quinta-feira, março 10, 2022

A Feiticeira do Mar (Primeira Parte)

 Pessoas Queridas,

Hoje começa o projeto "Um Mês, um Conto", idealizado pelos amigos Paloma Bernardino e Luca Creido. Vários autores irão postar contos de fantasia divididos em três partes, e as postagens serão divulgadas pelo instagram do projeto.


Minha participação se dá com um conto (até agora) inédito, passado na Antiguidade. Espero que gostem!


A Feiticeira do Mar 

(Parte 1)

 

O sonho é o mesmo, noite após noite. Cunala está em seu palácio, no salão onde se erguem montes de joias sobre as quais ela rasteja. O metal lhe fere a pele, e a feiticeira se debate, sem saber se este é apenas mais um pesadelo ou uma daquelas noites das quais desperta em agonia, nua sobre uma pilha de ouro sangrento.

Para seu alívio, o dia a encontra na câmara de nácar que lembra o interior de uma concha. Ao lado está o desjejum trazido por seus súditos, fruto de diferentes sacrifícios. O deles próprios, seres do mar, que ofertam a carne de seus semelhantes, e o dos homens e mulheres da superfície, que temem sua ira e querem apaziguá-la. Eles lhe trazem animais da terra, além de grãos, azeite e vinho deixados numa gruta. Na lua cheia, a maré carrega as oferendas, e por isso o lugar é chamado de Cova de Cunala: seu principal local de devoção, ligado à sua morada por um túnel escavado na rocha. Pois sob o Grande Mar há inúmeras portas, embora poucos, até hoje, as tenham atravessado.

Entre as ondas e os seres do mar, a feiticeira vive em silêncio.

Ela contempla sua imagem num espelho de prata. Tem traços delicados, a pele ainda mais translúcida em contraste com os cabelos negros. Seus olhos refletem a cor do mar, e hoje eles lhe dizem que uma tempestade se aproxima. Isso traz um sorriso a seus lábios: Cunala ama as tempestades. Não as provoca, exceto quando algum navegante é tolo o suficiente para incorrer de verdade em sua ira, mas raramente as detém, por mais que a gente da superfície lhe dedique oferendas. O que ela faz é deixar que os ventos soprem, que as ondas quebrem sobre os barcos e os atirem contra os rochedos, que seus destroços sejam arrastados para as profundezas. Quanto aos homens... Qual deles não sabia dos riscos, quando entregou seu destino aos caprichos do mar?

As águas se agitam, percorridas por uma vibração que ela sente ao deixar o palácio. A tempestade começou, e a feiticeira quer estar lá, dançar nos turbilhões, ouvir o bramido das ondas e o uivo do vento. Não quer perder um só momento do espetáculo, por isso busca uma corrente marinha e se impulsiona até a superfície, onde um rochedo acaba de cobrar seu tributo a um barco mercante. Os destroços passam diante dos olhos de Cunala: primeiro as ânforas em que levavam a carga, depois madeiras e remos, restos de corda e velas feitas em trapos. Por fim, os homens. Estes costumam ser pesados, mas demoram a chegar ao fundo porque resistem, lutam para voltar à superfície e ao que resta do barco. Alguns conseguem, talvez acabem sobrevivendo à tempestade; outros tornam a afundar e se debatem até perder as forças. Então sobrevém uma estranha calma, e é quando eles se entregam ao mar e se deixam conduzir numa última viagem.

Os homens colhidos pelas ondas neste naufrágio ainda não aceitaram seu destino. Cunala os vê em meio a redemoinhos de espuma, clamando aos deuses por misericórdia enquanto suas bocas não se enchem de água. Nesse momento nada mais importa, o barco, os bens, todas as coisas levadas pelo mar. Eles nem percebem quando a feiticeira sobe numa rocha, embora – quem sabe? – talvez, num último momento, a visão da mulher de vestes esvoaçantes fique para sempre gravada em suas pupilas.

