Pessoas Queridas,
Aqui vai a segunda parte de "A Feiticeira do Mar". Espero que gostem do desenrolar da história, do romance e do mistério!
A Feiticeira do Mar
(Parte 2)
Ele começa em tom
formal, agradecendo pela ajuda, depois se solta um pouco e diz que sua avó
sempre falou sobre Cunala, sobre o palácio no mar e a cova na superfície. Fica
junto a uma aldeia chamada Pedra do Abutre, não longe da grande cidade onde ele
vive, e onde também há quem faça oferendas com vistas a ganhar as boas graças
da feiticeira. Ela pergunta qual a cidade, e ele esclarece tratar-se de Gadir,
fundada pelos fenícios sobre um arquipélago e agora sob os auspícios de seus
deuses exigentes e caprichosos. Baal, Astarte...
-- E Melkart – diz
Cunala, sem disfarçar o travo de rancor. É esse deus dos fenícios que vem angariando
cada vez mais devotos, e com isso se fortalece, amplia seu poder sobre as águas
e os ventos e as marés. Isso, porém, ela guarda para si, preferindo ouvir mais
a respeito do náufrago, que diz se chamar Ilano e pertencer a uma família muito
antiga de Gadir. Possuem uma salga de peixe, e ele tentava ampliar os negócios
vendendo seu produto na Sicília. Muita esperança e boa parte do dinheiro da
família viajavam naquele barco que nunca chegará a seu destino.
Cunala não tem como
ajudá-lo a enfrentar essa perda. A tempestade não foi trazida por ela; o mar
tem seus caprichos. Também não pode resgatar os tripulantes, pois seu poder a
faz saber que estão todos mortos. Ela diz isso a Ilano, e o rapaz chora
lágrimas amargas que ela recolhe no seio. Do abraço à primeira carícia, ao
primeiro beijo com gosto de sal e mel – não é muito, na verdade, o tempo que
transcorre.
Ilano tem pouca
experiência, mas o que a maioria dos jovens compensa apenas com ardor ele
oferece em carinho e cuidado. Suas mãos são ternas, a voz é doce; o ato em si é
desajeitado, mas nunca brutal. Quando terminam, ele continua a fitar Cunala com
os olhos muito abertos, cheios de um brilho diferente do que havia até então.
-- Quero ficar com você
– ele murmura. A feiticeira hesita – já viu esse brilho noutros olhos, e lembra
o que aconteceu --, mas no fim decide seguir com seus planos. Não será isso que
irá perder Ilano para sempre, e ela merece esse presente, sete dias e sete
noites em que terá um amante, quem sabe um amigo, alguém que a ajude a não
esquecer as palavras humanas. É isso, e nada mais, que ela promete ao náufrago.
Ilano não entende o
porquê de um prazo tão curto, mas aceita e jura devotar a Cunala cada instante
que passar no palácio. Nessa noite, os dois se dedicam ao conhecimento do
outro, bocas, mãos e cada desvão do corpo do outro, um aprendizado que dispensa
palavras, mas que, ao menos para Cunala, é o que se mostra mais urgente. Por
sua vez, Ilano tem perguntas, porém as guarda para fazer ao longo dos dias
seguintes: os sete dias que passarão juntos, boa parte deles na cama, mas às
vezes diante das janelas translúcidas que lhes permitem ver o mar sem deixar o
palácio.
A paisagem de rochas e
algas é sempre a mesma, mas Ilano se encanta com os cardumes prateados, com os
polvos lentos e solenes, com o ruído surdo das correntes e os súbitos clarões
do mar noturno. Em Gadir, ele sempre esteve cercado pela água, mas nunca foi
além da superfície. Jamais teria sonhado ver essas maravilhas, como jamais
teria sonhado estar com alguém como Cunala, e tanto o mar quanto a mulher o têm
cada vez mais preso a seus encantos. Ela percebe o que se passa com ele, e às
vezes pensa em adverti-lo, mas sempre acaba por deixar a ideia de lado. Não há
por que antecipar o sofrimento que virá no fim, provavelmente intenso para ele
– um homem doce, e ainda tão jovem --, porém mais duradouro para ela, porque as
lembranças dele se misturarão com as de outros amantes, a todas as ausências
que acrescentam peso à sua solidão.
