quinta-feira, março 24, 2022

A Feiticeira do Mar (Final)

             Pessoas Queridas,

Por fim, chegamos à última parte do conto.  Espero que gostem da resolução!


A Feiticeira do Mar

(Final)

Ilano pisca os olhos cheios de lágrimas enquanto ela volta as costas, sua expressão de dor e amargura confiadas tão somente ao espelho. A superfície de prata mostra também o rosto do jovem. Tem as feições contraídas, mas o brio que lhe resta é suficiente para que deixe a câmara em silêncio. Vai em direção ao túnel, ela adivinha. Vai chegar à cova antes que seja inundada na primeira maré da lua cheia, a mesma cova e o mesmo túnel por onde entrou o pastor, há um século, há dois séculos, tanto faz, são gotas num mar de solidão. Em contrapartida, os dias são enumerados, ano após ano, lua após lua, um calendário que se reinicia a cada vez que ela desperta na sala dos tesouros. A cada vez que seu pesadelo de escamas e sangue se assegura real.

Esta noite, o ciclo irá recomeçar. E Ilano não estará aqui para ver.

Quando a dor houver passado, talvez ainda reste algo de bom em suas lembranças sobre Cunala.

Ela se deita, olhos abertos fitando as espirais das conchas no teto. Pensa em Ilano, tão parecido com o pastor, mas cheio de uma doçura que nunca existiu no outro; pensa nele e fecha os olhos, as pálpebras de repente pesadas, tremores percorrendo sua pele enquanto a consciência afunda na espessa dimensão dos sonhos.

Seus membros já não lhe pertencem, ou talvez tenham deixado de existir. O corpo que coleia para fora do leito não obedece à sua vontade, e sim à voz do vingativo deus do rio, à maldição lançada sobre a jovem que rejeitou suas carícias. Ela se arrasta pelos cômodos do palácio, e o ruído de sua aproximação põe os servos em fuga enquanto a imagem do ouro acumulado invade seus pensamentos. É parte do seu fado, essa obsessão que cresce junto com a lua e a faz querer guardar seus tesouros, envolvê-los com as curvas de seu corpo e vigiá-lo para que ninguém o leve. Pois houve alguns, ela não sabe há quanto tempo, houve homens fortes e duas ou três mulheres que tentaram fazê-lo, e todos gritaram, cheios de horror e repugnância, quando a enorme serpente se ergueu diante deles. Seus rostos passam diante dela aos estilhaços, detalhes capturados em cacos de espelho: um par de olhos muito grandes, a barba escura de um heleno, os longos cachos da moça que era levada para ser escrava. Todos esses viveram com a feiticeira, todos ficaram no palácio durante a lua cheia -- todos tentaram roubar seus tesouros e por isso foram punidos. Seus traços se fundem num único rosto aterrorizado que ela revê enquanto sua pele sangra rasgada pelas arestas do metal.

Então, em meio ao pesadelo, outro rosto surge diante de Cunala. É o do amante que ela teve por anos, o único de quem se lembra com certa clareza quando está sob o efeito da maldição. Ele devia ter ido para a superfície, ela pensa, mas logo uma desconfiança vem encher seu coração de sombras: talvez, no fim, o belo pastor seja como os demais, talvez ele também tenha vindo por seu ouro e ela precise detê-lo, livrar-se da ameaça dessas mãos gananciosas antes que se fechem como garras sobre o seu tesouro. Neste momento estão vazias, ele as estende com as palmas para cima enquanto a boca se move proferindo palavras humanas. Cunala não as entende, mas algo nessa voz consegue apaziguar sua urgência de atacá-lo. Ela desliza para o lado e estende o pescoço, querendo ver e ouvir melhor o pastor de ovelhas --

-- e de repente o homem à sua frente não é ele, e sim um outro com traços parecidos e uma estranha doçura na voz. A feiticeira já o viu, não há muito tempo, mas é difícil situá-lo entre suas lembranças. Tudo que tem é o aqui e agora, um homem na câmara do tesouro, alguém que a maldição a impele a destruir. Ainda assim, o som que sai de seus lábios a faz hesitar; e quando, finalmente, o colhe em seus anéis, não é para esmagá-lo, e sim para trazê-lo até ela numa espécie de abraço.