Cunala se põe de pé e ergue a cabeça. O vento uiva em seus ouvidos; as ondas batem contra as rochas, molhando seus pés e salpicando-lhe o rosto com água salgada. A feiticeira ri, ergue os braços e grita para a tempestade, trazendo uma chuva de raios que se abatem sobre o mar. Eles atingem o mastro, naquele destroço de barco que teima em se manter à superfície, e os homens que ainda estavam lá são precipitados para o meio das ondas. É quando a voz de um deles rasga o céu.

-- Ó Mãe! – é o que ele grita, e poderia ter usado qualquer das línguas faladas no entorno do Grande Mar: não é à sua própria mãe que se dirige, e sim à Mãe Primordial que vive em todas as mulheres. Muitos homens a invocam, mas raramente o fazem com tanta força, com tanto fervor. É isso que atrai a atenção de Cunala para esse náufrago.

Num impulso, ela mergulha e nada em direção ao barco. Ainda não viu o rosto do homem, mas sabe que deve salvá-lo. Ele tenta voltar à superfície, e em seus esforços gasta o ar que tem nos pulmões, por isso está quase inconsciente quando Cunala o alcança. Ainda consegue vê-la, arregalar os olhos cheios de espanto, mas em seguida eles rolam nas órbitas, e isso a faz saber que cada instante passou a ser precioso.

Ela se concentra, convocando os súditos mais próximos enquanto sopra no rosto do náufrago. Uma bolha de ar se cria ao redor da cabeça do homem, permitindo-lhe respirar até que possa ser levado para a superfície e deixado num ponto em que as ondas não tornem a arrastá-lo. Era o que Cunala pensava ao socorrê-lo: pouparia sua vida, pelo amor da Mãe que vive no mar, mas o deixaria entregue ao destino, para que outros homens ou deuses se apiedassem dele. No entanto, o corpo que ela segura nos braços é jovem e forte, e o rosto envolto pela bolha lembra o de alguém que não pode esquecer, de forma que, no fim, a feiticeira não consegue ignorar o apelo. Os súditos que chamou não questionam a ordem, e o jovem é transportado, sobre escamas e dorsos brilhantes, até as profundezas do mar.

Na antecâmara do palácio, outros servos estão a postos para despir o náufrago e enxugá-lo com panos de lã. Depositam-no numa cama em outro aposento e partem em silêncio, enquanto a feiticeira murmura os encantos que irão induzi-lo a um sono profundo. Assim ela poderá ver melhor, ou ao menos contemplá-lo por algum tempo antes que acorde e fale com ela, sabe-se lá em que língua, sabe-se lá se com medo, ou raiva, ou ímpeto de fuga. Também que indague sobre o barco ou sobre os companheiros, pois as respostas que Cunala tem para lhe dar não são alegres.

Ela se pergunta se ele é responsável por eles, o que tornará as coisas ainda mais difíceis. As pistas são contraditórias: ele parece jovem demais para ser o capitão, mas suas roupas não eram as de um simples marinheiro. Suas mãos são fortes, mas não grosseiras. O rosto é bonito, com traços bem desenhados e queixo forte, o cabelo castanho-escuro é cheio de cachos. Cunala se pergunta de onde vem – Hispânia, Cartago, Oriente --, e então decide que não importa. De qualquer forma ele lhe agrada, e ela fará com que a deseje e permaneça ao seu lado. Desta vez, porém, não será como foi com a maioria dos outros – e pensando nisso ela consulta o calendário de conchas que mantém sobre uma pedra, perto de onde repousa o jovem resgatado. É o seu jeito de contar os dias, marcados pela alta e baixa das marés: para cada um, uma concha alinhada sobre a pedra lisa, e quando somam vinte ela sabe que em breve será lua cheia.

-- Sete dias – diz, em voz alta. É o tempo que terá ao lado desse belo jovem, e não é muito, portanto ela não deve desperdiçar um só momento antes de despertá-lo. Para isso, usa os lábios duas vezes: primeiro, murmurando o encanto que irá tirá-lo desse estado suspenso, e em seguida, quando ele já franze a testa e flexiona os músculos, beijando-o no canto da boca. Ele abre os olhos, que logo se arregalam, cheios de surpresa, diante da mulher e da câmara com paredes cobertas de conchas nacaradas.

