Oi, Pessoas! Tudo bem?
O quarto post da série Memórias de Leitura será, certamente, mais curto e menos revelador que os demais. Isso porque, enquanto os livros aos quais se referiram os primeiros três foram tão importantes a ponto de influenciar meu trabalho como escritora, aquele do qual vou falar hoje foi apenas um livro que gostei muito de ler. Que li diversas vezes. Que me levou a outras leituras e me introduziu num universo até então desconhecido.
A obra da qual estou falando é Doidinho, um dos romances do ciclo da cana-de-açúcar de José Lins do Rego e a continuação do seu livro de estréia, Menino de Engenho. Neste, o protagonista, o menino Carlos de Melo – Carlinhos, em família – vai viver com seu avô, o Coronel José Paulino, dono do engenho Santa Rosa e, de certa medida, também de seus moradores. No segundo, encontramos o mesmo Carlos, um pouco mais velho mas ainda menino, enfrentando outra comunidade de opressores e oprimidos: o Instituto Nossa Senhora do Carmo, mais conhecido como “o colégio do Seu Maciel”, onde ele se torna um dos alunos internos e recebe o apelido algo cruel de “Doidinho”. À exceção de umas férias passadas no engenho do avô de Carlos, toda a ação do livro transcorre dentro do colégio, cujo cotidiano é hábil e dolorosamente dissecado pelo narrador. Da péssima comida (que não tinham o direito de recusar) aos piolhos de que todos estavam contaminados, dos banhos de cuia aos “bolos” de palmatória, do professor autoritário ao colega de hábitos perversos, cada ação, pensamento e sentimento de “Doidinho” se revelam para o leitor como um nervo exposto. E alguns de seus companheiros são tipos dignos de figurar numa Comédia Humana.
Recentemente li uma crítica segundo a qual “Doidinho” é um dos melhores livros a retratar a realidade da juventude e da educação no Brasil; que as situações e personagens são tão verossímeis que, mesmo após muitas décadas, muito do conteúdo permanece atual. Isso, para mim, é um fato: enquanto Sérgio e seus colegas do “Ateneu” ficaram no século XIX, os meninos e rapazes de “Doidinho” quase poderiam ser “transportados” para um cenário moderno, guardadas as diferenças de linguagem (seriam tantas assim?) e suavizados, um pouco, os métodos pedagógicos. Para o protagonista, vindo de um meio rural e do espaço aberto, o confinamento no ambiente e na sociedade do Nossa Senhora do Carmo é uma ruptura e um pesadelo – e o abismo se torna ainda maior quando Carlos confronta sua realidade com a que lhe é apresentada em “Coração”, livro de Edmundo de Amicis que, já tendo sido apontado como substituto do manual escolar, era lido também pelos alunos de Seu Maciel. Nele, a escola era boa, amigável; os mestres eram sábios e dedicados; os próprios estudantes eram alunos e crianças quase perfeitas, aquilo que “Doidinho” jamais teria condições de vir a ser. Sua fuga, no final, de volta ao engenho do avô representa a desistência de seguir aquele modelo, de se deixar moldar, a ferro e fogo, tão dolorosamente como o amigo “Coruja”; no entanto, ao contrário deste, obrigado a “mudar de lado” e se tornar bedel para prosseguir os estudos, o neto do Coronel José Paulino encontrou (ou teve quem lhe encontrasse) uma outra saída, já que, em romances posteriores como Bangüê e O Moleque Ricardo, ele aparece devidamente bacharelado como o “Doutor Carlos de Melo”.
Da primeira vez que li “Doidinho”, lembro, eu tinha oito anos de idade. Menos que o suficiente para entender o xingamento de um dos colegas de Carlos (filho da quê? Mãe, o que que é p***?) mas o bastante para que a explicação (incompleta, claro) não me satisfizesse. Como não me satisfaço com pouco, em breve li também o Menino de Engenho, depois O Moleque Ricardo e Fogo Morto, e essas foram minhas primeiras incursões no universo do romance regionalista nordestino. Não muito mais tarde, as obras de Rachel de Queiroz e Graciliano de Ramos viriam se somar à minha percepção desse mundo e de sua sociedade, e tardiamente viriam outros como Suassuna; mas, embora admire a todos esses, os livros de Zé Lins continuaram ocupando um lugar especial. Vai ver que é porque eles foram os primeiros... ou porque ele conta histórias tão bem quanto sua outra protagonista, a Velha Totônia. Vai-se saber?
