos os pratos da casa tivessem sido quebrados pela sua fúria. Eu devia ter sabido que não adiantaria tentar me esquivar e justificar o meu atraso, quando, numa noite que julgava especial, ela me esperava há várias horas, com um jantar que levara a tarde toda a preparar e uma criança que a aborrecera um bocado antes de dormir. Bom, pior para mim, pensei, enquanto desprendia cuidadosamente os dedinhos dele da minha barba. Eu levara um bom tempo a acalmá-lo e fazê-lo adormecer de novo, e isso antes de me dar ao trabalho de varrer todos os cacos para que ele não viesse a pisá-los com os pés descalços. Depois, já com uma boa dose de dor de cabeça, tivera que esfregar o chão e as paredes, removendo o vinho e a comida que Mariotte fizera voar pelos ares. Meus pratos favoritos, para ser exato. Ela conseguira perpetrar uma vingança completa.

Respirei fundo antes de abrir os olhos. Alain dormia profundamente ao meu lado, meio de bruços, com uma das faces enterrada no travesseiro e os cachos úmidos de suor. Sem fazer barulho, levantei-me, vesti as calças e uma túnica leve e, metendo os pés nas sandálias, fui até a sala para avaliar o trabalho da madrugada. Exceto pelas manchas no tapete, estava tudo em ordem, como se nada houvesse acontecido ali. Bem que podia ter sido mesmo um sonho, pensei, enquanto me agachava para acender o fogo. Bem que Mariotte podia ter ido apenas dormir na casa do padrasto, e aparecer agora mesmo com o pão e o leite para o nosso desjejum. E bem que ela podia fazer isso de qualquer jeito, apesar da nossa briga da noite anterior. Não tinha sido a primeira, afinal, nem seria a última. Ela pouparia um bocado de esforço a nós dois se voltasse de uma vez.

Deixei a chaleira no fogo enquanto ia rapidamente até lá fora. Quando voltei, com um jarro sobre o ombro e os cabelos molhados, a água borbulhava, e preparei um chá para aliviar a dor de cabeça. Dei mais uma olhada em Alain enquanto a bebida esfriava. O sono agora já não era tão pesado, ele resmungava e contraía as pálpebras, e provavelmente iria acordar antes que eu pudesse estar de volta das compras. Então, se não me encontrasse por perto, ia fazer um escândalo que acordaria toda a vizinhança, e depois ficaria emburrado boa parte da manhã. Isso era tudo de que eu não precisava para começar o dia, por isso fui bater à porta de Rowenna.

- Ah! Bom dia, Cyprien. Isto é, se é que alguém pode ter um bom dia, depois de uma noite como a de ontem - disse ela, examinando minha testa com o cenho franzido. - Mas que horror que está isso aqui! Por que você não fez umas compressas? Agora vai levar um quarto de Lua para desaparecer.

- Isso é o de menos - suspirei. - Talvez até me ajude a fazer logo as pazes com Mariotte. A raiva ia durar mais, se ela não tivesse conseguido me acertar nem uma vez com aqueles pratos.

- Lá isso é verdade. E ela chegou a quebrar muitos? Pelo estardalhaço, deve ter sido pelo menos uma dúzia.

- Nove, pelas minhas contas. E duas travessas, sendo uma aquela colorida que foi da minha avó. Se eu soubesse disso, teria dado um jeito de vendê-la. Estão pagando um bom dinheiro pela antiga louça do Povo Alto.

- Pois é, mas agora é tarde - disse Rowenna. - E você ainda vai ter que comprar uns pratos novos. Está saindo para fazer isso?

- Talvez, se Bendoux já tiver aberto a loja. Mas na verdade eu ia apenas comprar coisas para o desjejum. Você podia dar uma olhada no Alain enquanto isso? Ele está dormindo, mas vai armar uma cena, se acordar e não encontrar ninguém.

Rowenna atravessou a rua com os pés descalços e entrou em minha casa. Felizmente, eu tivera todo o cuidado ao varrer os cacos. Ela se sentou ao lado da janela, trançando os cabelos, e eu tomei meu chá enquanto avaliava os estragos no tapete. Valeria a pena tentar salvá-lo?

- Rowenna, o que é que pode tirar as manchas desse tapete?

- Depende - respondeu ela, distraída. - Manchas de quê?

Enumerei os pratos do jantar, mas, antes que chegasse à sobremesa, ela me fez parar e sugeriu que eu arranjasse um tapete novo. Falar do creme de leite não ia melhorar as coisas, por isso me resignei a gastar mais algumas moedas na oficina de Jarmille. Abri a bolsa para ver se poderia ser em breve. Infelizmente, algo me dizia que não.

- Bom, vou tratar das compras - disse eu, pegando o chapéu. - Quer que eu traga alguma coisa? Pão, ovos, leite?

- Para mim, não, mas você pode trazer o leite da Colette - disse Rowenna. - No estado dela, é preciso se alimentar bem, e Alfonz não vai se levantar tão cedo. Ouviu o barulho? Esta noite, ele trouxe mais dois ou três cavalos. Espero que isso não venha a acabar mal.

Eu também - falei, pensando na responsabilidade que me caberia, se Alfonz fosse preso, junto a Colette e à criança que ela esperava. A família deles era bem grande, felizmente, mas, como seu cunhado mais velho - isso admitindo que Mariotte voltaria para mim - eu certamente não poderia deixar de me envolver com o drama da jovem esposa deixada só e grávida.

Principalmente porque fui eu que ensinei o marido dela a roubar cavalos.

O Potro Dourado: primeiras páginas

O vento ainda soprava quando Mikela saiu da tenda. Em volta do acampamento, a chuva tinha deixado seus sinais: folhas lustrosas e gotejantes nos arbustos, galhos partidos, nuvens espessas e baixas no céu sombrio. As tendas tinham resistido, mas o toldo que protegia o fogão de pedras desabara, e um caldeirão, esquecido ali pelas mulheres, transbordava com a água da chuva. Que bom seria, pensou Mikela, se em vez disso pudessem vê-lo sempre cheio de comida!

Recolhendo as saias, ela se agachou sobre as cinzas molhadas, esvaziou o caldeirão, ouvindo o rumor da conversa na tenda vizinha. Então, o marido de Blanche já tinha voltado, assim como o outro caldeireiro, o gordo Samael. Talvez tivessem vindo mais cedo por causa da chuva. Isso não era bom, pois certamente queria dizer que não tinham achado trabalho, mas era o que qualquer homem sensato teria feito. Qualquer um, até um cabeça-dura como Estienne. E, de fato, se os seus olhos não a enganavam, era ele mesmo que vinha vindo, puxando o cavalo pelas rédeas, enquanto Estin se encolhia sob uma manta no alto da carroça.

- Alô, mãezinha! - O vento trouxe até ela a voz alegre, não a do filho, mas a do marido. Graças a Deus, pelo jeito de falar, ele tivera sorte. Molhado até os ossos, ele veio ao encontro da mulher, deixando que Estin conduzisse a carroça até o abrigo das árvores.

- Conseguimos trabalho - foi logo dizendo Estienne, antes de beijá-la. - É numa fazenda aqui perto, precisam de vários consertos e de algumas ferramentas. Há trabalho para uns cinco dias, talvez mais. E eu já trouxe uma parte do pagamento. Consegui até um frango. Há quanto tempo seus filhos não vêem carne, hem, mãezinha?

- Há muito, mas não morreram por isso e hoje vão comer bem - disse Mikela, e o homem sorriu, pois tinha ouvido o que esperava. Mão na mão, os dois olharam em torno, contemplando sua única riqueza. Agnès, de quatro anos, que brincava ao lado da tenda com a prima Amine; Lorenz, ensaiando os primeiros passos; Estin, ocupado em secar o pêlo dos cavalos com a ajuda do amigo Samy. E nesse momento os olhos do pai se estreitaram, percebendo a ausência cada vez mais comum nos últimos tempos.

- Onde está o Zemel? - Uma censura, mais do que uma pergunta. - Até onde eu sei, é tarefa dele tratar dos cavalos.

- É, sim. Mas ele não está aqui. Ele foi até a aldeia, logo depois que vocês saíram. Deve ter ficado em algum lugar, esperando passar a chuva.

- Hah! Eu sabia! - resmungou Estienne. - Perambulando por aí, como sempre. É disso que ele gosta.

- Ele foi tentar a sorte - disse Mikela. - Você sabe que ele faz o melhor que pode.

- O que não é muito.

- Não é culpa dele. E também não é culpa de meu pai - acrescentou ela, em tom defensivo. - Ele não queria ter ficado aleijado como ficou. Não queria ter parado de treinar Zemel. E, se ele diz que devíamos ir para Pwilrie...

- Ah, não! Não de novo!

- ... Então, talvez devêssemos tentar, ao menos por algum tempo - insistiu Mikela. Contrariado, Estienne sacudiu a cabeça, deixando claro que não queria falar no assunto, embora ambos soubessem que não podia ignorá-lo. Não se quisesse o bem de Zemel, como queria o dos outros filhos. E no entanto aquilo podia representar um golpe duro para toda a família.

- Vamos pensar nisso numa outra hora - disse Mikela, por fim, diante da obstinação do marido. - Vamos pegar as coisas que você trouxe e acender o fogo. Você e Estin vão se secar e mudar de roupa e eu vou começar a fazer um ensopado. Você vai se sentir bem melhor, vai pensar melhor... assim que tiver posto alguma coisa dentro da barriga.

quinta-feira, julho 08, 2004

O Caçador: primeiras páginas

Antes que o Sol nascesse já havia muitas léguas de caminho em seus pés, e era ao som de seus passos, com a luz surgindo entre as faias, que erguiam vôo os primeiros pássaros da manhã. Era um rapaz alto, de ombros largos e braços sólidos, que, na última estação, acabara enfim de crescer tudo que lhe era devido. Por causa disso a jaqueta de couro, herdada de um homem menor, tivera que ser posta de lado, e durante o último Inverno ele se abrigara com um manto de peles, costuradas com uma agulha de osso e tendões de veado. Agora era de novo Primavera, e à agradável sensação de ter os pés secos somava-se o cheiro vivo do ar e das árvores, misturado ao aroma do pão que vinha dos fornos do castelo. Um pedaço de pão quente, hummm... Com mel... Na sua imaginação, ele antecipava a chegada, a recepção sempre festiva das mulheres, que admiravam as peças de caça que trazia e o convidavam para comer e descansar perto do fogo. Além disso, falavam com ele, uma tagarelice sem fim que nem sempre entendia, mas que era bem-vinda após um quarto de Lua ouvindo apenas os sons da floresta. Não que também não os apreciasse, mas gostava de ter com quem falar, ao menos para se certificar de que ainda sabia fazê-lo. Melhor ainda era cantar, pois ajudava a encurtar o caminho. Agora mesmo, seguindo a trilha, ele entoava algumas notas entre os lábios quase fechados, um som tão baixo que ninguém o teria notado na escuridão da floresta; mas a voz se tornava mais clara à medida em que o Sol se erguia, e assim, a vinte passos dos portões, a cantiga chegou finalmente aos ouvidos do sentinela.

