Antes que o Sol nascesse já havia muitas léguas de caminho em seus pés, e era ao som de seus passos, com a luz surgindo entre as faias, que erguiam vôo os primeiros pássaros da manhã. Era um rapaz alto, de ombros largos e braços sólidos, que, na última estação, acabara enfim de crescer tudo que lhe era devido. Por causa disso a jaqueta de couro, herdada de um homem menor, tivera que ser posta de lado, e durante o último Inverno ele se abrigara com um manto de peles, costuradas com uma agulha de osso e tendões de veado. Agora era de novo Primavera, e à agradável sensação de ter os pés secos somava-se o cheiro vivo do ar e das árvores, misturado ao aroma do pão que vinha dos fornos do castelo. Um pedaço de pão quente, hummm... Com mel... Na sua imaginação, ele antecipava a chegada, a recepção sempre festiva das mulheres, que admiravam as peças de caça que trazia e o convidavam para comer e descansar perto do fogo. Além disso, falavam com ele, uma tagarelice sem fim que nem sempre entendia, mas que era bem-vinda após um quarto de Lua ouvindo apenas os sons da floresta. Não que também não os apreciasse, mas gostava de ter com quem falar, ao menos para se certificar de que ainda sabia fazê-lo. Melhor ainda era cantar, pois ajudava a encurtar o caminho. Agora mesmo, seguindo a trilha, ele entoava algumas notas entre os lábios quase fechados, um som tão baixo que ninguém o teria notado na escuridão da floresta; mas a voz se tornava mais clara à medida em que o Sol se erguia, e assim, a vinte passos dos portões, a cantiga chegou finalmente aos ouvidos do sentinela.
Como sempre, o homem cochilava em seu posto, apoiado na lança que jamais conhecera uma batalha. Esse, aliás, era também o caso do seu dono, embora se tratasse de um veterano por quem já tinham passado muitos Invernos: um velhote de juntas duras e modos quase amigáveis, que já descria completamente da necessidade de suas funções. Tanto que mal abriu os olhos antes de deixar entrar o rapaz, embora qualquer um pudesse ver que aquelas mãos e aquele arco teriam sido bastantes para tomar o castelo. Ou será que o velho era dos que acreditavam nos boatos - era um daqueles que cuspiam para o lado, a fim de evitar o mal, enquanto juravam que a esposa do rei protegera as muralhas com um encantamento?
O caçador jamais pusera os olhos sobre a rainha. Viera para fazer o que fazia todo quarto de Lua: deixar uma parte do que conseguira, receber sua paga, voltar para a floresta. Nem as mulheres da cozinha esperavam que fosse diferente, pois agiram como sempre, empurrando-lhe comida e tagarelando sem parar enquanto ele se sentava perto do fogo, as pernas estiradas para descansar da viagem, devorando com grandes dentadas o seu desjejum. Falavam e falavam e emanavam um cheiro desconcertante, algumas delas ao menos, pensou ele, sem saber de onde vinha aquele odor que tanto o atraía. Tudo que sabia é que, a cada visita que fazia ao castelo, mais se tornava difícil partir; mas até então não conseguira entender o motivo, por isso não havia uma razão pela qual ficar. Assim, tão logo acabou de comer, ele se levantou e pegou a bolsa, preparando-se para a jornada de regresso à floresta. Estava de costas para a porta quando, de repente, uma das moças deu um pequeno grito, um alerta a partir do qual o silêncio dominou a cozinha. Inquietas, as mulheres se calaram, só restando o ruído das panelas que borbulhavam no fogo; e quando se virou, pensando em perguntar o que havia, o caçador se viu frente a frente com um homem de aspecto assustado, que já abria a boca para começar a lhe falar.
- A rainha - disse ele, e sacudiu a cabeça, sem entender o porquê da ordem que transmitia. - Você é chamado para uma audiência com ela. A sós.
- A sós...! - sussurraram as mulheres, mas o caçador não viu o medo em seus olhos, pois já tinha deixado a cozinha em companhia do mordomo. Com passos rápidos, os dois percorreram vários corredores, logo chegando a uma outra ala do castelo, onde os aposentos eram frios e quase nus. No último deles - havia um grande espelho numa das paredes, escuro como o fundo de um poço - o mordomo se esgueirou para trás de uma tapeçaria, de onde voltou com o rosto ainda mais pálido para mandar entrar o caçador.
