quinta-feira, julho 27, 2017

A Era do Leonte : parte 1

Pessoas queridas, chegamos ao último conto da série! Nele é apresentado um universo que vocês ainda não conhecem, partilhado com meu amigo Luiz Felipe Vasques: Medistelara, no qual as civilizações do antigo Mediterrâneo são transportadas para o espaço. Temos aquilaces imperialistas, khemitas cheios de dignidade, heládicos heroicos e, claro... ken´amis comerciando pelas galáxias afora em nome da Liga Mercantil de Medistelara, que é controlada por eles.
O primeiro conto que escrevemos (a quatro mãos) deve sair em breve numa coletânea de Space Opera. Este, escrito apenas por mim, é uma prequel em que  o futuro navegador ken´ami Hanno é um adolescente viajando com sua avó, a poderosa Elyssa de Qartag, a fim de selar um acordo de negócios num planeta distante... e num momento especial. Espero que gostem.
A ilustração é do talentoso Valdir Muniz.



***

— Então, chegamos ao famoso planeta Carsis. Não entendo por que temos de abrir mão dele – comentou Hanno, olhando em volta. – Além do minério, tem essa floresta densa, como já quase não existe em Medistelara. E o ar é puro. Eu estou gostando do lugar.
Alto e forte para os seus quinze anos, barba despontando no queixo e usando com orgulho seu distintivo de piloto aprendiz, o rapaz acompanhava os passos ligeiros da avó, que se dirigia ao acampamento dos heládicos. Ia negociar uma compensação a ser paga pela Companhia de Mineração Caríbdes, que se estabelecera sorrateiramente em Carsis e começara a explorar as minas de deltrílio. Sua alegação era de que os ken´ami, que tinham iniciado as trocas comerciais com os nativos cerca de trinta anos antes, não haviam se interessado em ir além, e o deltrílio permanecera todo esse tempo no interior das montanhas, à espera de quem o extraísse e lhe desse bom uso. Jamais pertencera de fato aos ken´ami, ou, mais propriamente, ao governo de Qartag, a mais forte das cidades fundadas por aquele povo de navegadores e comerciantes. Ainda assim, reconhecendo que o fato de ter chegado primeiro a Carsis lhes concedia a preferência, a Caríbdes se dissera disposta a compensar os qartagineses, fosse em dinheiro sonante ou com uma fração do que obtivessem nas minas.
E, para tratar disso, ali estava Elyssa de Qartag.
O olhar de Hanno envolveu sua avó num misto de amor, admiração e um pouco de exasperação pelos modos dela. Matriarca da família, membro do alto escalão da Liga Mercantil de Medistelara – dominada pelos ken´ami, que a tinham fundado, mas que congregava comerciantes de todos os povos e pontos do Aglomerado –, Elyssa era uma mulher baixinha e enérgica, de cabelos brancos, língua afiada e olhos penetrantes aos quais não escapava o menor detalhe. No curto percurso entre o campo de pouso onde ficara sua nave, a Balthazar-5, e o acampamento dos mineradores, ela se detivera várias vezes para analisar o entorno – mata virgem, praticamente intocada, exceto por aquela trilha aberta pelos heládicos – e para observar, sem disfarce, cada nativo que cruzava o seu caminho.
Os carsísios eram humanoides de pele levemente acinzentada. Tinham estatura média pelos padrões de Qartag e costumavam ser robustos, com braços fortes que terminavam em mãos de quatro dedos. Eram também extremamente dóceis e tímidos, andavam de cabeça baixa e pediam desculpas por tudo. Os relatos dos primeiros ken´ami a travar contato com eles falavam de uma cultura elaborada, com rituais cheios de simbolismo, mas poucos avanços no campo da tecnologia. Sabiam, fazia tempo, que seu deltrílio era valioso para a indústria espacial, mas não tinham procurado desenvolver ferramentas adequadas para a extração. Em vez disso, vendiam sua força de trabalho na mina – já que nem todas as atividades eram automatizadas – e cuidavam da logística, limpando, servindo, fornecendo comida e o que mais fosse necessário. Estavam felizes com isso, segundo os heládicos, mas o que Hanno via em seus rostos, mesmo de relance, não era bem alegria. Era apenas a resignação de quem escolhe o menor dos males.
