quarta-feira, julho 07, 2004

Fantasy Fiction: uma síntese

Dentre todos os gêneros literários, este talvez seja o mais difícil de definir. Associado, na maior parte das vezes, a histórias que se passam em mundos imaginários, com a participação de Elfos, magos e dragões, ele pode, no entanto, admitir as mais diversas temáticas, desenvolvidas em quaisquer cenários, inclusive o atual e urbano. Basta apenas que se esteja de acordo com a definição mais ampla, segundo a qual a literatura do tipo fantasy é toda aquela que evoca o mágico, o sobrenatural, o invisível... Enfim, toda a narrativa de ficção que não se desenvolve dentro de parâmetros perfeitamente ajustados ao mundo que conhecemos como "real".

Dentro dessa definição, podem-se considerar como pertencentes ao gênero boa parte dos clássicos da Antigüidade, desde a Gesta de Gilgamesh (cerca de 2000 a. C.) às obras de Homero e de Virgílio. De fato, se pensarmos bem, os elementos mágicos - aqueles que hoje caracterizam a literatura do tipo fantasy - estão todos presentes nesses textos: a aventura, os encantamentos, a jornada do herói. Ao longo dos séculos, esses elementos continuam a aparecer, tanto na literatura européia - as sagas nórdicas e os romances de cavalaria são bons exemplos - quanto na tradição escrita e oral de outras civilizações. No entanto, a maior parte dos autores contemporâneos, embora concorde com a influência exercida pela literatura ancestral sobre a fantasy moderna, atribui a esta um perfil próprio, no qual o elemento mágico (que pode ou não se estender até a criação de um mundo imaginário, ou de raças diferentes da humana) é deliberadamente introduzido pelo autor com o intuito de provocar no leitor o espanto e o deslumbramento.

Além de se inspirar nos antigos mitos e narrativas - e, é claro, em sua própria criatividade - os autores de fantasy também se valem de ciências como a filologia, a história, a antropologia e a arqueologia, criando histórias ambientadas em civilizações antigas ou lendárias. Robert E. Howard (autor das histórias de Conan) foi ainda mais longe, criando uma completa "Era Hiboriana", com atlantes, pictos, estígios, lemurianos e - é claro - cimérios. Outros escritores preferem deslocar a ação para mundos inventados (com ou sem conexão com o nosso), ou para o futuro, havendo também os que introduzem elementos mágicos no mundo "real". Nesses casos, a fantasy se confunde facilmente com a ficção científica e com o que se costuma chamar de "literatura fantástica". Na verdade, as fronteiras entre esses gêneros de ficção são muito tênues, e algumas obras mesclam características de dois ou mais dentre eles, podendo facilmente se enquadrar em mais de uma definição.

Outro tipo de história facilmente confundido com a fantasy são as obras destinadas ao público infantil e infanto-juvenil. Na verdade, muitas delas pertencem, realmente, ao gênero: a única diferença é terem sido escritas para crianças. Os leitores adultos de fantasy provavelmente apreciariam a leitura, ou a releitura, de autores como Barrie, Andersen, Astrid Lindgren e Michael Ende. Essa interface tem sua contrapartida, havendo uma boa possibilidade de que as crianças, tendo contato com essas obras, venham a se tornar mais tarde leitores de fantasy destinadas ao público adulto.

Um ponto importante a destacar quando se fala sobre fantasy é a grande variedade de subgêneros, isto é, de tipos de narrativa que podem se enquadrar nessa definição. Os mais conhecidos são a chamada high fantasy (literalmente, "alta fantasia"), na qual os heróis se engajam em uma causa, geralmente na luta contra o mal; a aventura, da qual faz parte o tipo de história conhecido como "sword and sorcery"(espada e magia); a fantasy humorística; a fantasy do tipo conto de fadas, sejam eles modernos ou a recriação de antigas narrativas; a dark fantasy, que agrega elementos de terror e suspense; por fim, a fantasy contemporânea, na qual a ação se passa, ou tem um ponto de partida, no mundo atual. Em relação a esse último tipo, Tom Shippey, na introdução ao "Oxford Book of Fantasy Stories", afirma que o herói é muitas vezes motivado pelo escapismo, pelo desejo de transcender a sua existência "comum"... o que, entretanto, não é uma prerrogativa da história do tipo contemporâneo. O próprio Shippey, aliás, o admite, ao dizer que o grande apelo da fantasy ao leitor é o de " lhe dar a sensação de que existe um grande universo além das fronteiras visíveis", o qual, se a sua imaginação for criativa o bastante, ele poderá ser levado a visitar. E essa afirmação é ainda melhor compreendida se a ela juntarmos as palavras de J. R. R. Tolkien , em sua conferência acerca dos contos de fadas:

Fantasy não é a negação do real, mas um meio de atingir uma compreensão mais completa (...). A fuga se segue como uma liberação da prisão dos hábitos e das convenções do mundo real e contemporâneo, e do cultivo da habilidade de imaginar possbilidades que vão além dos nossos limites.

Vemos, assim, que a fantasy não implica em alienação, e sim na aquisição de uma perspectiva mais ampla segundo a qual o mundo pode ser visto e compreendido. Através dela, o leitor entra em contato com os arquétipos mais poderosos de sua psique, transporta-se para o reino do simbólico, exercitando sua criatividade e afirmando suas qualidades intrínsecas. Ainda que o seu dia-a-dia aparentemente não sofra quaisquer modificações, elas certamente se darão, no que concerne à sua abordagem e à interação com as pessoas e as coisas à sua volta. Pois fantasy, antes de tudo, tem a ver com mágica. E é essa mágica, contida em suas páginas, que o leitor acabará por descobrir nas entrelinhas do mundo real.

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Obras utilizadas como referência para este artigo

MARTIN, Philip (ed.). The writers guide to fantasy literature. Waukesha : The Writer Books, 2002.

MATHEWS, Richard. Fantasy: the liberation of imagination. New York : Routledge, 2002.

SHIPPEY, Tom (org.). The Oxford book of fantasy stories. Oxford: University Press, 2003.

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