De qualquer forma, a leitura de “Doidinho” foi um prazer repetidamente saboreado na minha infância, o qual eu não podia deixar de registrar aqui. Infelizmente, a edição da década de 60 da José Olympio, com a capa esfrangalhada e papel amarelado, já não está na minha, nem em nenhuma outra estante “real” da família. Que a memória fique, então, na Estante Mágica. Vale a pena guardá-la.
Abraços a todos,
Até a próxima!
Ana Lúcia
sexta-feira, junho 23, 2006
segunda-feira, junho 12, 2006
Do Meu Caderno de Sonhos
12/06/2006 - 5:22
Sonhei, a noite toda, que estava voando. Numa coisa que parecia uma vassoura de vários lugares. A sensação era boa, mas no sonho eu não era eu, e sim um menino de uns oito anos, de cabelos escuros. De alguma forma, meus pais temiam por mim, mas sabiam o que estava acontecendo. Minha mãe (no sonho completamente diferente da verdadeira) estava zangada com a mulher que me ofereceu aquele instrumento de vôo. Eu estava fascinada (o, na verdade), mas tinha um pouco de medo. A vassoura se inclinava para trás e eu achava que ia cair, mas não caí nem uma vez. Voei não muito alto nem muito longe, sobre o que parecia um estábulo ou outra construção de madeira entre muralhas de pedra. Não me lembro se houve aterrissagem; tenho a impressão de que acordei quando a "vassoura" ainda estava no ar.
....
Queridas e pacientíssimas pessoas,
Não sei se já disse isso a vocês, mas não costumo sonhar muito - ou, mais provavelmente, não me lembro dos meus sonhos. Houve uma época em que isso acontecia, mas, depois que deixei de lado os exercícios de relaxamento e concentração (um dos meus passados... um dia conto!), os sonhos começaram a ficar esquecidos, lá no canto de onde eles vêm. Quando acontece de acordar e me lembrar, então anoto, e foi isso que fiz esta madrugada. Agora, partilho com vocês, com alegria porque foi um sonho "bom", que me fez sentir melhor do que nos últimos dias.
Também acredito que tenha um significado, e que este misture imagens das histórias que costumo escrever com sensações e conteúdos inconscientes, relativos à minha vida pessoal. Mas devo parar por aí, porque não sei interpretar sonhos, e além disso minha interpretação seria parcial.
E quanto a vocês? Alguma sugestão?
Fico à espera... e deixo aqui um grande abraço, molhado da chuva que não pára de cair.
Até a próxima,
Ana
P. S. Minha lista de "coisas a fazer" até que andou. Fiz a adaptação do Pluft. Só lamento que a Luciana ainda não esteja na classe de alfabetização e, portanto, não vá participar. Ela ficaria perfeita de fantasminha. :)
Sonhei, a noite toda, que estava voando. Numa coisa que parecia uma vassoura de vários lugares. A sensação era boa, mas no sonho eu não era eu, e sim um menino de uns oito anos, de cabelos escuros. De alguma forma, meus pais temiam por mim, mas sabiam o que estava acontecendo. Minha mãe (no sonho completamente diferente da verdadeira) estava zangada com a mulher que me ofereceu aquele instrumento de vôo. Eu estava fascinada (o, na verdade), mas tinha um pouco de medo. A vassoura se inclinava para trás e eu achava que ia cair, mas não caí nem uma vez. Voei não muito alto nem muito longe, sobre o que parecia um estábulo ou outra construção de madeira entre muralhas de pedra. Não me lembro se houve aterrissagem; tenho a impressão de que acordei quando a "vassoura" ainda estava no ar.
....
Queridas e pacientíssimas pessoas,
Não sei se já disse isso a vocês, mas não costumo sonhar muito - ou, mais provavelmente, não me lembro dos meus sonhos. Houve uma época em que isso acontecia, mas, depois que deixei de lado os exercícios de relaxamento e concentração (um dos meus passados... um dia conto!), os sonhos começaram a ficar esquecidos, lá no canto de onde eles vêm. Quando acontece de acordar e me lembrar, então anoto, e foi isso que fiz esta madrugada. Agora, partilho com vocês, com alegria porque foi um sonho "bom", que me fez sentir melhor do que nos últimos dias.