— Ainda acho que você devia recusar a oferta, seja qual for. – Hanno alcançou a avó, que tinha parado mais uma vez e examinava a inscrição num marco de pedra à margem da trilha. – Este não é território dos heládicos. Deveria ser nosso, e as minas deveriam ser exploradas pelo processo ken´ami. É mais eficaz, menos danoso ao meio ambiente e…
— Aprendeu isso na escola? – Elyssa perguntou, com a ironia habitual. – Exploração é exploração, menino. Causa danos, sempre. Esse ideal que nos incutem quando jovens pilotos, descobrir rotas intocadas, ir aonde ninguém foi, tudo isso é muito bonito, mas esbarra na lógica do comerciante. Para quem você trabalha?
— Para a Liga Mercantil de Medistelara – ele suspirou.
— Exatamente. Uma liga de comércio – tornou a avó. – Para ela, o que interessa não é o que causa menos danos, e sim o que traz mais lucros. Se a compensação oferecida pela Caríbdes for boa o bastante, vou aceitar, e ponto final. Entendido?
Hanno fez que sim, num silêncio amuado. Compreendia o raciocínio de Elyssa, típico de comerciante e de ken´ami, mas o que tinha isso a ver com seu desejo de descobrir novos caminhos? E se os pilotos da Liga tinham incluído aquele planeta na rota de comércio, deviam deixar que os nativos fossem explorados? Ele olhou para os trabalhadores que vinham no sentido oposto, saindo da mina após um turno de várias horas, e se culpou por aqueles rostos cansados e costas curvadas. Eles estariam bem melhor se o deltrílio fosse explorado com tecnologia ken´ami. Mas ali estava sua avó, falando em nome de outros velhos, para defender o lucro acima de tudo.
— Então, vamos? – perguntou ele, querendo acabar logo com aquilo. – O acampamento da Caríbdes fica ali adiante.
— Só mais um momento. Olhe essas inscrições. – Ela apontou para o marco de pedra, onde estavam esculpidos três círculos concêntricos em baixo relevo. – Veja as figuras espalhadas dentro dos círculos. Um delfino, um quelonídeo, um árion…
— Sim, e daí?
— Pense um pouco – replicou Elyssa. – Isso não lembra alguma coisa?
— Hum. – Ele olhou para as imagens, consultou a memória, e no instante seguinte a luz se fez. – Ah, mas é claro! São as constelações que eles veem a olho nu! Mas então… isso seria um mapa celeste? Aqui, no meio de uma trilha na floresta?
— Eu também achei curioso, mas deve fazer sentido. – Elyssa tocou algumas marcas em torno dos círculos, simples arranhões que pareciam ter sido feitos mais tarde. – Bom, depois voltamos a isso. Agora, vamos, o pessoal da Caríbdes já deve estar impaciente.
Hanno assentiu, e os dois se apressaram pelo que restava do caminho. O acampamento heládico surgiu logo depois: um conjunto de tendas de tecido sintético, do tipo mais utilizado em expedições e campanhas militares, montadas ao redor da Bucéfalo, a grande nave de formato abaulado que trouxera a Carsis os engenheiros e prospectores. O maquinário vinha em cargueiros que também levavam embora o deltrílio extraído, mas no momento não havia nenhum à vista. Quanto à mina, ficava a alguns estádios de distância, perto o bastante para que os heládicos pudessem supervisionar os trabalhos, mas longe o suficiente para que o barulho e a poeira não os incomodassem quando estavam no acampamento.