Como sempre, o homem cochilava em seu posto, apoiado na lança que jamais conhecera uma batalha. Esse, aliás, era também o caso do seu dono, embora se tratasse de um veterano por quem já tinham passado muitos Invernos: um velhote de juntas duras e modos quase amigáveis, que já descria completamente da necessidade de suas funções. Tanto que mal abriu os olhos antes de deixar entrar o rapaz, embora qualquer um pudesse ver que aquelas mãos e aquele arco teriam sido bastantes para tomar o castelo. Ou será que o velho era dos que acreditavam nos boatos - era um daqueles que cuspiam para o lado, a fim de evitar o mal, enquanto juravam que a esposa do rei protegera as muralhas com um encantamento?

O caçador jamais pusera os olhos sobre a rainha. Viera para fazer o que fazia todo quarto de Lua: deixar uma parte do que conseguira, receber sua paga, voltar para a floresta. Nem as mulheres da cozinha esperavam que fosse diferente, pois agiram como sempre, empurrando-lhe comida e tagarelando sem parar enquanto ele se sentava perto do fogo, as pernas estiradas para descansar da viagem, devorando com grandes dentadas o seu desjejum. Falavam e falavam e emanavam um cheiro desconcertante, algumas delas ao menos, pensou ele, sem saber de onde vinha aquele odor que tanto o atraía. Tudo que sabia é que, a cada visita que fazia ao castelo, mais se tornava difícil partir; mas até então não conseguira entender o motivo, por isso não havia uma razão pela qual ficar. Assim, tão logo acabou de comer, ele se levantou e pegou a bolsa, preparando-se para a jornada de regresso à floresta. Estava de costas para a porta quando, de repente, uma das moças deu um pequeno grito, um alerta a partir do qual o silêncio dominou a cozinha. Inquietas, as mulheres se calaram, só restando o ruído das panelas que borbulhavam no fogo; e quando se virou, pensando em perguntar o que havia, o caçador se viu frente a frente com um homem de aspecto assustado, que já abria a boca para começar a lhe falar.

- A rainha - disse ele, e sacudiu a cabeça, sem entender o porquê da ordem que transmitia. - Você é chamado para uma audiência com ela. A sós.

- A sós...! - sussurraram as mulheres, mas o caçador não viu o medo em seus olhos, pois já tinha deixado a cozinha em companhia do mordomo. Com passos rápidos, os dois percorreram vários corredores, logo chegando a uma outra ala do castelo, onde os aposentos eram frios e quase nus. No último deles - havia um grande espelho numa das paredes, escuro como o fundo de um poço - o mordomo se esgueirou para trás de uma tapeçaria, de onde voltou com o rosto ainda mais pálido para mandar entrar o caçador.
Um fio de consciência de onde estava e de quem era o fez ajeitar as roupas antes de se apresentar perante a rainha, de olhos baixos como para qualquer estranho, mas de pé, ao menos no instante que antecedeu a ríspida ordem para se curvar. O caçador pôs um joelho no chão e esperou, até que a mesma voz o mandou erguer o rosto. À sua frente, sobre o trono, estava uma mulher de meia-idade, envolta nas peles dos arminhos que ele apanhara no início do Inverno. Não era difícil suportar seu olhar, porque nada havia nele do calor inquietante dos olhos das outras mulheres. Também não havia a benevolência com que o fitavam quando ele era mais jovem, no tempo em que mendigava os restos das cozinhas, antes que a floresta o ensinasse a ganhar seu sustento. Na rainha não havia calor ou piedade, mas também não havia ódio. Só o que havia era desprezo - e isso era tão familiar ao caçador que já deixara há muito de incomodá-lo.

- Então, você é o que traz a carne - disse a rainha, afagando a pele do arminho. - Tem uma boa faca? Uma faca afiada, que chegue até o coração? Não importa - continuou, dispensando-o, com um gesto, de desembainhar a faca de caça. - Importa que conheça bem os caminhos da floresta... Os mais profundos, para onde vão as feras...

Sorriu, com os olhos brilhando, de perversidade sem dúvida, mas o caçador não o percebeu e retribuiu o sorriso. Vendo isso, a rainha se mostrou ainda mais satisfeita: ali estava um bom servo, que a temia e a admirava e jamais a desapontaria, o homem perfeito para desempenhar aquela tarefa. Pois ela tinha uma missão para lhe dar, e esta não podia ser adiada. Era uma missão muito importante, e além disso secreta, por isso ninguém mais poderia ficar sabendo. Tendo deixado isso bem claro, a rainha se inclinou para a frente e começou a falar, sem pressa, para que o caçador não pensasse estar sendo traído por seus próprios ouvidos; mas suas palavras eram tão inacreditáveis que ele deu um salto, assim que ela revelou a missão, e gaguejou por um longo tempo até conseguir fazer uma pergunta. Ela estava brincando com ele, a sua boa senhora? Ou aquilo era uma forma de testar a sua fidelidade ao falecido rei?

- Claro que não! Quero que se livre dela, e é tudo - retrucou a rainha. - Por que outra razão eu perderia meu tempo com você?

Sem esperar resposta, ela continuou a lhe dar instruções, insistindo em que as repetisse, até se assegurar de que não tinha mais dúvidas. Então, mandou-o erguer a mão e fazer um juramento: que cumpriria a missão que lhe fora confiada, que nunca falaria sobre isso a ninguém, que levaria o segredo para o túmulo, ainda que tentassem arrancá-lo sob tortura. Sem outra saída, o rapaz jurou, e mais uma vez a rainha sorriu, dizendo que o recompensaria por seus serviços. Então, recostou-se em suas almofadas e convocou o mordomo, a quem também deu instruções, enquanto o caçador refletia sobre o que ela o encarregara de fazer. Era completamente absurdo - mas eram ordens da rainha, e, por isso, ele as repassou várias vezes até ficarem gravadas, não deixando espaço em seus pensamentos para questionar e erguendo os olhos já sombrios quando o mordomo anunciou a entrada de Sua Alteza Real. Era ela, então, que ele devia escoltar até a floresta, a fim de colher flores - ela, que jamais deveria regressar daquele passeio, e a quem ele podia... Hummm. Uma das coisas que não entendera bem fora aquela frase da rainha.

- Lembre-se: pode fazer tudo - repetiu ela, em voz baixa, enquanto a enteada se afastava a fim de buscar uma cesta para suas flores. O caçador assentiu, mais confuso que nunca, e se afastou, seguido pela princesa, que não precisara de tempo para decidir que temia mais a fúria de sua madrasta do que a companhia daquele bárbaro. Ela atravessou os portões ao seu lado, sem fugir, mas procurando manter uma pequena distância entre ambos. Parecia amedrontada, e o caçador se aproximou e pôs a mão em seu ombro, guiando-a para a trilha que se iniciava entre as árvores. Era a primeira vez, ao que se lembrava, que tocava no corpo de uma mulher, mas a sensação que poderia resultar disso estava encoberta pela piedade: ela era tão jovem e frágil, matá-la parecia tão errado quanto abater uma cria do último Outono.

O Caçador: sinopse da obra

Muitas eras atrás, num reino cujo nome ficou esquecido, um caçador recebeu uma estranha ordem de sua rainha: escoltar a princesa até a floresta e ali matá-la, levando o seu coração como prova de que a missão fora cumprida. Todos sabemos o que aconteceu a partir daí... mas apenas no que se refere à princesa. O que teria acontecido com o caçador?

Ana Lúcia Merege convida o leitor a percorrer uma das possíveis trajetórias do personagem, que passa por mil peripécias a fim de encontrar o que chama de “floresta livre”. Assim, ele pesca no rio um par de botas mágicas, presencia o encontro entre a Fera e o pai da Bela, ajuda um príncipe a despertar uma princesa que dorme... até que, finalmente, encontra uma história na qual tem a chance de desempenhar o papel principal.

Repleto de aventura e evocando, ao mesmo tempo, a magia dos contos de fadas, este livro narra também a viagem de aprendizado de um jovem em busca de sua identidade: uma jornada às vezes dura, às vezes divertida, mas que, mais cedo ou mais tarde, todos nós somos levados a empreender.

Uma Autobiografia Anacrônica



Ontem

Nasci em 1969, no Rio de Janeiro, sob o signo de Aquário. Invento histórias desde que me entendo por gente, com o incentivo do meu avô Jorge (que já está no céu, que saudade!) e da minha irmã Luiza, a quem eu vivia pedindo que desenhasse meus personagens.

Aprendi a ler com uns quatro anos, e desde aí me tornei uma tremenda “traça”. Por volta dos seis resolvi que ia ser arqueóloga, mas desisti quando me disseram que, para isso, eu teria que morar no Egito. Mesmo assim, continuei a me interessar por Arqueologia e temas ligados à Pré-História. Também gosto muito de Mitologia, especialmente a nórdica, o que viria a se refletir nos meus escritos posteriores. Mas antes disso eu acrescentei um monte de coisas à minha bagagem: pratiquei Yoga, li sobre Xamanismo, estudei Astrologia e fiz teatro amador. Na verdade, eu pensei durante um bom tempo em seguir a carreira de atriz, até descobrir que só fazia bem um certo tipo de personagem: o que tivesse a ver comigo, ou, mais exatamente, com o meu universo ficcional.

Daí a querer me tornar escritora foi muito rápido, até porque eu já estava mesmo rabiscando alguma coisa além dos indefectíveis poemas da juventude. Minhas primeiras tentativas foram no gênero romance histórico - algo vagamente ambientado na Guerra dos Farrapos - mas logo a fantasia acabou por levar a melhor. Foi quando eu comecei a escrever histórias sobre os deuses nórdicos (nenhuma sobreviveu à autocrítica) e, em seguida, sobre o universo mágico que mais tarde eu viria a chamar de Athelgard, dentro do qual estou trabalhando até hoje.

Por outro lado, eu sabia que é difícil viver de escrever ficção no Brasil, e tinha que escolher uma profissão paralela. Letras e História eram opções, mas, seguindo a dica de uma amiga, acabei por entrar para o curso de Biblioteconomia. Minhas matérias preferidas eram as que tratavam da História do Livro, da Leitura e da Literatura, e minha monografia foi sobre a influência dos árabes na cultura ibérica. Ao escrevê-la, eu já estava de malas prontas para ir viver em Portugal, onde me reuniria ao João, com quem me casei uns meses antes da formatura, e que estava fazendo mestrado em Lisboa. Enquanto vivemos lá, trabalhei na biblioteca da Universidade Católica Portuguesa - a foto aí em cima é desse tempo -, conheci lugares maravilhosos da Europa (sempre de mochila nas costas) e escrevi meu primeiro livro, O Caçador, uma fantasia baseada em vários contos de fadas.