Sem querer falar do
assunto, Cunala se desvia das perguntas que, como a maioria dos homens, Ilano
faz a respeito de seus antecessores. Em vez disso, conta sua própria história:
a história de uma jovem comum, de uma beleza sem par, diziam, porém mais uma
moça vivendo numa aldeia à sombra da Pedra do Abutre, naquele tempo em que os
deuses fenícios ainda não haviam destronado os locais. Lá vivia um antigo
senhor do rio, que cobiçou Cunala e tentou arrastá-la para sua morada sob as
águas. Para livrar-se dele, ela se atirou ao mar, onde a Grande Mãe lhe deu
refúgio e onde, com o tempo, cresceram seus poderes de feiticeira. Há muito ela
suplantou o deus do rio, que desapareceu pelo esquecimento, como tantos
senhores das águas, dos bosques e das cavernas. Suplantou e sobreviveu a ele,
embora carregasse uma maldição que a impediu de voltar ao mundo dos homens e
causou a morte de muitos dos seus amantes. O último foi o pastor de ovelhas,
que ela pensou poder manter para sempre a seu lado... e cujo rosto lhe vem à
memória sempre que ela vê o perfil bem desenhado de Ilano.
As lembranças são
dolorosas, mesmo para alguém tão provado pelo tempo como a feiticeira. Ela não
fala do pastor nem conta os detalhes da maldição, embora isso lhe passe pela
cabeça sempre que as mãos do amante encontram suas cicatrizes. São miríades de
linhas brancas que se entrecruzam em seu ventre, em seus seios, em suas coxas,
e sobre elas algumas rosadas mostrando os ferimentos mais recentes. Outras
virão, muito em breve: ela nem precisa olhar para as conchas enfileiradas ao
lado da cama, às quais jamais se esquece de fazer o acréscimo diário. Cunala
sabe, porque seu ânimo é cada vez mais sombrio; ela se enfureceu com os servos,
por entrarem sem avisar em seus aposentos, e com os homens na superfície pela
escassez de oferendas. Zangou-se até com Ilano e suas perguntas. E quando,
nessa mesma noite, volta a sonhar com a câmara do tesouro, ela compreende que
já não pode adiar o assunto doloroso.
-- A lua cheia se aproxima – diz Cunala ao jovem hispânico. – Você
precisa deixar o palácio. Leve moedas, joias, o que puder ajudá-lo em seu
regresso a Gadir. Aqui... em breve... deixará de ser um lugar seguro.
Cada palavra é um espinho ferindo sua boca. Ela não quer que Ilano se
vá, não porque o ame – sua alma é velha demais, experiente demais, ela conhece
demasiado o mundo e a si mesma para receber a dádiva do amor --, mas porque
gosta de sua companhia e de ter companhia. Mais uma vez, precisa resistir ao
desejo de prolongar sua estada ali, como fez com o pastor, pois sabe que no fim
virão a amargura e o arrependimento. De qualquer modo não é justo. Salvar a
vida de alguém para depois decidir onde e como ele irá vivê-la – é o mesmo que
salvá-la pela metade.
Ilano não recebe bem as palavras da feiticeira. Ele a ama, diz, sem
saber quantos homens fizeram o mesmo ao longo dos séculos que dura a maldição.
Ele fala sem saber que em sua voz ecoa a dos amantes mortos. Cunala insiste que
ele vá, ameaça-o com seus encantos e até com sua ira, mas tudo que consegue é
que se ajoelhe e implore que o deixe ficar, ainda que como um simples escravo.
Então ela decide contar sobre o pastor de ovelhas, e o faz num tom sussurrado
que a cada momento se torna mais áspero.
O mar escurece através das janelas enquanto ela murmura: o homem antes
de Ilano foi o que mais falou a seu coração. A feiticeira deixou que ficasse,
porque pensava ter achado um jeito de mantê-lo ali para sempre. A cada quarto
de lua, mandava-o ficar na superfície, oculto nas proximidades da Cova de
Cunala, alimentando-se das oferendas que levava consigo. Depois, voltava para
ela, que o fazia beber um elixir a fim de preservá-lo da velhice. E assim
viveram juntos muitos e muitos anos.
