sexta-feira, julho 09, 2004

O Jogo do Equilíbrio : primeiras páginas

Uma das piores coisas do mundo é acordar na manhã seguinte a uma briga. Esse foi o meu primeiro pensamento, quando, antes mesmo de abrir os olhos, um movimento involuntário reavivou a dor na minha testa. Mariotte me acertara em cheio daquela vez. Infelizmente, eu não fora esperto o bastante para deixar que ela o fizesse no início, antes que quase todos os pratos da casa tivessem sido quebrados pela sua fúria. Eu devia ter sabido que não adiantaria tentar me esquivar e justificar o meu atraso, quando, numa noite que julgava especial, ela me esperava há várias horas, com um jantar que levara a tarde toda a preparar e uma criança que a aborrecera um bocado antes de dormir. Bom, pior para mim, pensei, enquanto desprendia cuidadosamente os dedinhos dele da minha barba. Eu levara um bom tempo a acalmá-lo e fazê-lo adormecer de novo, e isso antes de me dar ao trabalho de varrer todos os cacos para que ele não viesse a pisá-los com os pés descalços. Depois, já com uma boa dose de dor de cabeça, tivera que esfregar o chão e as paredes, removendo o vinho e a comida que Mariotte fizera voar pelos ares. Meus pratos favoritos, para ser exato. Ela conseguira perpetrar uma vingança completa.

Respirei fundo antes de abrir os olhos. Alain dormia profundamente ao meu lado, meio de bruços, com uma das faces enterrada no travesseiro e os cachos úmidos de suor. Sem fazer barulho, levantei-me, vesti as calças e uma túnica leve e, metendo os pés nas sandálias, fui até a sala para avaliar o trabalho da madrugada. Exceto pelas manchas no tapete, estava tudo em ordem, como se nada houvesse acontecido ali. Bem que podia ter sido mesmo um sonho, pensei, enquanto me agachava para acender o fogo. Bem que Mariotte podia ter ido apenas dormir na casa do padrasto, e aparecer agora mesmo com o pão e o leite para o nosso desjejum. E bem que ela podia fazer isso de qualquer jeito, apesar da nossa briga da noite anterior. Não tinha sido a primeira, afinal, nem seria a última. Ela pouparia um bocado de esforço a nós dois se voltasse de uma vez.

Deixei a chaleira no fogo enquanto ia rapidamente até lá fora. Quando voltei, com um jarro sobre o ombro e os cabelos molhados, a água borbulhava, e preparei um chá para aliviar a dor de cabeça. Dei mais uma olhada em Alain enquanto a bebida esfriava. O sono agora já não era tão pesado, ele resmungava e contraía as pálpebras, e provavelmente iria acordar antes que eu pudesse estar de volta das compras. Então, se não me encontrasse por perto, ia fazer um escândalo que acordaria toda a vizinhança, e depois ficaria emburrado boa parte da manhã. Isso era tudo de que eu não precisava para começar o dia, por isso fui bater à porta de Rowenna.

- Ah! Bom dia, Cyprien. Isto é, se é que alguém pode ter um bom dia, depois de uma noite como a de ontem - disse ela, examinando minha testa com o cenho franzido. - Mas que horror que está isso aqui! Por que você não fez umas compressas? Agora vai levar um quarto de Lua para desaparecer.

- Isso é o de menos - suspirei. - Talvez até me ajude a fazer logo as pazes com Mariotte. A raiva ia durar mais, se ela não tivesse conseguido me acertar nem uma vez com aqueles pratos.

- Lá isso é verdade. E ela chegou a quebrar muitos? Pelo estardalhaço, deve ter sido pelo menos uma dúzia.

- Nove, pelas minhas contas. E duas travessas, sendo uma aquela colorida que foi da minha avó. Se eu soubesse disso, teria dado um jeito de vendê-la. Estão pagando um bom dinheiro pela antiga louça do Povo Alto.

- Pois é, mas agora é tarde - disse Rowenna. - E você ainda vai ter que comprar uns pratos novos. Está saindo para fazer isso?

- Talvez, se Bendoux já tiver aberto a loja. Mas na verdade eu ia apenas comprar coisas para o desjejum. Você podia dar uma olhada no Alain enquanto isso? Ele está dormindo, mas vai armar uma cena, se acordar e não encontrar ninguém.

Rowenna atravessou a rua com os pés descalços e entrou em minha casa. Felizmente, eu tivera todo o cuidado ao varrer os cacos. Ela se sentou ao lado da janela, trançando os cabelos, e eu tomei meu chá enquanto avaliava os estragos no tapete. Valeria a pena tentar salvá-lo?

- Rowenna, o que é que pode tirar as manchas desse tapete?

- Depende - respondeu ela, distraída. - Manchas de quê?

Enumerei os pratos do jantar, mas, antes que chegasse à sobremesa, ela me fez parar e sugeriu que eu arranjasse um tapete novo. Falar do creme de leite não ia melhorar as coisas, por isso me resignei a gastar mais algumas moedas na oficina de Jarmille. Abri a bolsa para ver se poderia ser em breve. Infelizmente, algo me dizia que não.

- Bom, vou tratar das compras - disse eu, pegando o chapéu. - Quer que eu traga alguma coisa? Pão, ovos, leite?

- Para mim, não, mas você pode trazer o leite da Colette - disse Rowenna. - No estado dela, é preciso se alimentar bem, e Alfonz não vai se levantar tão cedo. Ouviu o barulho? Esta noite, ele trouxe mais dois ou três cavalos. Espero que isso não venha a acabar mal.

Eu também - falei, pensando na responsabilidade que me caberia, se Alfonz fosse preso, junto a Colette e à criança que ela esperava. A família deles era bem grande, felizmente, mas, como seu cunhado mais velho - isso admitindo que Mariotte voltaria para mim - eu certamente não poderia deixar de me envolver com o drama da jovem esposa deixada só e grávida.

Principalmente porque fui eu que ensinei o marido dela a roubar cavalos.

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