terça-feira, julho 04, 2017

De Amor e Eternidade : parte 2

-- E nessas viagens todas, Avô Baltha, quem você mais gostou de conhecer? – perguntou Nikka. – Os deuses do Egito?
-- Aposto que foram as ninfas – disse Jeza, com expressão marota.
-- Não. Os deuses eram muito carrancudos, e as ninfas não sabiam conversar, só davam risadinhas.
-- Então quem? O príncipe que dançava com os touros?
-- Teseu? Aquele baixinho invocado? Não mesmo – disse Balthazar.
-- E o homem do cavalo de pau? Esse era esperto.
-- Sim, era. Podíamos ter sido amigos – suspirou o fenício --, mas Lísias e eu estávamos do lado dos troianos.
-- Já sei! – exclamou Jeza, batendo palmas. – Você gostou do rei de Tiro, aquele que mandou a madeira para o amigo dele construir o templo.
-- Foi uma honra estar na presença do Rei Hiram, que eu admirava desde criança – confirmou Balthazar. – Mas não chegamos a ser próximos, e no decorrer das viagens encontrei pessoas a quem me afeiçoei bem mais. Em geral, pessoas comuns, das quais ninguém ouviu falar. Mestre Gaspar e seu discípulo Belchior, os atores no festival de teatro, Tita, a garota que me livrou de morrer na arena. Não vou me esquecer deles, apesar de ter conhecido deuses e reis.
-- Você passou todo o tempo das viagens querendo voltar para Cartago, não foi? – perguntou Jeza, muito séria. – Lísias sempre errava de tempo e de lugar quando dizia o encanto, mas era para cá que vocês estavam tentando vir.
-- Mais ou menos. – Ele preferiu não explicar sobre Alexandre da Macedônia e o desejo de vingança que o fizera procurá-lo: isso levaria ao massacre de Tiro e da sua família de sangue, histórias dolorosas demais para os ouvidos de duas garotinhas. – Eu queria voltar ao barco e reencontrar seu pai, ajudá-lo a acabar de derrotar os piratas. Não queria ser lembrado como o capitão que deixou seus homens para trás. Nessas tentativas nós até conseguimos vir a Cartago, uma vez no passado, outra no futuro. Nenhuma dessas viagens foi muito boa.
-- Ah, Avô Baltha! Essa do futuro é que a gente menos gosta. – Nikka franziu a testa. – Você falou que Cartago tinha acabado. Como é que pode?
-- Não é que tivesse acabado. Foi conquistada. – Evitou cuidadosamente as palavras cruéis: destruição, massacre, sacrifício. – Houve uma série de guerras e, no final, Cartago passou a ser dos romanos. Tudo que era cartaginês...
-- Ah, olhe só! – exclamou Jeza, sacudindo o dedinho como se o tivesse pegado numa mentira. – Os romanos? Aníbal disse que isso é impossível. Roma nunca poderia vencer Cartago. É por isso que ele diz que as histórias são inventadas.
-- Pois eu conheci outro Aníbal que provaria o contrário. Mas tudo bem. Essa não é mesmo uma boa história. – Ele se lembrou daqueles dias sombrios, a pavorosa travessia dos Alpes, Lísias chorando junto ao cadáver de um elefante. – O que eu preciso que vocês acreditem é que eu sei, de fato, algumas coisas que vão acontecer no futuro – guerras, por exemplo – e tento usar isso para ajudar seu pai, porque ele agora é como se fosse meu filho. Eu não sei tudo – desculpou-se --, mas só quero o que for melhor para vocês.
-- A gente sabe disso, Avô Baltha. – Nikka, que estava sentada no chão, pôs a mão em seu joelho.
-- É sim. Que bom que você conseguiu voltar! – exclamou Jeza, dando-lhe um abraço.