Também acredito que tenha um significado, e que este misture imagens das histórias que costumo escrever com sensações e conteúdos inconscientes, relativos à minha vida pessoal. Mas devo parar por aí, porque não sei interpretar sonhos, e além disso minha interpretação seria parcial.
E quanto a vocês? Alguma sugestão?
Fico à espera... e deixo aqui um grande abraço, molhado da chuva que não pára de cair.
Até a próxima,
Ana
P. S. Minha lista de "coisas a fazer" até que andou. Fiz a adaptação do Pluft. Só lamento que a Luciana ainda não esteja na classe de alfabetização e, portanto, não vá participar. Ela ficaria perfeita de fantasminha. :)
quarta-feira, maio 31, 2006
Tudo Que Eu Ainda Não Fiz
Sempre precisei de um pouco de atenção.
Acho que não sei quem sou,
Só sei do que não gosto.
E destes dias tão estranhos...
Fica poeira se escondendo pelos cantos.
(Renato Russo. Teatro dos Vampiros)
.....
Pessoas queridas,
Falta de tempo e organização é um caso sério. Estou numa fase ruim, cheia de raiva impotente e autocomiseração por não fazer as coisas que planejo. É como se todos os dias eu fizesse uma lista de desejos e nenhum deles fosse realizado. Ou, pior, é como concluir que eu nem mesmo tentei esfregar a lâmpada.
Maio está no fim e eu não realizei nem metade das coisas que pretendia. Não li nenhum dos livros da minha lista (li outros), não escrevi nenhum dos contos curtos que pretendo enviar a um concurso, nem comecei a adaptar Pluft, o Fantasminha para a peça da escola da Luciana. Não vi concluírem a instalação do gás natural, continuo com a casa semidestruída e meus livros queridos empilhados no corredor. Não viajei. Não fui a exposições nem ao cinema. Não procurei fazer nenhum contato para dar cursos, e o da Casa da Leitura acaba hoje sem que eu tenha providenciado a lista de coletâneas de contos que prometi a meus alunos. Não preparei as atualizações para o livro, que já está esgotando outra vez. Não guardei dinheiro para a reimpressão. Não convidei meus amigos para irem a Niterói (nem vou, enquanto o apartamento estiver desse jeito). Não atualizei o blog todas as semanas. Não. Ainda não pude.
Algum de vocês já teve essa sensação de viver pendurado no "ainda não"?
Acho que não sei quem sou,
Só sei do que não gosto.
E destes dias tão estranhos...
Fica poeira se escondendo pelos cantos.
(Renato Russo. Teatro dos Vampiros)
.....
Pessoas queridas,
Falta de tempo e organização é um caso sério. Estou numa fase ruim, cheia de raiva impotente e autocomiseração por não fazer as coisas que planejo. É como se todos os dias eu fizesse uma lista de desejos e nenhum deles fosse realizado. Ou, pior, é como concluir que eu nem mesmo tentei esfregar a lâmpada.
Maio está no fim e eu não realizei nem metade das coisas que pretendia. Não li nenhum dos livros da minha lista (li outros), não escrevi nenhum dos contos curtos que pretendo enviar a um concurso, nem comecei a adaptar Pluft, o Fantasminha para a peça da escola da Luciana. Não vi concluírem a instalação do gás natural, continuo com a casa semidestruída e meus livros queridos empilhados no corredor. Não viajei. Não fui a exposições nem ao cinema. Não procurei fazer nenhum contato para dar cursos, e o da Casa da Leitura acaba hoje sem que eu tenha providenciado a lista de coletâneas de contos que prometi a meus alunos. Não preparei as atualizações para o livro, que já está esgotando outra vez. Não guardei dinheiro para a reimpressão. Não convidei meus amigos para irem a Niterói (nem vou, enquanto o apartamento estiver desse jeito). Não atualizei o blog todas as semanas. Não. Ainda não pude.
Algum de vocês já teve essa sensação de viver pendurado no "ainda não"?
segunda-feira, maio 15, 2006
C de Cyrano
Oi, Pessoas! Tudo bem?
Hoje - finalmente - prossigo com a série Memórias de Leitura. E falo de um personagem que me é muito caro: Cyrano de Bergerac, protagonista da peça do mesmo nome, escrita por Edmond Rostand no finalzinho do século XIX.