De volta ao Brasil, fiz concurso para a Biblioteca Nacional, onde estou até hoje. Trabalho na Divisão de Manuscritos (meus preferidos são os Livros de Horas medievais), escrevo textos de divulgação e às vezes monto exposições. Fiz também mestrado em Ciência da Informação, que concluí com uma dissertação sobre a trajetória e o possível futuro do livro.

Em 2001 dei uma parada nos escritos para ter, cuidar e curtir ao máximo a minha filha Luciana, mas no ano seguinte voltei a escrever com força total. E foi quando eu senti que era hora de publicar alguma coisa, compartilhar meu universo de ficção e trocar idéias com pessoas que também gostem do gênero fantasia.

A primeira versão do blog A Estante Mágica de Ana surgiu no Blig, em Dezembro de 2002. O endereço mudou em Junho do ano seguinte (Nova Estante Mágica), quando o círculo de leitores já havia aumentado bastante. Foi principalmente o incentivo destes que me levou a publicar alguns artigos e a me decidir - na falta de um editor que se interessasse pelos originais - a publicar O Caçador de forma independente.

Contando com a ajuda de minha irmã, Maria Luiza (o que faço até hoje) e meu cunhado, Walter Vasconcelos, para a parte de programação visual, o livro saiu em Março de 2004, pela Fábrica de Livros do SENAI -Rio. Como todo livro independente, ele foi divulgado através do "boca a boca" - naquele tempo as redes sociais não eram o que são hoje! -, nos cursos que eu dava sobre contos de fadas, entre meus amigos e conhecidos e principalmente através deste blog que, agora, está em sua terceira versão.

Hoje

Muita coisa rolou desde esse recomeço. O Caçador foi republicado pela Franco Editora, de Juiz de Fora - MG, e já foi adotado em várias escolas; publiquei, primeiro independente, depois pela Editora Claridade, de São Paulo, o ensaio Os Contos de Fadas : origens, história e permanência no mundo moderno; entrei em contato com a Editora Draco, de São Paulo, e comecei a publicar uma série de fantasia ambientada em Athelgard, iniciada por O Castelo das Águias, que saiu em 2011 e é talvez meu trabalho mais conhecido até agora. Também publiquei um livro infantojuvenil, Pão e Arte, pela editora carioca Escrita Fina. E, em todo esse tempo, vêm saindo contos meus em várias antologias, além de uma ou outra organizada por mim.

Atualmente me dedico a divulgar o segundo livro da série iniciada por O Castelo das Águias, cujo título é A Ilha dos Ossos, e a escrever contos e artigos. Livros para o público infantil e infantojuvenil estão nos meus planos também. E uma coisa que adoro é ser convidada para falar sobre meu trabalho em escolas, feiras do livro e outros eventos literários!

Aqui, na Estante Mágica, publico algumas crônicas, textos sobre Literatura, Mitologia, História e assuntos correlatos, dou dicas literárias e, last but not least, falo um pouco sobre as batalhas do meu dia-a-dia, sobretudo as que têm por objetivo construir uma carreira como escritora. Espero que vocês gostem e que me ajudem a ampliar cada vez mais este círculo.

Para isso, além de acompanhar as novidades aqui da Estante, convido-os - e peço que convidem seus amigos - a me seguir no Twitter ou curtir a página da Estante no Facebook. Se preferirem, escrevam pra mim. Vou responder, ainda que possa levar um tempinho. :)

Obrigada pela visita!

quarta-feira, julho 07, 2004

A Origem do Arlequim



(...) Sem fama e sem vintém,
Amando os vinhos e os baralhos,
Eu, nesta veste de retalhos
Sou tudo quanto te convém.

(Manuel Bandeira. O Descante de Arlequim)


Já que estes dias - ao menos tradicionalmente - são dias de folia, vou aproveitar para falar de um trickster que tem tudo a ver com isso : Arlecchino. Ou, como há tantos Carnavais ouvimos dizer... o Arlequim.

Imortalizado em sua roupa de losangos, famoso pela agilidade e pela desfaçatez, o Arlequim parece ter origens mais antigas que a "Commedia dell'Arte" surgida na Itália do século XVI. Alguns autores encontram referências nos espetáculos cômicos da Grécia e da Roma antigas, conhecidos como "mimos" (daí vêm os termos "mímica" e "pantomima"), nos quais os atores usavam máscaras e provocavam o riso da platéia por meio de ditos e contorções grotescas. Também é digno de nota o parentesco entre o Arlequim e os saltimbancos medievais, igualmente vestidos de retalhos - ou de trapos - e muitas vezes, por força das circunstâncias, agindo com a esperteza e o senso de oportunidade típicos de um trickster.

Uma origem bem diferente - e sombria - para o nosso (anti-)herói é proposta por Affonso Romano de Sant'Anna, segundo o qual "Arlequim" é uma corruptela de "Harila-King", o rei de um exército bárbaro anglo-normando, que invadia, queimava, estuprava e dizimava aldeias inteiras por volta do ano 1100. A formidável maça usada pelo guerreiro viria, com o tempo, a se transformar no porrete do Arlecchino italiano, e suas vestes ensangüentadas e esfarrapadas no traje de losangos. Vale lembrar, a esse respeito, que o romance "O Arqueiro", de Bernard Cornwell (aquele da trilogia arturiana iniciada com "O Rei do Inverno"), também cita um misterioso "Arlequim", associando-o ao mesmo cenário de morte e destruição na Inglaterra do século XIV. Naturalmente, o autor atribuiu contornos ficcionais ao personagem; mas é possível que tenha se baseado nos mesmos registros citados por Sant'Anna, o qual, aliás, aponta outras semelhanças entre o chefe bárbaro e as primeiras representações teatrais do Arlequim .

Sejam quais forem suas origens mais remotas, não há dúvidas de que o Arlequim, tal como chegou até nós, foi popularizado a partir da Commedia dell'Arte, a forma de representação mais livre e burlesca que surgiu na Itália, a partir da segunda metade do século XVI, em contraponto às peças clássicas, sérias e estudadas que eram encenadas no período. Várias companhias de artistas aderiram ao novo estilo, no qual as histórias tinham temas populares, mesclando a sátira e o romance, os duelos e a comédia, as proezas acrobáticas e as frases de duplo sentido. Os tipos representados eram sempre os mesmos, figuras universais e quase caricatas: o amante, a donzela, o doutor, os serviçais. Nesse último grupo se achava o Arlecchino, ou Arlequim, o mais esperto dos criados, às vezes servidor de dois patrões. Trabalhando em proveito próprio e tirando vantagem da fraqueza dos senhores, ele aparece muitas vezes como o amado de Colombina - a criada da mocinha -, a qual, diga-se em seu favor, era sempre mais correta e leal do que seu volúvel e versátil namorado.

Foram inúmeros os atores que representaram Arlequim. Segundo Roberto Delpiano, o primeiro de que se tem notícia foi Alberto Naselli, de Bérgamo, em 1572. Seus trajes eram uma calça larga e uma jaqueta coberta de retalhos e sua máscara era feita de madeira. Com o tempo, a indumentária se tornou mais sofisticada, assim como o caráter do personagem, que passou a dar voz a críticas sociais cada vez mais incisivas.

A Commedia dell'Arte declinou a partir do século XVIII, mas a figura do Arlequim - assim como as de seus companheiros Colombina e Pedrolino, mais tarde transformado no romântico Pierrot - já havia se incorporado ao imaginário popular, surgindo principalmente nas manifestações festivas como o Carnaval. Na virada do século XIX para o XX eles foram constantemente representados por artistas como Léon Cavallo, Degas, Cézanne e Picasso; no Brasil, seriam tema constante entre os escritores modernistas, como Bandeira, Menotti del Picchia e Mário de Andrade, criador do grande trickster que é Macunaíma. As fantasias e alegorias de Carnaval também se baseavam nos personagens, sem falar nas marchinhas, que foram o tipo de música mais constante nos bailes até a década de 1960.

Mais ou menos a partir daí, uma conjunção de fatores, tais como o investimento da indústria fonográfica e da mídia em geral no espetáculo proporcionado pelas escolas de samba, acabou por mudar completamente a "cara" do nosso Carnaval. No entanto, mesmo que não o vejamos mais tomando sorvete com a Colombina, tenho a impressão de que o Arlequim continua a fazer parte da memória e da alma brasileiras. Seu espírito está presente em nós - naquela parte de nós que é brincalhona e irreverente, que vive o dia de hoje, que é criativa e contestadora e sobrevive conforme é possível. E, talvez, ele viva também em nosso lado mais romântico e arrebatado... aquele que inspirou Geraldo Carneiro e John Neschling a escrever esta canção.

Olha a Lua

Olha a Lua,
Minha doida, minha triste Colombina.
Conta por que sofres tanto assim.
Será que é pouca
a minha alma louca de Arlequim?
Dentro de mim um sonho danado
de viver embriagado
pelo lado avesso...

Olha a Lua
Antes que ela vá pra trás do edifício.
Não, não tenha medo
de falar do teu segredo,
de contar na escuridão
as penas do teu coração.

(...)

Coiote Rouba o Fogo

Houve um tempo em que as pessoas não tinham fogo. No inverno, elas não podiam se aquecer, e tinham que comer os alimentos crus. O fogo era guardado numa grande rocha branca pertencente a Trovão, um ser terrível, de quem até mesmo o Urso e o Leão da Montanha tinham medo.

Coiote não tinha medo de Trovão. Um dia, este rugiu tão alto que todas as criaturas se esconderam. Coiote achou que esse era o momento de roubar o fogo. Então, Coiote subiu até a montanha mais alta, onde Trovão vivia, e lhe disse: "Tio, vamos jogar dados. Se vencer, você me mata. Se eu vencer, você me dá o fogo".

Trovão havendo concordado, os dois jogaram com dados feitos dos dentes de castores e marmotas, com desenhos em cada lado representando uma pontuação. Havia gravetos, ao lado, para contar os pontos. Mas Coiote, o mestre da trapaça, continuamente distraía Trovão, com isso conseguindo finalmente ficar com todos os gravetos. "Tio, eu venci", disse ele. "Dê-me o fogo". Trovão sabia que Coiote havia trapaceado, mas não tinha como provar.

Coiote chamou todos os animais ao topo da montanha para que o ajudassem a carregar a rocha que continha o fogo. Ela era grande, mas frágil como uma concha. Os animais se prepararam para levá-la, mas Trovão rugiu: "Não tão rápido. Coiote ganhou o jogo e por isso eu lhe dei o fogo, mas ele trapaceou e, portanto, vou matá-lo. Onde ele está?"

Bem, Coiote havia lido os pensamentos de Trovão e antecipado o que ele faria. Coiote podia despir a parte externa de seu corpo, como se fosse uma manta, por isso tirou a pele, o pêlo, o rabo, as orelhas - tudo - e partiu apenas com seus órgãos internos. Então, mudando o tom de voz, como se estivesse muito perto, chamou: "Tio, estou aqui. Mate-me se puder".