-- Então, ele começou a ter saudades de casa – sussurra a feiticeira. --
Lembrava-se dos pais, chorava por tê-los abandonado, e seu coração se afastou
de mim. No entanto, muito tempo havia se passado; ele se converteria num ancião
assim que se afastasse de minha magia. Eu lhe disse isso, mas mesmo assim ele
partiu, e eu não pude impedi-lo. Não sei o que aconteceu, mas... se ele voltou à sua aldeia... deve ter
sido apenas para morrer nos braços de homens e mulheres que poderiam ter sido
seus netos.
Ilano engole em seco, mas
mesmo assim insiste em ficar. Não precisam ser anos; que seja uma lua, um
quarto de lua, o tempo que Cunala decidir. Ela pensa na solidão que a aguarda
quando ele se for, dias e noites sem outro som que não os ruídos do mar, sua
cama vazia, mas disso mesmo consegue fazer sua fortaleza: ela é capaz de passar
por tudo outra vez. O que não quer é reviver sua história com o pastor, nem que
aconteça a Ilano o mesmo que a ele, ou ainda que se arrisque a acabar como
alguns dos outros – e antes que se traia, revelando aquilo que, por monstruoso demais,
decidiu guardar só para si, Cunala endurece suas palavras e seu coração.
-- Nem mais um dia. Eu me
cansei de você – diz ela. Usa seu poder para fazê-lo acreditar que é verdade.
Escorraçado, o jovem mal consegue erguer os olhos cheios de dor, e assim
permanece enquanto a feiticeira põe em seus ombros a pele de uma ovelha deixada
na gruta pelos devotos. Não torna a oferecer dinheiro e joias, porque estão na
sala dos tesouros e ela a evita o mais que pode na proximidade da lua cheia,
mas lhe dá um odre de vinho e alguma comida para levar na viagem. Dentre os
súditos fiéis, convoca os que podem sair à superfície, seres com pinças e duras
carapaças, e ordena que escoltem Ilano pelo túnel de terra que dá acesso à cova
em Pedra do Abutre.
-- Perto dali passa um rio
que se encontra com o mar, e deve haver barcos. Entre num deles e siga sua vida
– diz Cunala. – Não olhe para trás.
E aí, o que acharam? Deixem nos comentários! E não se esqueçam de visitar o perfil Um Mês, um Conto no Instagram!
Até a próxima!
12 comentários:
Ritmo excelente! Parabéns.
O final ficou muito bom, na medida para a semana que vem.
A 3° Parte promete ser muito boa.
Por todos os deuses! Vou ter que esperar até dia 24 pra poder saber como termina essa história? Oh, céus... Oh, vida... Oh azar...
Pobre rapaz! O que será que vai acontecer, não ficará ao lado dela mesmo?
Adorei ela se sacrificou em nome do amor mas curiosa para saber o que vai acontecer com o rapaz. Comentário de Aline Lazzari
Esplendida história de um amor negado, a ela mesma em primis. Otimo desenvolvimento e bem estruturado. Gostei demais. Parabéns.
É realmente uma comovente história de amor!
Qm não gosta de uma história de amor proibido?
A grande questão é que, num mundo desses, onde deuses e feiticeiras estão tão próximos, tudo pode ocorrer.
Lembrei de um jovem Lucas lendo Odisseia, há alguns anos atrás. Apaixonava pela história, mesmo sem ter a mínima noção de onde ela iria dar, qual seria a próxima besta ou deusa a encontrar.0
Interessante que, em Homero, seguimos a viagem de Odisseu; na sua, seguimos quem vê a viagem acontecer.
Como sempre, ótima!
Pobres amantes, nem um dos dois será poupado depois de terem começado essa teia bem escrita e "afogante"! Qual será o destino de Ilano?
Tão poético e bem escrito! Poderia ler um livro inteiro sobre esses personagens!
Parabéns!!!
Estou ansiosa pela continuação!
(Luna Halder)
Na primeira parte, eu já havia ficado encantada com a sua narrativa. Nessa parte, todas as minhas expectativas foram alcançadas e devo ressaltar o quanto me encanta o seu jeito de escrever. A sua escrita é uma delícia de ler, quero muito acompanhar seus outros trabalhos!
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