Para começar, tenho que contar um segredo: só muito recentemente vim a saber que existiu um Cyrano de verdade. Só que ele é mais antigo: viveu no século XVII, e foi autor de obras de cunho científico e satírico, como Voyage Dans la Lune. Hoje, os estudiosos o considreram um dos precursores da Literatura Fantástica, gênero no qual eu também escrevo. Mas o principal motivo pelo qual eu gosto de Cyrano não é esse, e sim o retrato (certamente não muito fiel) que dele fez Rostand em sua obra.
A primeira versão desse livro que tive em mãos era recontada em forma de prosa, numa brochura das Edições de Ouro. Na época - eu teria uns nove ou dez anos - havia uma livraria da editora perto da minha casa, e era onde eu gastava a maior parte da minha mesada (a prova? Pelo menos mais três livros saídos de lá vão ser comentados em futuros posts desta série). O Cyrano, porém, não foi comprado por mim, e sim "herdado" de meu pai, ou talvez meus irmãos, assim como os livros de Emílio Salgari e a versão recontada de algumas peças de Shakespeare. E, pelo menos para a "rata de biblioteca" que sou eu, não podia haver herança melhor.
Uma coisa bem curiosa de que me lembro é que, na primeira leitura que fiz de Cyrano, a cena que melhor ficou gravada em minha memória não era protagonizada pelo herói, e sim por Ragueneau, o confeiteiro com alma de poeta (se não me engano, tecia odes aos seus bolinhos), que fornecia quitutes grátis aos amigos em troca de um minuto de atenção. Claro que era por interesse que aplaudiam o pobre homem, e eis o porquê de eu não simpatizar com eles e sim com o confeiteiro. Quem escreve quer ser lido e/ou ouvido, e essa sede às vezes nos faz passar por situações bizarras. Às vezes até nos humilhar, voluntária ou involuntariamente. Porém, todas as agruras são esquecidas quando achamos alguém que, mesmo por um instante, nos concede atenção e apreço genuínos. Eu consegui isso, algumas vezes, ao longo dos anos, e suponho que também Mestre Ragueneau. Afinal, ele leva vantagem sobre mim, que não sei assar bolinhos.
Ragueneau - essa é outra informação recente - se baseia num padeiro que existiu de fato, enquanto Roxanne, a amada de Cyrano, foi composta a partir de duas mulheres. Uma delas foi casada com Christophe (e não Christien) de Neuvilette, e seu amor deve ter sido verdadeiro, já que, após a morte do marido, ela se retirou para um convento. Se Savinien Cyrano de Bergerac - o da vida real - chegou a visitá-la aí, não sei dizer. Mas o Cyrano, personagem de Rostand, fez isso até o fim do percurso daquele amor sofrido, cheio de atos de um heroísmo que emociona, não pela bravura do herói, mas pela renúncia e desprendimento de que está imbuído. Ao se fazer passar por Christien para fazer a corte, ao arriscar a vida, todos os dias, passando entre as linhas de fogo para entregar cartas a Roxanne, Cyrano não tem esperanças de vir a ser amado, mas, ao contrário, se esforça para fazer com que a jovem se sinta amada e seja feliz.
É claro, na vida real não se vê muito dessas coisas. Para a mentalidade de hoje, elas devem parecer estranhas e até meio doentias. Afinal, todos estamos cansados de ouvir que devemos amar, primeiro, a nós mesmos, e buscar o que é melhor para nós. Mas mesmo assim não consigo me convencer de que Cyrano, ao trabalhar em prol de Christien, não era também feliz, embora de uma forma tortuosa: feliz não apenas por proporcionar felicidade a Roxanne, mas porque, conhecendo seu papel naquele romance, este o fazia se sentir tremendamente satisfeito consigo mesmo.
Isso porque Cyrano, embora acreditasse que Roxanne não poderia amá-lo, amava a si mesmo, e amava a vida, por mais que ocultasse tristezas por trás do seu penacho. As bravatas que fazia, até mesmo em seu declínio ("Hoje comi carne!" afirma ele a uma religiosa, na sexta-feira em que a carne era interdita, quando na verdade não tinha dinheiro para uma refeição) -, a relação com os companheiros de guerra, a resposta rápida, a capacidade de fazer troça de si mesmo, tudo isso denota um grande prazer de estar vivo. Mais que isso: uma humanidade, com todas as imperfeições e complexidades, que é rara de encontrar, mesmo em pessoas de carne e osso. Sendo um poeta, um artista - escudo usado por muitos para não encarar a vida de frente -, Cyrano, ao longo da peça, provará inúmeras vezes que não é um homem feito apenas de palavras, mas de ações. E se estas, às vezes,parecem tolas, são também as mais nobres que se poderiam esperar de um herói.