Trovão pegou a rocha que continha o fogo e atirou sobre o que acreditava ser o Coiote. Mas acertou apenas a pele e o pêlo. A rocha se quebrou em várias partes. Cada animal pegou um pedacinho e colocou sob o braço ou a asa, e todos se apressaram a levar o fogo às tribos da Terra. Coiote, calmamente, voltou a vestir seu manto de pêlo. "Adeus, tio", disse ele a Trovão. "Não volte a apostar. Não é o que você faz melhor". Então, ele se foi.

......

Texto adaptado por mim a partir da história contada por um narrador Klamath (tribo do Oregon), contida em American Trickster Tales, de Richard Erdoes e Alonso Ortiz (Penguin Books).

O Coiote: um trickster norte-americano



Coiote, Coiote, por favor, me diga
O que é a magia?

Magia é o primeiro gosto
das framboesas maduras, e
magia é uma criança dançando
sob a chuva de verão.

(Peter Blue Cloud. Elderberry Flute Song)
.

......

Pessoas,

Através destes versos do poeta de origem iroquesa, Peter Blue Cloud, tenho o prazer de apresentar um dos meus tricksters prediletos: Old Man Coyote.

Ao contrário de seus "colegas" do Velho Mundo, que têm (quase o tempo todo) uma aparência humana, os trapaceiros das histórias nativas americanas vêm sendo freqüentemente descritos como animais, embora pensem como homens e possam assumir essa forma. Segundo o etnólogo William Bright, isso se deve ao fato de esses mitos terem sido erroneamente interpretados pelos europeus, uma vez que os animais que aparecem nas histórias não são, na realidade, animais comuns. Eles são Primeiras Pessoas, membros de uma raça anterior à nossa, com poderes que os elevaram ao status de semideuses, heróis culturais e/ou antepassados da raça humana. As características desses seres teriam passado aos animais que carregam seus nomes, cujas figuras são algumas vezes utilizadas em representações do mito. Assim, os totens com figuras de corvos e as histórias sobre corvos, por exemplo, se referem na verdade a um Primeiro Corvo, ou ao Espírito que anima todas essas aves; e este pode estar identificado com uma pessoa, clã ou tribo que o tem como uma espécie de guia ou protetor.

No Brasil, animais como o jaguar e o gavião-real aparecem freqüentemente nessa posição, enquanto o papel de trapaceiro cabe a personagens como o Jabuti, do qual existe todo um ciclo de histórias, a Anta, a Saracura e o famoso Boto dos igarapés amazônicos. Já nas Américas do Norte e Central, vários animais são associados à figura do trickster, como a Aranha, o Corvo e a Lebre; mas o mais popular de todos é sem dúvida o Coiote, que deve seu nome (coyótl) aos Astecas e cujas histórias ocorrem numa área fenomenalmente extensa, que abrange desde a Colúmbia Britânica até a Guatemala.

Ainda segundo Bright, a adaptabilidade do Coiote (o que se estende ao animal propriamente dito, Canis Latrans) e o fato de se tratar de um dos mitos mais antigos o levam a ser chamado, em várias regiões, de "Old Man Coyote", ou simplesmente "Old Man". No entanto, a função do personagem no mito varia segundo a cultura. De um modo geral, o Coiote sempre está ligado ao desejo por comida e por sexo; mas, na Califórnia e na região do Plateau (Oregon, Idaho), ele é mais próximo do arquétipo do trickster e, portanto, mais comparável a seus congêneres de outras mitologias, com narrativas ligadas à criação do Mundo e ao roubo do Sol. Na Baixa Califórnia, o Coiote estaria mais envolvido com os tempos modernos, havendo registros de histórias que mostram as disputas entre ele e os soldados dos fortes militares, enquanto na América Central e no México não se assemelha de forma alguma a um herói cultural, fazendo quase sempre o papel de tolo (esse aspecto deve ter inspirado os criadores de Wile E. Coyote, o "Coiote" da Warner Bros. ... com o que ele gasta encomendando "armas mortíferas" da ACME, já teria sido possível pagar várias refeições mais substanciais do que o magricela do Beep-Beep!). ;)

Em suas obras de auto-conhecimento baseadas na tradição nativa americana, Jamie Sams aponta ainda a identificação entre o Coiote e aquilo que é conhecido como a "Criança Interior": aquele aspecto, dentro de nós, que é verdadeiro e inocente, livre das máscaras do "personagem social" que aprendemos a encarnar. A interpretação ganha força se pensarmos nele (e nos demais tricksters) como aqueles que, tal como as crianças, conservam todas as suas potencialidades intactas: a capacidade de ação, a do reinício, a da sobrevivência e, last but not least, a da quebra das regras estabelecidas. Enfim, o Coiote é capaz de qualquer atitude inesperada, mas sua existência e participação nas narrativas é fundamental para que as coisas continuem acontecendo. E, contra as expectativas dos que previam o fim dos mitos e histórias populares no mundo moderno... elas continuam.

Entre os nativos americanos, as histórias do Coiote ainda são usadas como forma de ensinar os valores tradicionais e fortalecer o senso de identidade e dignidade. Por outro lado, a partir da década de 1950, os pesquisadores começaram a registrar as histórias, estabelecendo conexões com outros mitos e sistemas de crenças - o beatnik Gary Snyder, por exemplo, traçou um incrível paralelo entre o Coiote e os ensinamentos do zen-budismo - e contribuindo para a sua difusão, ao passo que autores como Blue Cloud e Bruce Bennet se inspiraram no trapaceiro em seus poemas e textos literários. Assim, aos poucos, nosso Old Man deixou de ser uma figura restrita às narrativas orais dos nativos americanos para assumir, finalmente, as dimensões universais que compartilha com seres tão ilustres quanto Hermes, Sísifo, Ulisses e o hour-concour nórdico, o trickster por excelência e patrono destas páginas: Loki Laufeyjarson.

Arte de Kyoht Luterman.

Fantasy Fiction: uma síntese

Dentre todos os gêneros literários, este talvez seja o mais difícil de definir. Associado, na maior parte das vezes, a histórias que se passam em mundos imaginários, com a participação de Elfos, magos e dragões, ele pode, no entanto, admitir as mais diversas temáticas, desenvolvidas em quaisquer cenários, inclusive o atual e urbano. Basta apenas que se esteja de acordo com a definição mais ampla, segundo a qual a literatura do tipo fantasy é toda aquela que evoca o mágico, o sobrenatural, o invisível... Enfim, toda a narrativa de ficção que não se desenvolve dentro de parâmetros perfeitamente ajustados ao mundo que conhecemos como "real".

Dentro dessa definição, podem-se considerar como pertencentes ao gênero boa parte dos clássicos da Antigüidade, desde a Gesta de Gilgamesh (cerca de 2000 a. C.) às obras de Homero e de Virgílio. De fato, se pensarmos bem, os elementos mágicos - aqueles que hoje caracterizam a literatura do tipo fantasy - estão todos presentes nesses textos: a aventura, os encantamentos, a jornada do herói. Ao longo dos séculos, esses elementos continuam a aparecer, tanto na literatura européia - as sagas nórdicas e os romances de cavalaria são bons exemplos - quanto na tradição escrita e oral de outras civilizações. No entanto, a maior parte dos autores contemporâneos, embora concorde com a influência exercida pela literatura ancestral sobre a fantasy moderna, atribui a esta um perfil próprio, no qual o elemento mágico (que pode ou não se estender até a criação de um mundo imaginário, ou de raças diferentes da humana) é deliberadamente introduzido pelo autor com o intuito de provocar no leitor o espanto e o deslumbramento.

Além de se inspirar nos antigos mitos e narrativas - e, é claro, em sua própria criatividade - os autores de fantasy também se valem de ciências como a filologia, a história, a antropologia e a arqueologia, criando histórias ambientadas em civilizações antigas ou lendárias. Robert E. Howard (autor das histórias de Conan) foi ainda mais longe, criando uma completa "Era Hiboriana", com atlantes, pictos, estígios, lemurianos e - é claro - cimérios. Outros escritores preferem deslocar a ação para mundos inventados (com ou sem conexão com o nosso), ou para o futuro, havendo também os que introduzem elementos mágicos no mundo "real". Nesses casos, a fantasy se confunde facilmente com a ficção científica e com o que se costuma chamar de "literatura fantástica". Na verdade, as fronteiras entre esses gêneros de ficção são muito tênues, e algumas obras mesclam características de dois ou mais dentre eles, podendo facilmente se enquadrar em mais de uma definição.

Outro tipo de história facilmente confundido com a fantasy são as obras destinadas ao público infantil e infanto-juvenil. Na verdade, muitas delas pertencem, realmente, ao gênero: a única diferença é terem sido escritas para crianças. Os leitores adultos de fantasy provavelmente apreciariam a leitura, ou a releitura, de autores como Barrie, Andersen, Astrid Lindgren e Michael Ende. Essa interface tem sua contrapartida, havendo uma boa possibilidade de que as crianças, tendo contato com essas obras, venham a se tornar mais tarde leitores de fantasy destinadas ao público adulto.

Um ponto importante a destacar quando se fala sobre fantasy é a grande variedade de subgêneros, isto é, de tipos de narrativa que podem se enquadrar nessa definição. Os mais conhecidos são a chamada high fantasy (literalmente, "alta fantasia"), na qual os heróis se engajam em uma causa, geralmente na luta contra o mal; a aventura, da qual faz parte o tipo de história conhecido como "sword and sorcery"(espada e magia); a fantasy humorística; a fantasy do tipo conto de fadas, sejam eles modernos ou a recriação de antigas narrativas; a dark fantasy, que agrega elementos de terror e suspense; por fim, a fantasy contemporânea, na qual a ação se passa, ou tem um ponto de partida, no mundo atual. Em relação a esse último tipo, Tom Shippey, na introdução ao "Oxford Book of Fantasy Stories", afirma que o herói é muitas vezes motivado pelo escapismo, pelo desejo de transcender a sua existência "comum"... o que, entretanto, não é uma prerrogativa da história do tipo contemporâneo. O próprio Shippey, aliás, o admite, ao dizer que o grande apelo da fantasy ao leitor é o de " lhe dar a sensação de que existe um grande universo além das fronteiras visíveis", o qual, se a sua imaginação for criativa o bastante, ele poderá ser levado a visitar. E essa afirmação é ainda melhor compreendida se a ela juntarmos as palavras de J. R. R. Tolkien , em sua conferência acerca dos contos de fadas:

Fantasy não é a negação do real, mas um meio de atingir uma compreensão mais completa (...). A fuga se segue como uma liberação da prisão dos hábitos e das convenções do mundo real e contemporâneo, e do cultivo da habilidade de imaginar possbilidades que vão além dos nossos limites.

Vemos, assim, que a fantasy não implica em alienação, e sim na aquisição de uma perspectiva mais ampla segundo a qual o mundo pode ser visto e compreendido. Através dela, o leitor entra em contato com os arquétipos mais poderosos de sua psique, transporta-se para o reino do simbólico, exercitando sua criatividade e afirmando suas qualidades intrínsecas. Ainda que o seu dia-a-dia aparentemente não sofra quaisquer modificações, elas certamente se darão, no que concerne à sua abordagem e à interação com as pessoas e as coisas à sua volta. Pois fantasy, antes de tudo, tem a ver com mágica. E é essa mágica, contida em suas páginas, que o leitor acabará por descobrir nas entrelinhas do mundo real.