Sua cabeça paira sobre a do rapaz como a ponta de uma lança. Os olhos encontram os dele e percebem medo, mas também algo mais forte, que o faz desafiar o próprio destino. As mãos se erguem para tocar a pele e o sangue de Cunala, os braços ao redor de seu corpo, que aos poucos vai relaxando o aperto. O jovem poderia se libertar, mas em vez disso continua a abraçá-la, retendo-a para que não volte a se arrastar sobre as pilhas de ouro. Assim ficam os dois por muito tempo, imagens se sucedendo na mente da feiticeira até que, pouco a pouco, as tintas comecem a esmaecer e a se apagar.

Quando, enfim, Cunala reabre os olhos, sua impressão é de ter tido novamente aquele pesadelo. Está deitada em seu leito, na câmara de nácar onde se movem os servos que trouxeram o desjejum; a câmara está aquecida, mas sua pele arde, e, ao olhar para o ventre e as coxas, percebe que estão cobertos de bálsamo. Ela se volta para os servos, que nunca antes haviam ousado tirá-la de perto do tesouro, e vê sorrisos nas bocas de lábios carnudos e dentes serrilhados. Eles se inclinam numa reverência e a deixam ali, tentando compreender o porquê de não haver despertado sobre a pilha de ouro e cambaleado sozinha até o leito, mas suas dúvidas não se prolongam por mais do que um instante. Só o tempo de descobrir Ilano entre as sombras do aposento.

-- Perdoe-me. Não pude ir – ele murmura. Cunala tenta dizer que está perdoado, mas antes que consiga falar o rapaz avança e se ajoelha junto ao leito, os braços em torno dela, a boca afundada na escuridão do seu cabelo. Ele repete que não conseguiu partir, voltou em segredo pelo túnel e descobriu a verdade sobre a maldição, mas, em vez de medo ou repulsa, sentiu ainda mais amor e orgulho por ela suportar a horrível metamorfose ao longo de séculos. Cunala diz que tornará a acontecer, e Ilano responde que sabe, mas escolheu não deixá-la sozinha; na próxima lua cheia, e em quantas mais vierem, ele estará a seu lado e a abraçará antes que ela possa se infligir o mínimo corte. Ele faz essa e outras afirmações, jura que irá amá-la para sempre e faz promessas que talvez não possa cumprir, mas a feiticeira não contesta, porque neste momento palavras não têm importância. Tudo que importa é ouvir a voz que suplantou a do deus do rio, estar nos braços que a impediram de se ferir e de feri-lo, sentir a força e a pureza desse amor que venceu a morte.

E, se não for assim para sempre, ela terá a doce lembrança de agora.

-- Você parece contente – diz Ilano, da cama, algum tempo depois.

Cunala assente, fitando o espelho de prata. Seus olhos estão límpidos, verdes, cristalinos. Não haverá tempestade, hoje, no Grande Mar.


***

E aí, o que acharam? Deixem nos comentários! Também adoraria saber se curtem histórias nesse estilo, ou escritas num estilo um pouco mais solto e ambientadas na Antiguidade. 

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Até lá!

7 comentários:

Maikeli disse...

Que magnífico o desfecho que deste ao conto! Simplesmente perfeito! Parabéns por sua escrita esmerada, clara, envolvente, e por este conto fantástico! Amei❤❤❤

Helena Klein disse...

Parabéns! Um excelente final.

Bella disse...

Eu amei cada detalhe. Gosto muito de histórias assim, consegui soltar a minha imaginação em todos os momentos. Sua escrita é envolvente e agradável e a história, mesmo tão curtinha, me cativou por completo. Achei muito bacana o fato de que o seu conto possui muitos elementos presentes nos contos de fantasia, mas em momento algum cai no clichê. Parabéns, de verdade. Mais uma nova tá aqui hehehe <3

Bella disse...

Fã***

Maria Christina disse...

Maravilhosas as imagens que constróis, Ana, de uma sensibilidade... fiquei totalmente envolvida pelos sentimentos da personagem. Um belo final, parabéns!

João Tomayno disse...

Que final lindo! Muito poético e inesperado. Parabéns!

mushi disse...

Wow!
Tem duas deusas nessa história, uma delas a escreve ♥

O tema é conhecido, e assim mesmo fiquei angustiada pelo final, que prometia uma boa ou má surpresa! Amei!!