Os efeitos desse livro sobre mim são dos mais duradouros. A exemplo de Ana Terra, Cyrano foi mais um personagem que resvalou das minhas memórias de leitora para meu trabalho de ficcionista. Uma leitura atenta de O Jogo do Equilíbrio (vejam ao lado) ou de qualquer outro conto ou romance em que apareça Cyprien de Pwilrie mostrará traços do espadachim no saltimbanco, do poeta no contador de histórias, sem falar no cavanhaque e no nariz proeminente. Cyprien tem até mesmo um amigo padeiro, cuja filha é a narradora do livro, ainda em projeto, que conta a vida do Mestre das Sete Artes. E por acaso ou ato falho ela se chama... Roxanne. ;)
Espero não precisar explicar que nada disso foi proposital, assim como não o é o vôo das águias comandadas por Kieran de Scyllix (herói da trilogia do Castelo das Águias, que escrevo atualmente), que atravessam o campo de batalha para levar mensagens à mulher e à irmã do mago. Quem já leu alguma coisa da minha ficção deve concordar (assim espero!) que ela não é uma simples colagem de referências. No entanto, como já disse várias vezes, acredito que todos os escritores têm uma "bagagem" na qual entram elementos da memória, tanto a intelectual quanto a afetiva, e que, conscientemente ou não, se valem desses elementos em seus textos. Érico Veríssimo expôs muito bem a situação quando constatou que o nome do seu famoso "capitão" era o mesmo do Cid Campeador, Rodrigo Díaz de Bivar: uma peça pregada pela memória, disse ele. E, apesar disso, ninguém pode negar a Rodrigo Cambará uma (intensa) personalidade própria.
Quanto a mim, fico feliz por ver, nos atos do sombrio e lealíssimo Kieran, no panache inquebrantável de Cyprien, um pouco desse Cyrano que tanto me fascina. Talvez eu me identifique com ele também, não no heroísmo (sou uma borra-botas: todo mundo sabe), não na capacidade de renúncia, mas no amor à vida e às palavras. Na medida do possível, procuro unir essas duas paixões: é por isso que falo tanto, que escrevo tanto. E no final - que eu espero seja mais feliz que o de Cyrano - é disso que vão se lembrar quando falarem de mim.
Um grande abraço a todos,
Até a próxima!
Ana
Hoje - finalmente - prossigo com a série Memórias de Leitura. E falo de um personagem que me é muito caro: Cyrano de Bergerac, protagonista da peça do mesmo nome, escrita por Edmond Rostand no finalzinho do século XIX.
Para começar, tenho que contar um segredo: só muito recentemente vim a saber que existiu um Cyrano de verdade. Só que ele é mais antigo: viveu no século XVII, e foi autor de obras de cunho científico e satírico, como Voyage Dans la Lune. Hoje, os estudiosos o considreram um dos precursores da Literatura Fantástica, gênero no qual eu também escrevo. Mas o principal motivo pelo qual eu gosto de Cyrano não é esse, e sim o retrato (certamente não muito fiel) que dele fez Rostand em sua obra.
A primeira versão desse livro que tive em mãos era recontada em forma de prosa, numa brochura das Edições de Ouro. Na época - eu teria uns nove ou dez anos - havia uma livraria da editora perto da minha casa, e era onde eu gastava a maior parte da minha mesada (a prova? Pelo menos mais três livros saídos de lá vão ser comentados em futuros posts desta série). O Cyrano, porém, não foi comprado por mim, e sim "herdado" de meu pai, ou talvez meus irmãos, assim como os livros de Emílio Salgari e a versão recontada de algumas peças de Shakespeare. E, pelo menos para a "rata de biblioteca" que sou eu, não podia haver herança melhor.