......

Obras utilizadas como referência para este artigo

MARTIN, Philip (ed.). The writers guide to fantasy literature. Waukesha : The Writer Books, 2002.

MATHEWS, Richard. Fantasy: the liberation of imagination. New York : Routledge, 2002.

SHIPPEY, Tom (org.). The Oxford book of fantasy stories. Oxford: University Press, 2003.

Cenas de um Casamento

Para quem não sabe, os casamentos por procuração não são coisa do passado.
Pelo menos não inteiramente...! Embora hoje sejam bem mais raros, eles ainda acontecem, principalmente quando um dos noivos é diplomata ou membro de uma organização internacional,não podendo comparecer à presença do juiz... ou quando esse comparecimento, por qualquer razão, se torna difícil.

O nosso caso foi bastante simples. Nós estávamos namorando há alguns anos e
planejávamos morar juntos quando eu me formasse e conseguisse trabalho.
Acontece que, faltando alguns meses para eu concluir a graduação, João
partiu para Lisboa a fim de cursar o Mestrado; e, como o casamento civil
facilitaria a concessão da minha residência (e a da passagem aérea, que meu
pai só me daria para encontrar o marido e não o namorado), decidimos fazer
correr os papéis no meio daquele ano.

O processo foi tranqüilo, com uma única ressalva: devido à grande quantidade de casamentos em Julho, o mês previsto pelo pessoal do cartório, o nosso acabou ficando para 5 de Agosto... o que fez as Sibilas de plantão torcerem o nariz, prevendo uma concentração de nuvens negras, simultaneamente, sobre Niterói e Lisboa.

Pois não é que havia mesmo algumas nuvens no dia 5? Uma chuvinha fina nos
acompanhou da barca (é, eu fui de barca, com meus pais e minha irmã) até o
cartório, no centro de Nicty. Lá, à espera do juiz, havia outros casais, uma
dupla de procuradores (isso realmente foi estranho: não só um mas ambos os
noivos estavam ausentes!) e um rapaz preocupado com a demora da futura
esposa. Todos nós tínhamos o casamento agendado para o meio-dia, mas o juiz
atrasou um pouco. Assim, passava um pouco das 13 horas quando chamaram o
primeiro casal: uma adolescente vestida de noiva, de grinalda e tudo, com
uma barriga de pelo menos 7 meses, e um rapaz baixinho e lourinho que
parecia prestes a receber a primeira comunhão. Era só vê-los para a gente se
perguntar onde estaria o pai da garota com a espingarda!

De qualquer forma, eles se casaram e saíram (se para a igreja ou para a
maternidade, isso não sei) e chegou a vez do rapaz solitário, que já tinha
ligado sem sucesso para a casa e o trabalho da noiva. Piedosamente, o juiz
os deixou para o fim e nos chamou, a mim e ao procurador, o irmão mais velho
do João. E o que ele tinha para nos dizer?

- Olhem, a procuração está malfeita, pois não menciona o nome da Ana
Lúcia... O senhor poderia casar seu irmão com qualquer mulher...

Deu uma paradinha para saborear nosso susto e continuou:

- Bom, mas como os papéis correram sem ninguém dizer nada, e como imagino
que a família não ia casar o João à revelia, vou prosseguir com o ato...

A sala ecoou com um “ahhhhh” de alívio, soltado em conjunto por toda a família, que realmente não precisava dessa... e muito menos da que veio a seguir, quando meu cunhado resolveu fazer uma piadinha.

- Meritíssimo, o que acontece se o senhor perguntar se eu aceito a Ana em
nome do meu irmão, e eu disser que não aceito?

- Bom, nesse caso você vai ter que se retratar - disse o juiz, muito sério.
- Para isso há um prazo de 24 horas. Depois, tem que assinar vários papéis, conseguir testemunhas, marcar uma outra data e...

- Não! Pelamordideus! Eu estava brincando!

- Pois fique o senhor sabendo que este não é o lugar nem a hora para brincar - sentenciou o juiz, e aproveitou para emendar um sermão de uns 15 minutos sobre a
seriedade e a responsabilidade do casamento. Por fim, o ato teve início, foi
concluído sem grandes traumas e nós fomos comemorar no Bella Blú - e nunca
ficamos sabendo se a noiva relutante apareceu ou não.

Naquele mesmo momento, o João, em Lisboa, estava abrindo uma conta bancária,
e consultou o relógio para responder sobre o seu estado civil (ele jura que
isso aconteceu de verdade). Ele, que não fora à festa de formatura e que
sempre brincava dizendo que não iria ao seu próprio casamento, nunca poderia
imaginar que a promessa iria se concretizar. E, além disso, ele ainda teve que
esperar cinco meses antes de beijar a noiva. Teriam sido apenas quatro e
meio, mas tive que adiar a viagem marcada para 26 de Dezembro porque
amanheci com rubéola no dia 23. Dia da minha formatura, por sinal... e eu
não pude ir à festa que tinha ficado dois anos ajudando a organizar. Seria
um desejo inconsciente de fazer o mesmo que o João? Ou um efeito tardio de
Agosto?

Seja como for, já atravessamos onze Agostos desde então, e tudo está
dando certo. Por isso, ou não há nada de errado com o mês ou é o amor que
nos protege. Ou ambas as coisas, é claro!

Luciana e os Conceitos Abstratos

Aconteceu anteontem, depois que o último desenho que vemos à noite havia acabado e, TV desligada, eu tentava convencer a pequenininha a se preparar para dormir. O problema é que isso se dá às 21 horas e ela ainda está bem acordada, então...

ANA: Filha, acabou o desenho! Vamos escovar os dentes?
LULU: Ah, mãe... Deixa eu ver só um livrinho...
ANA (sabendo que ela não “apaga” antes das 10). Ah, tudo bem... Mamãe vai te dar mais um tempo...
LULU: Então me dá! Cadê?
ANA: Cadê o quê?
LULU (sem qualquer ironia): O tempo que você vai me dar?
ANA (se esforçando por explicar o conceito de “tempo”): Ah, isso não é uma coisa que a gente dê assim não, filhinha... Dar tempo quer dizer esperar... A mamãe quis dizer que ela pode esperar um pouco, você pode ver seu livrinho e depois escovar os dentes, entendeu?
LULU: Entendi.
(Ela começa a ver o livrinho, eu vou até a cozinha. Volto e sento ao lado dela. Lulu põe o livro de lado e me olha, muito séria).
LULU: Mamãe.
ANA: Sim, meu amor?
LULU (estendendo a mãozinha). O tempo. Cadê?

......................................

Ah, se o Tempo pudesse ser contido nas nossas mãos, pesado e medido e empregado conforme a nossa vontade...!

Contar Histórias: um improviso

Oi, Pessoal!! Tudo bem?

Então, aqui estou eu para falar um pouco sobre o ato de contar histórias. Ou talvez seja melhor dizer: a arte de contar histórias. Pois essa é, na verdade, uma arte, talvez a primeira que surgiu, na tentativa de dar voz e forma ao que se passava no interior da alma dos homens.

Os primeiros contadores de histórias eram, possivelmente, xamãs e feiticeiros, ou talvez seus precursores: pessoas a quem se atribuía algum tipo de poder que lhes permitia o contato com o mundo invisível. Suas narrativas eram vinculadas aos mitos de criação e aos dramas do cotidiano, que recriavam por meio de palavras, a fim de que seus ensinamentos pudessem ser transmitidos e perpetuados pelas gerações futuras.

Surgiram, assim, as primeiras cosmogonias, as primeiras mitologias; sem dúvida, surgiram também o ritmo e a métrica, o poema e a canção. Isso porque todas essas artes, conforme se observa até hoje nas sociedades tradicionais, estão profundamente entrelaçadas. Dança, música e cantos estão presentes nos rituais, como os da iniciação e da caça, e os mitos e histórias não são apenas narrados, mas recitados. Mesmo nas primeiras civilizações, as histórias eram contadas por meio de rimas e de música. A Epopéia de Gilgamesh é um poema, assim como a Odisséia de Homero e o Beowulf dos saxões. Gregos, celtas, vikings e árabes, todos eles conheceram a poesia antes da prosa, e a tradição foi mantida ao longo da Idade Média pelos trovadores, prolongando-se, ainda, através da cultura popular da Europa e de suas colônias do Novo Mundo. Mais tarde, a narrativa assumiu características próprias, principalmente nas sociedades modernas; mas os contadores de histórias contemporâneos muitas vezes se utilizam de recursos comuns à música, à poesia e ao teatro para transmitir sua mensagem. E onde digo transmitir, poderia perfeitamente dizer... compartilhar.

Pois esse não é um ato intelectual, mas espiritual e afetivo. Por isso, as melhores histórias não são lidas ou ensaiadas, mas contadas espontaneamente, a partir do que carregamos em nossa bagagem de cultura e de experiência de vida. Independente de qualquer sentido, contar histórias pressupõe antes de tudo a vontade de falar do que se sabe, de doar sabedoria e conhecimento, de passar adiante aquilo que se aprendeu. Mais simplesmente ainda: contar histórias é aumentar o círculo. E, mesmo na falta de uma fogueira, ou dos fogões a lenha de nossas avós, podemos fazê-lo aqui e agora, partilhando nossas histórias, lançando fios invisíveis que nos unem numa só rede.


Escrito de improviso no catamarã e na Biblioteca Nacional (de propósito, porque bons narradores trazem as histórias no coração!) :)

Leituras que inspiraram este texto:

CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. Ed. Palas Athena.

SAWYER, Ruth. The Way of the Storyteller. Ed. Penguin USA.

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Então, este foi meu improviso, meu repente, sobre a arte de contar histórias... Espero que vocês tenham gostado!

Mamãe Gansa



Hoje eu quero falar a respeito de uma velha senhora que todos nós conhecemos, pelo menos de nome. Ou talvez seja melhor dizer que conhecemos seu apelido... Pois mesmo entre os maiores narradores e ouvintes de histórias, mesmo entre os maiores pesquisadores de folclore e literatura, ninguém ainda soube dizer quem foi na realidade aquela que conhecemos como a Mamãe Gansa.

Na verdade, é bem possível que esse nome se aplique não a uma pessoa, mas a uma figura quase arquetípica: a da velha contadora de histórias, também identificada com as avós, com as feiticeiras e com as “fofoqueiras” da aldeia. Nós a encontramos pela primeira vez em 1650, na obra La Muse Historique , de Loret, da qual constava a expressão: “Comme un conte de la Mère Oye”, ou seja, “Como um Conto da Mamãe Gansa”. A frase foi usada na coletânea de oito contos de fadas publicada em 1697 por Charles Perrault - que incluía, entre outras, “A Bela Adormecida” e “Chapeuzinho Vermelho” - e associada à imagem do frontispício, na qual uma velha senhora fiava e contava histórias.