O capitão fechou os olhos e sorriu, emocionado. Sim, valera a pena, apesar de tudo que deixara para trás. Só esperava viver o bastante para cumprir a missão que impusera a si mesmo, que o impedira de seguir Lísias até onde ele estava agora, navegando entre as estrelas: com seu conhecimento do futuro, não partiria em paz se não assegurasse que os descendentes de Sikkar iriam sobreviver à queda de Cartago. Vinha trabalhando nisso desde que voltara, abrindo uma filial da casa comercial da família e criando um lar acolhedor para os netos em Alexandria. Não que a cidade egípcia fosse atravessar ilesa os próximos séculos, também passaria por guerras e conflitos, mas ficaria de pé, ao menos até o ponto que ele e Lísias tinham sido capazes de ver. Fora o porto mais seguro que conseguira encontrar para as próximas gerações.
Lísias teria apoiado sua decisão. Era o que dava a entender quando se encontravam em sonhos, nos quais ele nunca surgia como o menino dos primeiros tempos e sim como nas viagens da clepsidra, um jovem marinheiro com uma penugem loura no queixo e um colar do qual pendia uma concha de múrex. Faltava apenas o golfinho de vidro colorido que usara nos últimos anos. Os sonhos também transcorriam sempre do mesmo jeito, com os dois deitados no convés de um barco, olhando estrelas, como tinham feito tantas vezes, em diferentes épocas e lugares. No entanto, ao contrário do que seria de se esperar, Lísias não dizia nada, apenas ouvia as histórias de Balthazar, e só abria de verdade um sorriso quando o fenício contava as proezas dos netos. Como teria gostado de conhecê-los!
E aquelas meninas, Nikka e Jeza, que tinham nascido tão frágeis e cresciam tão fortes – Lísias certamente as teria amado. O capitão olhou para as duas, engenhosas e cheias de carisma como o pai, decididas como a mãe a quebrar as barreiras impostas pelo sexo, e pensou nelas dali a alguns anos, percorrendo os corredores da Grande Biblioteca para desvendar seus segredos. Buscando viver os ideais que os contos da clepsidra haviam despertado. Esse seria o legado que Balthazar deixaria sobre a terra.
-- Meninas! Dando trabalho ao capitão? – Era Núria, a aia siciliana, que vinha descendo as escadas. – O bebê dormiu, e sua mãe está descansando também. Venham comer alguma coisa e se lavar, e assim, quando ele acordar, vocês vão poder logo subir para brincar com ele.
-- Podemos, Avô Baltha? – Jeza o olhou com expectativa.
-- É claro. Já falei um bocado por hoje. Podem ir.
-- O senhor quer beber alguma coisa? – indagou Núria, solícita. – Água, suco, vinho de tâmaras?
-- Depois. Leve as meninas, eu fico um pouco mais por aqui, tomando a fresca.
Piscou para a moça, que enrubesceu, baixando o rosto para esconder o sorriso. Muito bem, Capitão Balthazar. Pelo futuro dos seus netos, que aquele fosse o prenúncio de pelo menos mais duas décadas de vigor e saúde.
Nikka e Jeza beijaram sua barba – um gesto de respeito, muito antiquado na visão do fenício, mas ainda se usava em Cartago – e acompanharam a siciliana. Imprecações em helênico vinham da sala ao lado, onde o preceptor tentava ensinar retórica aos irmãos delas, de treze e onze anos, que só pensavam em travessias do deserto e proezas navais. Esses seriam os primeiros a aceitar a ideia de mudar de cidade. Aníbal, o teimoso primogênito de Sikkar, e o irmão seguinte, de temperamento indeciso, talvez ficassem lá até o fim da vida, mas não fazia mal. Seus filhos, netos ou bisnetos saberiam para onde ir quando a guerra se abatesse sobre Cartago. Quanto a ele, Balthazar, já não caminharia neste mundo, mas ali não cabiam arrependimentos. Outra eternidade o esperava ao fim da jornada. Ou será que todas as suas viagens, todos os encontros com deuses e heróis, todas as surpresas vindas de pessoas comuns não o tinham feito compreender que existia algo além?
-- Nós sabemos melhor, meu Lísias – murmurou o capitão, tateando sob a gola da túnica e encontrando o golfinho de vidro. – Um dia...  