Um fio de consciência de onde estava e de quem era o fez ajeitar as roupas antes de se apresentar perante a rainha, de olhos baixos como para qualquer estranho, mas de pé, ao menos no instante que antecedeu a ríspida ordem para se curvar. O caçador pôs um joelho no chão e esperou, até que a mesma voz o mandou erguer o rosto. À sua frente, sobre o trono, estava uma mulher de meia-idade, envolta nas peles dos arminhos que ele apanhara no início do Inverno. Não era difícil suportar seu olhar, porque nada havia nele do calor inquietante dos olhos das outras mulheres. Também não havia a benevolência com que o fitavam quando ele era mais jovem, no tempo em que mendigava os restos das cozinhas, antes que a floresta o ensinasse a ganhar seu sustento. Na rainha não havia calor ou piedade, mas também não havia ódio. Só o que havia era desprezo - e isso era tão familiar ao caçador que já deixara há muito de incomodá-lo.
- Então, você é o que traz a carne - disse a rainha, afagando a pele do arminho. - Tem uma boa faca? Uma faca afiada, que chegue até o coração? Não importa - continuou, dispensando-o, com um gesto, de desembainhar a faca de caça. - Importa que conheça bem os caminhos da floresta... Os mais profundos, para onde vão as feras...
Sorriu, com os olhos brilhando, de perversidade sem dúvida, mas o caçador não o percebeu e retribuiu o sorriso. Vendo isso, a rainha se mostrou ainda mais satisfeita: ali estava um bom servo, que a temia e a admirava e jamais a desapontaria, o homem perfeito para desempenhar aquela tarefa. Pois ela tinha uma missão para lhe dar, e esta não podia ser adiada. Era uma missão muito importante, e além disso secreta, por isso ninguém mais poderia ficar sabendo. Tendo deixado isso bem claro, a rainha se inclinou para a frente e começou a falar, sem pressa, para que o caçador não pensasse estar sendo traído por seus próprios ouvidos; mas suas palavras eram tão inacreditáveis que ele deu um salto, assim que ela revelou a missão, e gaguejou por um longo tempo até conseguir fazer uma pergunta. Ela estava brincando com ele, a sua boa senhora? Ou aquilo era uma forma de testar a sua fidelidade ao falecido rei?
- Claro que não! Quero que se livre dela, e é tudo - retrucou a rainha. - Por que outra razão eu perderia meu tempo com você?
Sem esperar resposta, ela continuou a lhe dar instruções, insistindo em que as repetisse, até se assegurar de que não tinha mais dúvidas. Então, mandou-o erguer a mão e fazer um juramento: que cumpriria a missão que lhe fora confiada, que nunca falaria sobre isso a ninguém, que levaria o segredo para o túmulo, ainda que tentassem arrancá-lo sob tortura. Sem outra saída, o rapaz jurou, e mais uma vez a rainha sorriu, dizendo que o recompensaria por seus serviços. Então, recostou-se em suas almofadas e convocou o mordomo, a quem também deu instruções, enquanto o caçador refletia sobre o que ela o encarregara de fazer. Era completamente absurdo - mas eram ordens da rainha, e, por isso, ele as repassou várias vezes até ficarem gravadas, não deixando espaço em seus pensamentos para questionar e erguendo os olhos já sombrios quando o mordomo anunciou a entrada de Sua Alteza Real. Era ela, então, que ele devia escoltar até a floresta, a fim de colher flores - ela, que jamais deveria regressar daquele passeio, e a quem ele podia... Hummm. Uma das coisas que não entendera bem fora aquela frase da rainha.
- Lembre-se: pode fazer tudo - repetiu ela, em voz baixa, enquanto a enteada se afastava a fim de buscar uma cesta para suas flores. O caçador assentiu, mais confuso que nunca, e se afastou, seguido pela princesa, que não precisara de tempo para decidir que temia mais a fúria de sua madrasta do que a companhia daquele bárbaro. Ela atravessou os portões ao seu lado, sem fugir, mas procurando manter uma pequena distância entre ambos. Parecia amedrontada, e o caçador se aproximou e pôs a mão em seu ombro, guiando-a para a trilha que se iniciava entre as árvores. Era a primeira vez, ao que se lembrava, que tocava no corpo de uma mulher, mas a sensação que poderia resultar disso estava encoberta pela piedade: ela era tão jovem e frágil, matá-la parecia tão errado quanto abater uma cria do último Outono.
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