O termo “Mamãe Gansa” passou a ser mais amplamente utilizado a partir da coleção de poemas infantis de John Newbery, que apareceu por volta de 1765 e foi amplamente reeditada e ampliada (e, segundo dizem, plagiada) na Inglaterra e nos Estados Unidos. Desde então, já se fiseram muitas investigações e reivindicações com o fim de atribuir a identidade da Mamãe Gansa a narradoras que realmente existiram, tais como a Sra. Elizabeth Goose, bisavó da esposa do editor Isaiah Thomas.

A verdade, no entanto, é que os poemas da “Mamãe Gansa” foram compilados e perpetuados a partir de fontes as mais diversas, algumas de raízes populares e anônimas, outras possivelmente autorais, mas todas, indiscutivelmente, já assimiladas à cultura e ao imaginário coletivos. Alguns dos versos têm um significado um pouco obscuro para a maior parte das pessoas - boa parte deles se refere, por exemplo, a episódios da história da Inglaterra - mas muitos foram capazes de transcender as barreiras geográficas e culturais para se fixar no que poderíamos chamar de “cancioneiro universal”. Afinal, quem não sabe que “Maria tinha um lindo carneirinho”, e que houve um dia uma velha que morava num sapato? E quem não conhece Humpty Dumpty, o ovo que se sentava em cima do muro, que Lewis Carroll fez contracenar com Alice?

A título de complemento - e sem perder de vista a conotação simbólica - vale lembrar que os gansos, na tradição xamânica, estão associados à comunicação, à habilidade de expressão - especialmente através das narrativas - e à escrita criativa. Assim, examinando essa figura que emerge da tradição popular no século XVII, é razoável supor que por trás dela exista uma tradição ainda mais antiga, que remonta aos primeiros homens, aos primeiros clãs, às primeiras famílias.

Pois desde esse tempo, saibam vocês, a Mamãe Gansa já fazia suas rimas; e os seus ecos ainda se podem ouvir, na risada da velha bruxa, nas cantigas de nossas avós, na voz da tia ou da mãe carinhosa, cujas histórias povoaram de maravilhas a nossa infância.

Bases para este texto:

- Informações históricas retiradas de diversos sites dedicados à Mamãe Gansa - basta digitar “Mother Goose”...

- O ganso na tradição xamânica: apreendido em ANDREWS, Ted. Animal-speak . Llewellyn, 1998. (Ei, me avisem se vocês estão gostando de falar sobre xamanismo...)

Sugestões de leitura :

-COOK, Scott. Mamãe Gansa . Companhia das Letrinhas, 1997. Rimas selecionadas e ilustradas por Cook. A tradução é do saudoso José Paulo Paes.

-WERNER, Marina. Da fera à loira. Companhia das Letras, 1999. Fornece uma análise da face mais sombria, grotesca e falsamente moralizadora da Mamãe Gansa.

Contos de Fadas: uma síntese


Todos conhecem a história da Branca de Neve. Mas o que terá acontecido com o Caçador depois que foi reencontrar a Rainha Má? Descubra clicando aqui!



Hoje quero falar sobre um tipo de história que me fascina desde pequena: os contos de fadas.

O termo nos remete quase invariavelmente a paisagens da Europa medieval, com florestas brumosas e castelos onde dormem princesas encantadas... não é verdade?

Pois saibam que os contos de fadas surgiram bem antes da Idade Média, e eram passados dos avós para os netos, através da tradição oral, desde os tempos mais remotos. É impossível datar a matriz primordial desses contos, mas as origens de alguns deles foram rastreadas até os primeiros séculos de nossa era. Com isso, chegou-se à conclusão de que histórias como "Branca de Neve" e "Cinderela" derivam de contos orientais, cujas versões mais antigas, provenientes da Índia e da China, foram trazidas pelos árabes para a Europa, aí se mesclando ao folclore local. Assim, os cruéis efrits e os djinns que satisfaziam desejos se transformaram nas bruxas e fadas-madrinhas que conhecemos na infância... e que até hoje nos servem de referência e inspiração.

As raízes européias desses seres mágicos podem ser encontradas em várias mitologias. Na tradição clássica, o primeiro autor a aludir às fadas foi o geógrafo Pomponius Mela (séc. I), enquanto entre os celtas sua origem seria ainda mais antiga, remontando ao século II a. C. Foi das reminiscências desse mundo mítico que, séculos depois, surgiram os romances de cavalaria, nos quais as fadas apareciam como personagens. Além da Dama do Lago, presença constante nos romances do ciclo arturiano, são famosas a Fada Morgana (o mesmo nome da criada de Ali Babá... a Fata Morgana é uma figura central dos contos árabes) e Melusina, a dama-serpente ligada à estirpe dos Lusignan.

Essas fadas, e muitas outras, se fixariam no imaginário da Idade Média e da Renascença, perpetuando-se nos contos narrados nos serões familiares, bem como nas canções e nos poemas que circulavam entre a gente do povo. Sua forma sofreu modificações relativas ao tempo e ao espaço, e vários deles adquiriram preceitos da moral vigente na época. Assim, "Os Três Desejos", uma das histórias reunidas por Perrault - os famosos "Contos da Mamãe Gansa", publicados em 1697 , encontramos um sermão sobre os perigos da cobiça desmedida, sem falar da conhecida advertência feita às mocinhas em "Chapeuzinho Vermelho".

Mais, hélas qui ne sçait que ces loups doucereux
De tous les loups sont les plus dangereux!


A racionalidade do Século das Luzes condenou os contos de fadas a um ostracismo temporário, mas eles seriam reabilitados no século XIX, através da iniciativa de pesquisadores como os irmãos Jakob e Wilhelm Grimm - cuja recolha de contos populares alemães foi publicada em 1812 - e de autores como Hans Christian Andersen, que pautaram seus próprios contos na tradição maravilhosa. Muitos outros viriam a seguir a mesma trilha, desde Collodi, Barrie e Lewis Carroll até escritores contemporâneos. Alguns destes utilizam elementos presentes nos contos de fadas na criação de seus próprios mundos - é o que fazem muitos autores do gênero conhecido como fantasy - enquanto outros propõem novas versões para as antigas histórias. Angela Carter nos brindou com uma bela coleção delas em "O Quarto do Barba Azul", e ouvi falar de alguém que decidiu contar a história da "Branca de Neve" pelo ponto de vista do caçador. Deve ser interessante... Bom, pelo menos diferente! :)

Além dos próprios autores e dos teóricos da área da Literatura, os contos de fadas vêm sendo analisados por psicólogos, como Jung e seus discípulos - que vêem nos personagens os arquétipos do inconsciente coletivo - por psicanalistas, que lhes atribuem significados ligados aos conflitos existenciais, e também por antropólogos e historiadores, que os analisam segundo o contexto em que foram produzidos e veiculados. Dessa forma, o abandono de João e Maria na floresta seria um costume dos camponeses em períodos de fome prolongada; o Ogro devorador de crianças estaria associado à figura (real) de Gilles de Rais, e assim por diante. Até as roupas da "Chapeuzinho Vermelho", cujo simbolismo é ligado ao do sangue - o da puberdade e o da virgindade - ganham outra interpretação no contexto histórico, pois o vermelho era a cor escolhida por muitas jovens para os vestidos de casamento... mas era também, em algumas regiões, a cor usada para distinguir as prostitutas.

Todas essas análises, contudo, são unânimes quando se trata de reconhecer, por trás das bruxas e das fadas, a figura universal das mulheres sábias: as curandeiras, parteiras e sacerdotisas, as anciãs temidas e veneradas, guardiãs da sabedoria da comunidade e responsáveis pela transmissão das histórias às novas gerações. Pois não importa a roupagem de que se revestiram os contos de fadas: foi a voz dessas mulheres que chegou até nossos ouvidos. E, quer estejamos ou não conscientes disso, são elas que, bem lá no fundo, vivem dentro de nós, zelando pelo pequeno e precioso tesouro que nos legaram nossos antepassados.

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Leituras associadas a este artigo:

- As referências a datas e nomes saíram de

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil. Moderna, 2000.

CARVALHO, Bárbara Vasconcelos. A Literatura infantil: visão histórica e crítica. Edart, 1982.

- Psicólogos e psicanalistas podem ser consultados lendo

BETTELHEIM, Bruno. Psicanálise dos contos de fadas. Bertrand, 1991.

VON FRANZ, Marie-Louise. A Interpretação dos contos de fadas. Paulus, 1990.

- A repercussão dos contos de fadas no Brasil é tema das obras de

CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Ediouro, 1998 (particularmente interessante por mostrar a origem dos contos, até onde se pôde chegar).

BRANDÃO, Adelino. A Presença dos irmãos Grimm na literatura infantil e no folclore brasileiro. Ibrasa, 1995.

- A visão antropológica dos contos de fadas é abordada em trabalhos de Mircea ELIADE, tais como Mito e Realidade. TOLKIEN é um dos autores que analisa o tema literariamente Não tenho as referências de suas obras à mão, assim como não me ocorre o nome de nenhum historiador. Um trabalho que mescla História, Psicanálise e Sociologia é o de WERNER, Marina: Da Fera à Loira (Companhia das Letras, 1999).

- Os contos de GRIMM, PERRAULT e ANDERSEN estão disponíveis em várias edições. Para quem for comprar uma tradução ou adaptação, sugiro escolher não apenas pelas ilustrações, mas pela linguagem utilizada. Levem em conta que o livro será lido por uma criança, mesmo que isso só venha a acontecer num futuro longínquo. :)

- O Quarto do Barba Azul, de Angela CARTER, foi publicado no Brasil pela Rocco, não me lembro do ano. Já O Caçador saiu pela Fábrica de Livros do SENAI em 2004 e vem sendo bem recebido nos meios literários...

E você? Já ouviu falar dessa obra-prima? ;)

terça-feira, julho 06, 2004

Teoria da Relatividade das Massas

Exemplos de peso que carrego com esforço

1. O peso dos quilos a mais nos quadris e na cintura.
2. O peso das pálpebras nas palestras técnicas.
3. O peso da cabeça após uma noite maldormida.
4. O peso da consciência, por saber que tantos passam fome.
5. O peso dos anos, que me deixam mais velha.

Exemplos de peso que carrego com prazer

1. O peso da mochila, de partida para uma aventura.
2. O peso de uma sacola cheia de livros novinhos.
3. O peso do corpo do amado, nas viravoltas da luta aflita.
4. O peso da criança que dorme em meu colo.
5. O peso dos anos... que me deixam mais sábia.