Um vento leve beijou seus cabelos quando ele apertou o talismã contra o peito, junto ao coração.

***

Então? O que acharam do conto? O feedback de vocês é muito importante, porque estou escrevendo histórias sobre Nikka, Jeza e os demais irmãos, mas alguns já devem conhecer o Balthazar e o Lísias. Alguns contos deles estão em e-books e outro está disponível aqui na Estante. 

Para quem quiser vê-los, aqui vão os links:

Os Pilares de Melkart (na coletânea "Piratas")
            O Ouro de Tartessos
            A Caverna de Zakynthos
            Em Busca do Rei 

Ah, e a Parte 1 deste conto, para quem não leu. :)

Muito obrigada -- e volte sexta-feira, que tem mais uma dupla à sua espera, desta vez de avó e neta!

7 comentários:

Sheila D. Lima disse...

Baltha tão calejado, mas muito emocionante o pensamento dele. Jeza e Nikka são uma dupla muito legal, uma completa a outra. Vão ser ótimos os contos da nova geração! 😊

Beijinhos alados \o/

Ana disse...

Iupi! Que bom que você gostou!! Espero que leia os próximos, vai começar mais um na sexta-feira.

ALE DOSSENA disse...

Que delícia ler contos com contexto histórico. Adoro!! Já com vontade de sentar aos pés de Baltha para ouvir mais de suas histórias!

Astreya disse...

Ai meu Deus, que lindo. Chorei. Que bonita a escolha do Balthazar e o jeito como ele fala das pessoas que conheceu, e de como os "anônimos" são aqueles que se tornaram mais importantes. E esse final do golfinho? Amei, Ana! Lindo, lindo mesmo. Que está bem escrito é óbvio, afinal... mas está muito delicado e sensível, e me deixou o coração levinho. Adorei esse primeiro conto de avô, estou esperando pelo próximo (eba, Anna e Kyara!).

Isabela Lopes disse...

Que lindo! Balthazar demonstra o quão é atencioso com seus netos, além dele se preocupar com o futuro deles, é muito fofo ele se dedicar em passar o seu tempo contando histórias que por sinal, são totalmente incríveis para serem escutadas em detalhes. Adorei o conto e a ilustração que contornou bem a história! E as histórias da Nikka e da Jeza, um pouco mais crescidas, serão encantadoras!

Unknown disse...

Ana,
A história está ficando realmente intrigante. Interessante como o artefato mágico lhe dará abertura para seguir nas mais diversas direções.

A ideia de mudar o passado não é tão recorrente em contos infantis. Normalmente encontramos o conceito de que ele é imutável ou que deve ser mantido para evitar o pior. Desse modo estou achando muito legal a linha de pensamento do Balthazar. E muito humana também. Ele não busca mudar a história do mundo, apenas a daquela família.

Os dois parágrafos falando sobre as informações e trechos que ele esconde das meninas foi sensacional. Deu mais profundidade para a personagem, clareou mais seu caráter e, de quebra, manteve o ritmo e teor de uma narrativa para a garotada.

Lerei o próximo agora e comento mais.

Ah! Me ganhou na hora, referenciando mitologia. hehe

Bjao e Keep Up the Good Work.

Ana disse...

Gente, estou adorando os feedbacks! Muito obrigada!

Verta, o Balthazar queria mudar a História, no início. Ele viajou com a clepsidra para pegar Alexandre Magno antes que ele invadisse sua cidade natal, Tiro. Mas a "caçada no tempo" nunca deu certo. Nesta fase da vida, Balthazar está mais agridoce, tendo aprendido várias lições. E, já que optou por ficar, quer realmente fazer a diferença para as pessoas que ele ama, de outra maneira, mas tanto quanto ama o Lísias.