segunda-feira, julho 05, 2004

Romance Picaresco

Mis Senõras, mis Señores,

Aqui estou eu, chegando à cidade em salvamento depois de enfrentar uma viagem que me levou couro e tesouro. Servindo a um tresloucado amo que, não tendo como manter seus próprios servos, distribui favores a estranhos, não vejo outro recurso para livrar-me dos males de que padeço a não ser – pobre de mim! – contar minha história aos que desejem ouvi-la...

Como? Itálico? Ah, não, Pessoas. O trecho aí em cima não precisa de itálico, pois não é nenhuma citação. Só estou contando pra vocês como foi a minha manhã, num engarrafamento de duas horas até chegar à Biblioteca, onde, para variar, estamos sem material de trabalho no almoxarifado. Por isso, só o que me restou foi sentar aqui e contar pra vocês como a minha vida pode se parecer com um


ROMANCE PICARESCO

Este gênero narrativo surgiu a partir da realidade social da Espanha do século XVI, onde uma grande crise se seguiu ao período da expansão marítima. Nessa sociedade, empobrecida a despeito da quantidade de metal obtida nas colônias, desprezava-se o esforço produtivo, e o parasitismo grassava entre ricos e pobres. Foi dentro desse contexto que surgiu a figura do pícaro: um herói (ou anti-herói) com características de bufão, que vive à margem da sociedade e que, nas novelas do gênero, quase sempre se apresenta como o narrador de suas próprias desventuras.

As primeiras obras que se consideram como pertencentes ao gênero picaresco são Lazarillo de Tormes (anônimo, publicado entre 1529 e 1533) e Guzmán de Alfarache, de Mateo Alemán, cuja primeira parte, editada em 1599, tem uma continuação em 1604. A partir deles multiplicam-se os romances e novelas cujos protagonistas têm as mesmas características básicas. Filhos de pessoas humildes e muitas vezes desonestas, iniciam sua narrativa na infância, quando, privados da família, vêem-se obrigados a servir um amo igualmente marginal: um cego pedinte, um cavaleiro empobrecido, uma alcoviteira. Na condição de criados, buscam o mesmo que seus amos – a fortuna e a ascensão social – mas a sorte, quando têm alguma, dura pouco, e eles se vêem obrigados a lançar mão de todo tipo de esperteza para garantir ao menos a sobrevivência.

Apesar de suas trapaças e da freqüente associação com os tipos mais sórdidos, o pícaro não é retratado como uma pessoa essencialmente má, apenas amoral, com traços de humor e quase sempre de autopiedade. Ay de mi!, diz ele, para em seguida justificar uma de suas intermináveis tramóias. Os traços negativos seriam acentuados nas obras mais tardias. Antes disso, porém, o gênero produziu algumas jóias literárias, como Rinconete e Cortadillo (uma das “Novelas Exemplares” de Cervantes, que também emprestou alguns traços picarescos a seu Sancho Pança), La Pícara Justina, de Francisco López de Ubeda, e La Vida Del Buscón, de Francisco de Quevedo.

Embora Teófilo Braga, historiador da Literatura Portuguesa, afirme que o gênero picaresco se restringiu à Espanha do período barroco, há quem veja ecos da sua influência em Portugal, notadamente no teatro de Gil Vicente e na obra Peregrinações, de Fernão Mendes Pinto, publicada postumamente em 1614. Também no Brasil temos uma obra que, embora só tenha surgido em 1852/53 – publicada primeiramente em folhetim sob o pseudônimo Um Brasileiro – é considerada como pertencente ao gênero: as Memórias de um Sargento de Milícias, único romance de Manuel Antônio de Almeida, em que Leonardo, como seus precursores de séculos atrás, se envolve com marginais e ciganos antes que o nascente Romantismo da época o leve a um final feliz.

Para os apreciadores do picaresco em sua melhor tradição, contudo, é um prazer assistir ao recente desenho da Dreamworks, O Caminho para Eldorado. Artistas da trapaça, os espanhóis Túlio e Miguel, clandestinos involuntários no navio de Cortez, se fazem passar por deuses e carregam um navio com ouro para no fim terminar lisos como antes – e, lamentavelmente, “sem um plano” – em pleno coração da selva. É claro, houve uma redenção por trás disso, eles são pessoas muito boas, lá no fundo... Mas, pensando bem, qual de nós, pícaros, não o é? ;)

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Ay de mi... Escrevi demais, outra vez... Mas mesmo assim aqui vai uma dica para quem quiser saber mais, não apenas sobre os pícaros, mas sobre todo o mundo marginal que existiu a par do Renascimento e do início da Idade Moderna:

GEREMEK, Bronislaw. Os Filhos de Caim : vagabundos e miseráveis na literatura européia (1400 – 1700). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Boa leitura a todos... e até a próxima!

Abraços,

Ana Lúcia

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