Tricksters


Quase todas as civilizações possuem, entre seus mitos e contos populares, um personagem que assume o papel de trapaceiro, o qual se diverte em pregar peças – em inglês, tricks, de onde o termo tricksters adotado pelos estudiosos -, semear a discórdia e, com freqüência, desafiar não apenas as leis e a moral estabelecida pela sociedade, mas também o poder dos deuses. Algumas vezes, o personagem é apenas um tipo brincalhão, que quase sempre termina em desgraça, assumindo características semelhantes às dos pícaros (vejam o artigo sobre Literatura Picaresca!); em outras, pelo contrário, ele assume o papel de um herói cultural, desafiando a ira divina a fim de conquistar algo anteriormente vedado aos homens. Dessa forma, pode-se pensar em Prometeu como numa espécie de trickster, embora o roubo do fogo, tal como ocorre na lenda grega, tenha sido um ato de heroísmo; Ulisses com seu cavalo de Tróia age com a astúcia de um trickster, enquanto Hermes, embora seja contado entre os deuses, é um tipo acabado de trapaceiro.

Não muito diferente, apesar de mais complexo, é Loki Laufeyjarson, o trickster dos povos nórdicos. Segundo a tradição encontrada nos Eddas –que se constituem na principal fonte de conhecimento sobre a mitologia escandinava – , Loki é aparentado com os gigantes do fogo, inimigos mortais dos Aesir, os deuses guerreiros liderados pelo não menos complexo (e trapaceiro) Odin; entretanto, os dois têm um pacto de sangue, e Loki é visto em várias ocasiões auxiliando os Aesir a saírem de situações difíceis... algumas das quais, é verdade, foram criadas por ele mesmo.

Enquanto Loki, assim como outros trapaceiros, possui um lado sombrio e destrutivo – a partir de um certo ponto, ele trabalha deliberadamente contra os Aesir, o que o leva a um castigo pior que o de Prometeu -, há tricksters cujas histórias são apenas engraçadas, embora muitas vezes possam conter um ensinamento ou um ponto destinado à reflexão. É assim, por exemplo, com a história africana de Exu (alguém conhece, aqui no Brasil? hehehe), que saiu com um chapéu de duas cores para provocar a discordância entre vizinhos que o viam de ângulos diferentes. Também os contos de outro trapaceiro da África, o Coelho, que foi imortalizado na América através do “Br´er Rabbit” de Joel Harris e que, mais tarde, serviria de inspiração para a criação do rematado trickster que é Bugs Bunny (o nosso conhecidíssimo Pernalonga).

Por sua vez, o obstinado Wile E. Coyote foi inspirado no mais conhecido dos tricksters norte-americanos (também existem, entre outros, o Corvo, a Aranha e o Homem-Esqueleto, cada um com seu próprio ciclo de histórias). Trata-se, naturalmente, do Coiote, apresentado em geral como um tipo atrapalhado e azarado, glutão, fanfarrão e perpetuamente interessado em sexo. O Coiote é um dos tricksters mais divertidos e mais estudados da mitologia e, assim como Loki, virá a merecer um post especial daqui a algum tempo. Não são todos que têm tantas histórias para contar! ;)

E por falar em histórias, a Literatura também tem diversos personagens que se assemelham aos tricksters, desde o astuto Ulisses ao Macunaíma de Mário de Andrade. Renard, a raposa do romance medieval, Till Ulenspiegel na Flandres, o Autólico de Shakespeare e o Peer Gynt de Ibsen são apenas alguns exemplos desses agentes da esperteza e da trapaça, os quais, embora muitas vezes ajam em proveito próprio, são essenciais para conferir sabor e emoção a qualquer história... e para criar o fator dissonante que, ao questionar a vontade dos deuses, incendeia, destrói e recria mundos em todas as mitologias.

......

Existe bastante literatura a respeito dos tricksters. A Internet disponibiliza uma excelente análise de Renato Queiroz, retirada de um trabalho sobre o Saci, além de alguns estudos acerca de tricksters e malandros específicos. Quanto a livros, a análise do pícaro em “A Jornada do Herói”, de Christopher Vogler (Ed. Ampersand) diz o essencial sobre esse tipo de personagem. A figura aparece ainda em diversas passagens da obra de Carl Gustav Jung e de Joseph Campbell, que também tratam de outros arquétipos universais, principalmente o do herói. Livros sobre Mitologia geral, ou sobre a Mitologia específica de cada povo, trarão certamente algumas histórias a respeito de tricksters.

Para quem lê Inglês, os recursos são ainda mais vastos, a começar pelos livros “Mythical Trickster Figures”, de William J. Hynes (que é bem caro, custa 34 dólares mesmo em edição paperback) e “Trickster Makes this World”, de Lewis Hyde. Este pode ser comprado por 11 dólares na Internet, mas nem todas as críticas são favoráveis. O melhor, na minha opinião, é acessar o site da Mythinglinks, no qual, além de definições e artigos vários, vocês poderão conhecer e ler histórias sobre tricksters do mundo todo.

Boas travessuras!

O Lobo Esperto

Para uma Boa Manhã de Sábado

Café com leite fumegante.
Beijo na testa.
Usar somente o necessário.

Cuidado, Papai Urso:
Cachinhos Dourados
Vai pular no seu colo.


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Pessoas Queridas,

Esse aí em cima é mais um dos meus poemas bissextos, dedicado ao “papai urso” lá de casa... O João, é claro!

“Cachinhos Dourados e os Três Ursos” é, ultimamente, uma das histórias favoritas da Lulu, junto com “Os Músicos de Bremen”. O curioso é que ela, que se dizia a “Cindy Lou Who” que aparece no “Grinch”, agora protesta furiosamente ao ser chamada de “Cachinhos Dourados”. Ela é a Luciana, e ponto final. Ontem, no entanto, ela me surpreendeu ao passar para o meu clã... quer dizer, mais ou menos. Vejam como foi:

Lulu (erguendo a cabeça): Ay-ooooh...
Ana: Que é isso, filha? Que bicho é esse?
Lulu: O lobo.
Ana: Ah! Agora você é lobo, é?
Lulu: Sou. (pensa um pouco) Mas eu sou o Lobo Luciana... tá bom?

E com isso eu me lembrei de uma história que, há muito tempo, inventei para a Marina... A história de um lobo que não era mau, mas também não era assim tão bonzinho. Então, resolvi que já dava para recontar a história para a Luciana, usando alguns elementos retirados do nosso dia-a-dia. Querem saber como ficou?

Então, Senhoras e Senhores, aqui vai, revista e recriada...


A HISTÓRIA DO LOBO ESPERTO

Era uma vez uma menina chamada Chapeuzinho Vermelho. Um dia ela foi levar uma cesta cheia de doces para a vovozinha dela, aquela que era vizinha da Cachinhos Dourados. De repente, Chapeuzinho viu aparecer um lobo - e é claro que ela levou um susto enorme.
- Aaaai! O lobo mau! – ela gritou. Mas aí o lobo avançou, com um ar todo preocupado, e disse assim:
- Oh, não, menininha! Não fique assustada, eu não sou o lobo mau... Sou o lobo bom!
- Lobo bom? – Chapeuzinho ficou desconfiada, mas continuou ouvindo. – Eu não sabia que existiam lobos bons!
- Pois existem e eu sou um deles – disse o lobo. - Sabe o que eu vim pedir a você?
- Não...
- Vim perguntar se não pode me dar uns docinhos, aí dessa sua cesta, para eu levar para os lobinhos da Casa do Lobinho Pobre. Você tem tantos aí... E os lobinhos gostam tanto de doce, coitadinhos...
Ouvindo isso, Chapeuzinho Vermelho ficou toda comovida. Por que não ajudar os lobinhos? Além disso, a cesta dela estava muito cheia, e a vovozinha era muito gulosa. Se comesse todos aqueles doces ela ia passar a noite toda com dor de barriga. Então, Chapeuzinho disse:
- Claro, seu lobo! Tome aqui esses docinhos!
E zás-trás... Ela deu ao lobo um brigadeiro, um quindim, um pudinzinho e uma fatia de bolo. O lobo ficou todo feliz e disse:
- Muito obrigado, linda menina! Minhas lembranças à Vovó!
E se despediu, tirando a cartola (que ele tinha pegado emprestada do Gatola). A Chapeuzinho pegou a cesta e foi embora, contente, porque tinha ajudado a Casa do Lobinho Pobre.
Mas... Sabe de uma coisa?
Essa casa não existe, porque os lobinhos moram todos com o papai e a mamãe e os irmãozinhos deles. Quando ficam sem família, eles logo encontram uma família adotiva, que nem aconteceu com o Patinho Feio. Sério...! Os lobos adotam até crianças como o Mogli, que dirá outros lobinhos...!
Então, o que tinha acontecido é que o lobo, esse que falou com a Chapeuzinho, era louco por doce, e deu um jeito de conseguir alguns sem fazer esforço. Mal a menina tinha sumido das suas vistas, ele sentou debaixo de uma árvore, amarrou um guardanapo no pescoço pra não sujar a roupa e comeu o brigadeiro, o quindim, o pudinzinho e o bolo. Depois, lambeu os dedos e esfregou a barriga: “Ah...! Que delícia...!”
E aí, só aí, ele percebeu que a Luciana estava escutando essa história e sabia o que tinha acontecido.
E então ele virou pra ela e disse assim:
- Viu, Luciana? Eu inventei aquilo tudo, mas a Chapeuzinho não ficou assustada e eu ainda botei um monte de docinhos na minha pança. Isso porque eu não sou um lobo mau. Talvez não seja tão bonzinho assim. Na verdade o que eu sou é... um lobo esperto!

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Tudo bem, eu admito... Isso não teve graça nenhuma.

Mas a Luciana adorou. E me pediu para repetir. E na hora de enumerar os docinhos ela me lembrou que também tinha uma fatia de bolo.

E agora ela sabe que os lobos não são maus, só tentam encher a barriga quando estão com fome. E em geral não fazem mal a ninguém, porque são muito espertos - isso quando não são bonzinhos de verdade, como a família do Mogli.
E assim talvez ela não tenha mais medo do Lobo Mau quando alguém contar a história clássica... até chegar à idade em que realmente poderá entender essa história.

E todas essas coisas deixam feliz o meu coração de mãe.

O Bardo da Aldeia: um soneto bissexto

Além do Bojador, além da dor,
Em seu desassossego e em plena glória,
Passou um poeta, audaz navegador.
E eu cá fiquei para contar a história.

Embora a confessar-se um fingidor
Gravou seus versos em toda memória.
Ninguém lembrou, porém, do prosador
Que cá ficou para contar a história.

Mas esta, que se tece como teia,
Que se recorta e enreda e desenleia,
É meu pão e meu sal, minha magia.

Por isso, ao mar prefiro a minha aldeia.
Cá vou contando histórias; e algum dia
Hei de fazer as pazes com a poesia.

Ana Lúcia Merege

Ursula K. Le Guin

Nascida em 1929, a californiana Úrsula Le Guin é uma das mais aclamadas autoras de nosso tempo. Sua carreira começou cedo – aos onze anos de idade, ela submeteu à revista Amazing Stories um conto sobre viagens no tempo, infelizmente não publicado – e sua produção inclui obras nos mais diversos gêneros, como a poesia, os ensaios, a ficção realista, os livros para jovens, as biografias e a ficção científica. Foi esta última que lhe rendeu vários prêmios Hugo e Nebula, os maiores concedidos para a literatura do gênero... embora a FC de Ursula não seja do tipo tradicional, aproximando-se mais das obras de teor psicológico (como em “A Mão Esquerda da Escuridão”, aqui publicada pelo Círculo do Livro) e filosófico, tal como acontece em “Os Despossuídos” (também publicado no Brasil), no qual sistemas como o anarquismo e o socialismo são discutidos a partir de um choque de culturas entre os habitantes de diferentes planetas.