— Salve, Senhora Elyssa, porta-voz da Liga Mercantil! – Solônio de Cenos, o jovial mestre de leis contratado pela Caríbdes, se adiantou para recebê-los. – Estávamos ansiosos à sua espera. Fez boa viagem? Precisa de alguma coisa, algum suprimento, algum reparo em sua nave? Posso mandar providenciar enquanto conversamos, assim não ficará retida em Carsis mais tempo que o necessário.
— Ora, ora – fez Elyssa, sorrindo com ironia. – Não sabia que tinham toda essa pressa em me ver pelas costas.
— O quê? Oh, não, não, não! – O homenzinho quase engasgou. – De jeito nenhum, senhora! É bem-vinda para ficar em Carsis enquanto assim desejar! Eu apenas supus que uma pessoa na sua posição fosse muito ocupada… Que não quisesse permanecer aqui mais tempo que o necessário para fechar o acordo. Porque, olhe, não tenho a menor dúvida de que chegaremos bem rápido a um entendimento. A Companhia deseja que suas relações com a Liga Mercantil se mantenham harmoniosas, transparentes, e que haja proveito para ambas as partes. Venham, o Comandante Agapipókias vai recebê-los.
— Comandante? – Hanno sussurrou para a avó. – Não deveríamos falar com um representante da Caríbdes?
— Deve ser isso mesmo. O deltrílio tem uso militar, portanto o exército deles está metido na história – soprou Elyssa de volta.
Hanno fez que entendia e ficou em silêncio. Os dois seguiram o saltitante mestre de leis até uma tenda aberta, onde um homenzarrão de cabelo comprido, vestindo um uniforme escuro, equilibrava seu amplo traseiro num banquinho.
— É ela? – perguntou ele a Solônio, ignorando os recém-chegados.
— Sim, meu comandante, esta é a famosa Elyssa de Qartag. O rapazinho é…  bem, ela não disse. Um secretário, talvez?
— É meu neto mais velho, Hanno – rosnou Elyssa. – Piloto aprendiz da Liga Mercantil.
— Aqui não é lugar para aprendizes – Agapipókias rosnou mais alto.
Elyssa parou diante dele, braços cruzados, os dois medindo um ao outro com o olhar. Então, de má vontade, o heládico apontou o banquinho à sua frente.
— Sente-se aí – disse ele. – Eu iria direto ao ponto, mas meus superiores ordenaram que lhe mostrasse imagens da mina e repassasse alguns dados antes de falarmos do que interessa. Pura formalidade.
— Às vezes é inevitável – retrucou Elyssa.
Nesse momento, dois carsísios surgiram carregando uma mesa dobrável, que montaram no espaço entre o comandante e os dois ken´ami. Feito isso, recuaram, murmurando desculpas pelo incômodo, e uma nativa mais velha entrou com uma bandeja onde estavam copos e uma jarra de cerâmica. Ia pousá-la sobre a mesa quando um rugido de Agapipókias a fez recuar.
— Tenha cuidado, mulher! Você vai pagar caro se derramar uma gota que seja desse vinho sobre o meu equipamento!
Com isso ele se referia ao pequeno pad dourado que abrira sobre a mesa e no qual digitava alguns comandos. Talvez fosse um aparelho caro, difícil de repor ali em Carsis, mas a violência com que o homem falara endureceu as feições de Elyssa. Ela não ia deixar por isso mesmo.

(continua...)


Parte 2

3 comentários:

Astreya disse...

Aaaargh, intragável este senhor Agapipókias! Quero ver o que a vovó Elyssa vai fazer... ela parece bem pragmática, mas pelo jeito não gosta de injustiça e grosseria. Isso aí, Elyssa.

Ana, a ambientação está muito boa, a gente consegue entender e "entrar no clima" sem dificuldades. Digo isso como leitora que não está habituada a Space Opera. Adorei a nave com o nome do cavalo de Alexandre XD e todo esse clima de civilizações do Mediterrâneo em um cenário super moderno. Que sacada bacana!

Ana disse...

Que legal que você gostou! Confesso que não teria entrado nessa de Space Opera sem um parceiro que entendesse da coisa. Mas estou curtindo muito fazer!

André disse...

Muito bom, me lembrou episódios de Startrek. Estou apostando na vovó, ela parece ser danada!