Uma coisa bem curiosa de que me lembro é que, na primeira leitura que fiz de Cyrano, a cena que melhor ficou gravada em minha memória não era protagonizada pelo herói, e sim por Ragueneau, o confeiteiro com alma de poeta (se não me engano, tecia odes aos seus bolinhos), que fornecia quitutes grátis aos amigos em troca de um minuto de atenção. Claro que era por interesse que aplaudiam o pobre homem, e eis o porquê de eu não simpatizar com eles e sim com o confeiteiro. Quem escreve quer ser lido e/ou ouvido, e essa sede às vezes nos faz passar por situações bizarras. Às vezes até nos humilhar, voluntária ou involuntariamente. Porém, todas as agruras são esquecidas quando achamos alguém que, mesmo por um instante, nos concede atenção e apreço genuínos. Eu consegui isso, algumas vezes, ao longo dos anos, e suponho que também Mestre Ragueneau. Afinal, ele leva vantagem sobre mim, que não sei assar bolinhos.
Ragueneau - essa é outra informação recente - se baseia num padeiro que existiu de fato, enquanto Roxanne, a amada de Cyrano, foi composta a partir de duas mulheres. Uma delas foi casada com Christophe (e não Christien) de Neuvilette, e seu amor deve ter sido verdadeiro, já que, após a morte do marido, ela se retirou para um convento. Se Savinien Cyrano de Bergerac - o da vida real - chegou a visitá-la aí, não sei dizer. Mas o Cyrano, personagem de Rostand, fez isso até o fim do percurso daquele amor sofrido, cheio de atos de um heroísmo que emociona, não pela bravura do herói, mas pela renúncia e desprendimento de que está imbuído. Ao se fazer passar por Christien para fazer a corte, ao arriscar a vida, todos os dias, passando entre as linhas de fogo para entregar cartas a Roxanne, Cyrano não tem esperanças de vir a ser amado, mas, ao contrário, se esforça para fazer com que a jovem se sinta amada e seja feliz.
É claro, na vida real não se vê muito dessas coisas. Para a mentalidade de hoje, elas devem parecer estranhas e até meio doentias. Afinal, todos estamos cansados de ouvir que devemos amar, primeiro, a nós mesmos, e buscar o que é melhor para nós. Mas mesmo assim não consigo me convencer de que Cyrano, ao trabalhar em prol de Christien, não era também feliz, embora de uma forma tortuosa: feliz não apenas por proporcionar felicidade a Roxanne, mas porque, conhecendo seu papel naquele romance, este o fazia se sentir tremendamente satisfeito consigo mesmo.
Isso porque Cyrano, embora acreditasse que Roxanne não poderia amá-lo, amava a si mesmo, e amava a vida, por mais que ocultasse tristezas por trás do seu penacho. As bravatas que fazia, até mesmo em seu declínio ("Hoje comi carne!" afirma ele a uma religiosa, na sexta-feira em que a carne era interdita, quando na verdade não tinha dinheiro para uma refeição) -, a relação com os companheiros de guerra, a resposta rápida, a capacidade de fazer troça de si mesmo, tudo isso denota um grande prazer de estar vivo. Mais que isso: uma humanidade, com todas as imperfeições e complexidades, que é rara de encontrar, mesmo em pessoas de carne e osso. Sendo um poeta, um artista - escudo usado por muitos para não encarar a vida de frente -, Cyrano, ao longo da peça, provará inúmeras vezes que não é um homem feito apenas de palavras, mas de ações. E se estas, às vezes,parecem tolas, são também as mais nobres que se poderiam esperar de um herói.
Os efeitos desse livro sobre mim são dos mais duradouros. A exemplo de Ana Terra, Cyrano foi mais um personagem que resvalou das minhas memórias de leitora para meu trabalho de ficcionista. Uma leitura atenta de O Jogo do Equilíbrio (vejam ao lado) ou de qualquer outro conto ou romance em que apareça Cyprien de Pwilrie mostrará traços do espadachim no saltimbanco, do poeta no contador de histórias, sem falar no cavanhaque e no nariz proeminente. Cyprien tem até mesmo um amigo padeiro, cuja filha é a narradora do livro, ainda em projeto, que conta a vida do Mestre das Sete Artes. E por acaso ou ato falho ela se chama... Roxanne. ;)
Espero não precisar explicar que nada disso foi proposital, assim como não o é o vôo das águias comandadas por Kieran de Scyllix (herói da trilogia do Castelo das Águias, que escrevo atualmente), que atravessam o campo de batalha para levar mensagens à mulher e à irmã do mago. Quem já leu alguma coisa da minha ficção deve concordar (assim espero!) que ela não é uma simples colagem de referências. No entanto, como já disse várias vezes, acredito que todos os escritores têm uma "bagagem" na qual entram elementos da memória, tanto a intelectual quanto a afetiva, e que, conscientemente ou não, se valem desses elementos em seus textos. Érico Veríssimo expôs muito bem a situação quando constatou que o nome do seu famoso "capitão" era o mesmo do Cid Campeador, Rodrigo Díaz de Bivar: uma peça pregada pela memória, disse ele. E, apesar disso, ninguém pode negar a Rodrigo Cambará uma (intensa) personalidade própria.
