Sob o sol a pino, o homem e a mulher caminham pela prancha. Ele: moreno e gigantesco, os braços peludos, a testa reluzente de suor. Ela: de pele muito branca, estatura média, com saias longas que, no entanto, deixam seus tornozelos nus. É essa parte do seu corpo que ele açoita, não com muita força, mas repetidamente, a cada passo. A mulher se apressa, tentando se esquivar aos golpes, mas a multidão se comprime ao seu redor, temendo o mar escuro que os colherá ao menor falseio.
Não há escapatória.
Com um suspiro, ela se volta para trás, para o homem alto e moreno que caminha quase colado aos seus calcanhares. Os olhos negros não estão nela e sim no céu: ele entoa em surdina um cântico a seu deus. Ela se pergunta se ele irá compreendê-la, pensa até mesmo em se calar, vendo tão próximos o barco e o fim da provação. No entanto, a próxima chibatada é forte demais para que possa se conter – e assim ela se detém a dois terços da prancha, as mãos plantadas na cintura, dizendo em alto e bom tom:
- Dá pra parar de bater nos meus tornozelos?
Confuso, o homem ainda assim percebe o que está acontecendo e ergue a mochila, recolhendo as longas tiras soltas enquanto murmura suas desculpas. Ela sorri, com um gesto de não-foi-nada, e se vira sobre os calcanhares, aproveitando uma brecha à sua frente para avançar mais rápido. Talvez ainda consiga sentar, embora as barcas encham depois das cinco. Isso seria bom. Em sua própria mochila há um caderno à espera dessa história.
4 comentários:
Gostei do conto, Ana!
Oi Ana!
Se for uma crônica no estilo crônica mesmo, eu não consigo imaginar você de saia! Juro!
Ainda vou roubar um dos seus cadernos. You'd better believe what I say...
bjs
Vânia
Você pode tentar, Vânia! Mas, como sabe, meus cadernos são legião. Some um, aparece outro. E nem sei se você saberia por onde começar.
Você acha, Ana, que se eu fosse realmente roubar algo confessaria isso em público? E pior, antes de fazer?
Porém... se acaso (é uma hipótese) um dia algum caderno seu sumir e você vier me procurar - você virá, eu sei - eu falarei a verdade: que o duende que mora na sua orelha conspirou com o duende que mora na minha orelha e eu - pobre donzela - fui seqüestrada e coagida (sabe deus por que meios) a ajudá-los no plano macabro de, digamos, pegar emprestado sem autorização alguns dos seus escritos. Juro que os farei confessar sonegando as maçãs (duende come maçãs, suponho).
Bjs
Vânia
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