-- Eu estou... – pergunta, mas em seguida junta as mãos diante do peito. – Não acredito, não pode ser... Você é Cunala!

O nome sai de sua boca com uma forte carga de medo, mas também veneração. Isso a faz saber que ele é hispânico, descendente dos povos antigos da península, e não de helenos ou fenícios, que dificilmente saberiam quem é a feiticeira do mar. Ela o acalma, assegura que nada lhe fará de mal, e depois de algum tempo o temor recua o suficiente para que o jovem recobre a fala.

(Continua... Voltem dia 17/3 para ler a segunda parte!)

***

E aí, o que acharam? Deixem nos comentários! E não se esqueçam de visitar o perfil Um Mês, um Conto no Instagram!

Até a próxima!

16 comentários:

Heidi Gisele Borges disse...

Muito interessante! Agora estou curiosa para ler as outras partes.
Parabéns pelo conto, me levou através das águas.

Maikeli disse...

Adorei! Instigante, deixou aquele gosto de quero mais...

Tessa A. Olivier disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Tessa Olivier disse...

Tem um plot interessante e uma narrativa instigante de ler! Parabéns!

Carlos Rocha disse...

Gostei, Ana. Querendo saber da segunda parte!

Humberto Lima disse...

Uau! Como sempre suas palavras encantam! Quase senti o ar carregado de salinidade do mediterrâneo! Uma incrível introdução!

Kim arcanjo disse...

Ele é muito bem escrito, um romance em fantasia, com já disseram, com gosto de quero mais!!! Gostei muito!!! Boa descrição, boas falas e um enredo bem amarrado até o momento!! Amei!!!

Juki disse...

Olá!
Acredito que li poucas histórias com temática de fundo do mar e a sua me surpreendeu positivamente. A forma que você descreveu as cenas e as emoções foi fantástica, mal posso esperar para ler a continuação do seu conto!

Luciana disse...

Adorei, bem interessante!
Essa história promete kkkkk.
Parabéns pelo belo texto!
Luna Halder

Paloma Bernardino Braga disse...

Amei a primeira parte do seu conto, Ana! Consegui ouvir o barulho e o movimento das águas. Estou bem curiosa para a segunda parte!

Mayra Moreira disse...

Texto muito bom de ler com descrições muito bem elaboradas. Parabéns pela primeira parte, sem dúvidas continuarei a leitura na próxima semana.

João Tomayno disse...

Amei a sua escrita, me lembrou a do P. Rothfuss. A temática do mar também difere bastante da maioria, fiquei bem interessado. Até me inspirou para futuros textos. Parabéns!

Ana disse...

Pessoal, muito obrigada pela leitura e pelas considerações, fico feliz que tenham gostado! João Tomayno, nesse conto a minha escrita está um pouco mais elaborada do que de costume, mas meu estilo vai meio por aí - já me compararam a Rothfuss antes, e fico muito honrada. Espero não decepcioná-los com a continuação. Grande abraço!

Bella disse...

Muito bacana a sua primeira parte e a forma com que você já conseguiu nos envolver tanto nesse universo e nos personagens. Achei o encontro de Cunala com esse jovem extremamente misterioso e sedutor. Confesso que uma das coisas que mais me prendem nas histórias são os relacionamentos entre personagens, seja qual for a natureza deles. Aguardo ansiosa pelas próximas partes!

Helena Klein disse...

Bah! Que início... só pela segunda parte, que voltarei com gosto para ler. Adorei a atmosfera da história.

Victor disse...

Muito bom!
Tendo a preferir mais narrativas no tempo pretérito,mas o efeito aí foi interessante. Gostei também das menções aos povos antigos. Vamos ver o que será do náufrago. Um abraço