Um dos livros mais fantásticos de Ursula – que, até onde sei, não foi traduzido para o Português – é “Always Coming Home”, no qual a autora reúne os mais diversos tipos de relato do e sobre o povo que chamou de Kesh. Os Kesh vivem na Califórnia do Norte, numa época situada alguns séculos à frente da nossa. Com uma cultura que lembra a dos índios norte-americanos, mas revelando traços da filosofia oriental, eles tecem, colhem, fazem artesanato, passam por ritos de iniciação e principalmente contam histórias, que se encadeiam e se somam numa fantástica antropologia do futuro. Uma grande parte dos relatos tem a ver com a cultura material, lembrando as recolhas, por exemplo, de Mead e Malinowski (Ursula, filha de antropólogo, se mostra à vontade para criar dentro desse estilo), mas alguns são histórias pessoais e poemas... alguns deles realmente lindos, como “A Canção dos Descobridores”.

Mas a obra mais fascinante de Ursula Le Guin é, sem dúvida, o conjunto de fantasy fiction ambientado em Earthsea, um mundo composto por incontáveis ilhas, no qual a magia se manifesta principalmente através da palavra. Conhecer o nome real dos seres e das coisas significa conhecê-los e, portanto, dominá-los – ou, antes, não se deixar dominar por eles, mas sim seguir o seu caminho de acordo com os padrões do Universo.

Escritos a partir da demanda de um editor por boa fantasy fiction para jovens e jovens adultos, os livros de Earthsea foram a princípio três: “A Wizard of Earthsea”, “The Tombs of Atuan” e “The Farthest Shore”. Todos eles tratam da jornada do herói – a jornada da autodescoberta – e o último aborda também o confronto com a morte e o renascimento do self. Dezoito anos após a publicação do terceiro livro, Ursula escreveu mais um, intitulado “Tehanu”, que trata da magia inerente à condição feminina. São esses quatro livros que estão no volume “The Earthsea Quartet”, o primeiro da minha lista de leitura para 2004, acho que alguns de vocês se lembram. Pois é, a missão já foi cumprida, e eu estou aqui louca para encomendar “Tales from Earthsea” e “The Other Wind”, os mais recentes livros da série. Ela está entre as melhores do gênero, de todos os tempos... e esta não é apenas a minha humilde opinião de leitora.

Em sua obra “Fantasy: the liberation of imagination”, Richard Mathews analisa as semelhanças e diferenças entre os livros de Earthsea e a obra de Tolkien, concluindo que, enquanto o autor de “O Senhos dos Anéis” se preocupou em criar a história e a mitologia heróica de Middle Earth, Le Guin se ateve mais aos aspectos culturais, seguindo ao mesmo tempo uma filosofia de bases taoístas: o equilíbrio (Yin/Yang) necessário à manutenção da ordem, o fim semelhante ao começo. Por sua vez, Tolkien, como outros autores de background cristão, faz uma diferença entre o terreno e o divino, o Bem e o Mal, a recompensa obtida na Terra e a que se conquista ao transcender o plano material.

Essas são visões distintas, mas cada uma delas deu origem a um mundo mágico e fascinante, que vale a pena conhecer. Os leitores de Tolkien e da fantasy fiction tradicional certamente irão gostar da prosa elegante de Le Guin, enquanto os fãs de Harry Potter adorarão visitar a Escola de Magia da Ilha de Roke. Ela é diferente, sem dúvida, de Hogwarts; mas ambas cumprem o propósito de levar os aprendizes a se conhecer e a trabalhar o que há de melhor em si mesmos. Esse é o primeiro passo para se compreender a verdadeira Magia.

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Para quem quiser saber mais, Ursula Le Guin mantém uma página oficial, que abre com um mapa artesanal (e muito bem-feito) do Arquipélago de Earthsea.

Os quatro primeiros livros da série foram traduzidos em Portugal pela Editorial Presença. Aqui, a Brasiliense traduziu pelo menos os dois primeiros (transformando Earthsea em Terramar), mas, até onde sei, ambos se encontram esgotados.

Se alguém quiser encarar a série no original, uma dica: tente a edição inglesa. “The Earthsea Quartet” é uma publicação da Penguin Books cuja aquisição sai mais em conta do que a dos quatro pocket books americanos (se bem que com a confusão do euro e do dólar eu não sei mais nada)...

“Os Despossuídos” (ou “Despojados”, em algumas, e melhores, traduções) e “A Mão Esquerda da Escuridão” não são muito difíceis de achar em sebo. Ambos são ótimos, mesmo para quem não gosta de ficção científica.


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Bom, Pessoas... Vou ficar por aqui. Espero não tê-los cansado muito. Mas pelo menos eu avisei que o post ia ser longo... não avisei?

Não? Bom... Paciência... Só um pouquinho mais, hehehe!

Aos que chegaram até aqui (e aos que pularam linhas também),

Um abraço bem grande!

Até a próxima!

Ana

Hermann Hesse e O Caçador

Outro dia meu irmão, Tuninho, disse que gostou bastante de “O Caçador”, mas que notou uma mudança de tom do meio para o fim, uma vez que, no início, o personagem passa por uma série de peripécias, como em uma obra típica de fantasy fiction, mas depois entra numa jornada que é mais uma busca de visão do que uma aventura. Tuninho discorreu um bocado sobre isso (não vou entrar em detalhes para não estragar a surpresa de quem não leu), e em dado momento comparou o personagem ao Sidarta, de Hermann Hesse. Eu nunca havia estabelecido esse paralelo, mas o achei muito interessante... principalmente porque, se tivesse que fazer uma lista de meus dez autores preferidos, seguramente incluiria Hesse, embora haja outros dentre seus livros dos quais gosto mais do que Sidarta. E como andava com saudade de fazer um artigo como os de antigamente para a Estante... bom, lá vai alguma coisa que eu descobri a respeito de


HERMANN HESSE (1877 – 1962)

Nascido na cidade de Calw, na região da Floresta Negra, Hermann Hesse era filho de um casal de ex-missionários na Índia, os quais esperavam que o filho seguisse seus passos. Hesse, contudo, foi expulso do seminário protestante, e após uma série de experiências malsucedidas acabou por deixar os estudos. Em Tübingen (onde esteve recentemente a Mariana, do blog Alemanha, aí vou eu!), ele se filiou ao círculo literário Le Petit Cénacle e adotou a determinação de se tornar um escritor. Seu primeiro trabalho literário foi publicado em 1899, e em 1904 ele se tornaria um escritor freelancer com a publicação do romance Peter Camenzind.

Em 1911, Hesse visitou a Índia, onde entrou em contato com as mitologias, religiões e filosofias locais (tudo na Índia tem que ser no plural) em que basearia o romance Sidarta, publicado em 1922. Tal como várias das obras posteriores do autor, essa mostra a jornada do herói em busca da iluminação e do autoconhecimento, refletindo, ao mesmo tempo, a jornada pessoal de Hesse, que, durante vários anos, submeteu-se à análise conduzida pelo Dr. J. B. Lang, assistente de Carl Jung.

Durante a Primeira Guerra, Hermann Hesse combateu o militarismo e o autoritarismo, sendo por isso julgado um traidor em sua pátria. Em 1919 ele publicou Demian, que refletia o interesse do autor nas teorias de individuação de Jung. Pessoalmente, considerei o personagem fascinante e o livro, maravilhoso, tanto que, assim que pude, o compartilhei com meu amor: Demian foi o primeiro livro e o primeiro presente que dei ao João.

Na mesma trilha da busca do autoconhecimento, Hesse publicou, em 1927, O Lobo da Estepe, o qual, assim como Sidarta, se tornaria um livro-ícone da geração beat e, posteriormente, dos hippies. Nesse período, ele também escreveu A Metamorfose de Piktor, uma obra de fantasia que, posteriormente, seria incluída num livro chamado Os Contos de Fadas de Hermann Hesse (o qual, me parece, não foi traduzido no Brasil). Hesse publicou também versões literárias de Histórias Medievais, estas sim publicadas aqui e recentemente relançadas pela Editora Record, além de contos, romances, como Narciso e Goldmund, e vários livros de ensaios.

Mas dentre todas as obras de Hermann Hesse, a mais incrível de todas, na minha opinião, é O Jogo das Contas de Vidro, publicado em 1943. A história se passa no futuro, na província imaginária de Castália, uma comunidade intelectual (e elitista) na qual a Música e a Matemática são valorizadas como linguagens através das quais pode-se chegar a uma espécie de perfeição (ai de mim, que sou terrível nas duas!). Nesse universo protegido, o Jogo das Contas de Vidro que dá título à obra é um sistema que integra as diversas Ciências e transmite o conhecimento através de uma espécie de secreta metalinguagem (gostaram? Hehehe).

O herói do livro, Joseph Knecht (a tradução do nome seria José Servo), é visto como um possível sucessor para o Mestre do Jogo, Thomas van der Trave (alusão a Thomas Mann), o que realmente vem a acontecer após alguns anos se dedicando ao sistema. Knecht permanece durante mais uma década como Magister Ludi, até que se dispõe a deixar o cargo, a fim de abraçar uma existência mais em conformidade com suas demandas pessoais e com a crença em ajudar ao próximo (fora do ambiente “controlado” de Castália). O fim da história em não conto... mas conto, isso sim, que é um livro sensacional, que inclui não apenas a história “presente” de Knecht mas também alguns de seus maravilhosos poemas acerca do conhecimento e a narrativa de três vidas, ou existências anteriores, sendo uma numa sociedade tradicional, onde ele é uma espécie de xamã ou fazedor de chuva. E vocês que me conhecem podem imaginar... Eu quase não me apaixonei por esse Servo da Pré-História...! ;)

Pois é, mas houve quem não gostasse... Os Nazistas não concordaram com a publicação do livro, que, por isso, teve sua primeira aparição na Suíça. Ele valeu a Hermann Hesse o Prêmio Nobel da Literatura de 1946 e é, ainda hoje, lido e cultuado por gente do mundo inteiro, embora não seja tão conhecido quanto outras obras, como Sidarta e O Lobo da Estepe.

Boa parte da obra de Hesse foi lançada no Brasil pela Record (Sidarta tem inúmeras edições) e muitos livros foram relançados na década de 90. A edição mais recente de O Jogo das Contas de Vidro que conheço é de 1995, mas tenho a impressão (posso estar lamentavelmente enganada) de que ele saiu por uma dessas coleções de bancas de jornal. Ao contrário de outros livros do autor, essa não é uma obra fácil de encontrar em sebos, mas se alguém achar... não deixe de comprar, vale realmente a pena!

Até mais!