Quanto a mim, fico feliz por ver, nos atos do sombrio e lealíssimo Kieran, no panache inquebrantável de Cyprien, um pouco desse Cyrano que tanto me fascina. Talvez eu me identifique com ele também, não no heroísmo (sou uma borra-botas: todo mundo sabe), não na capacidade de renúncia, mas no amor à vida e às palavras. Na medida do possível, procuro unir essas duas paixões: é por isso que falo tanto, que escrevo tanto. E no final - que eu espero seja mais feliz que o de Cyrano - é disso que vão se lembrar quando falarem de mim.
Um grande abraço a todos,
Até a próxima!
Ana
quinta-feira, maio 04, 2006
As Horas e os Livros ou Um Dia na Vida de Ana
Pessoas queridas,
Em primeiro lugar, quero agradecer o carinho de todos e tranqüilizar os que ficaram preocupados. As coisas já estão sob controle no que concerne à saúde de minha mãe e outros familiares. A vida, porém, anda mais corrida que nunca, e não encontro a calma e o ambiente propícios a escrever tanto quanto gostaria. Nem posso escrever as coisas que gostaria: não tenho conseguido me concentrar. No entanto, é nessas ocasiões que a gente mais precisa rir de si mesmo... e, por isso, reservei uns instantes para listar os livros cujos títulos podem ilustrar o meu cotidiano.
Eis um dia de semana típico:
- Acordando, às 6 da matina: Não Despertem os Mortos
- Ida de Niterói para o Rio na hora do rush: Auto da Barca do Inferno
- Manhã de "trabalho" na BN: A Farsa da Boa Preguiça
- O Verão carioca ao meio-dia: O Sol é Para Todos
- Gastando o que não posso na feira do livro: Amor de Perdição
- Tarde na BN, escamoteando (como agora) meus escritos entre os trabalhos de rotina: Uma Vida em Segredo
- À noite, fazendo Luciana dormir: A História Sem Fim
- O tempo de vida útil que me resta ao final do dia: Os Sete Minutos
.....
Riam ou chorem, como quiserem... mas, no momento, é por aí.
Abraços a todos,
Ana Lúcia
Em primeiro lugar, quero agradecer o carinho de todos e tranqüilizar os que ficaram preocupados. As coisas já estão sob controle no que concerne à saúde de minha mãe e outros familiares. A vida, porém, anda mais corrida que nunca, e não encontro a calma e o ambiente propícios a escrever tanto quanto gostaria. Nem posso escrever as coisas que gostaria: não tenho conseguido me concentrar. No entanto, é nessas ocasiões que a gente mais precisa rir de si mesmo... e, por isso, reservei uns instantes para listar os livros cujos títulos podem ilustrar o meu cotidiano.
Eis um dia de semana típico:
- Acordando, às 6 da matina: Não Despertem os Mortos
- Ida de Niterói para o Rio na hora do rush: Auto da Barca do Inferno
- Manhã de "trabalho" na BN: A Farsa da Boa Preguiça
- O Verão carioca ao meio-dia: O Sol é Para Todos
- Gastando o que não posso na feira do livro: Amor de Perdição
- Tarde na BN, escamoteando (como agora) meus escritos entre os trabalhos de rotina: Uma Vida em Segredo
- À noite, fazendo Luciana dormir: A História Sem Fim
- O tempo de vida útil que me resta ao final do dia: Os Sete Minutos
.....
Riam ou chorem, como quiserem... mas, no momento, é por aí.
Abraços a todos,
Ana Lúcia
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