segunda-feira, maio 15, 2006

C de Cyrano

Oi, Pessoas! Tudo bem?

Hoje - finalmente - prossigo com a série Memórias de Leitura. E falo de um personagem que me é muito caro: Cyrano de Bergerac, protagonista da peça do mesmo nome, escrita por Edmond Rostand no finalzinho do século XIX.

Para começar, tenho que contar um segredo: só muito recentemente vim a saber que existiu um Cyrano de verdade. Só que ele é mais antigo: viveu no século XVII, e foi autor de obras de cunho científico e satírico, como Voyage Dans la Lune. Hoje, os estudiosos o considreram um dos precursores da Literatura Fantástica, gênero no qual eu também escrevo. Mas o principal motivo pelo qual eu gosto de Cyrano não é esse, e sim o retrato (certamente não muito fiel) que dele fez Rostand em sua obra.

A primeira versão desse livro que tive em mãos era recontada em forma de prosa, numa brochura das Edições de Ouro. Na época - eu teria uns nove ou dez anos - havia uma livraria da editora perto da minha casa, e era onde eu gastava a maior parte da minha mesada (a prova? Pelo menos mais três livros saídos de lá vão ser comentados em futuros posts desta série). O Cyrano, porém, não foi comprado por mim, e sim "herdado" de meu pai, ou talvez meus irmãos, assim como os livros de Emílio Salgari e a versão recontada de algumas peças de Shakespeare. E, pelo menos para a "rata de biblioteca" que sou eu, não podia haver herança melhor.

Uma coisa bem curiosa de que me lembro é que, na primeira leitura que fiz de Cyrano, a cena que melhor ficou gravada em minha memória não era protagonizada pelo herói, e sim por Ragueneau, o confeiteiro com alma de poeta (se não me engano, tecia odes aos seus bolinhos), que fornecia quitutes grátis aos amigos em troca de um minuto de atenção. Claro que era por interesse que aplaudiam o pobre homem, e eis o porquê de eu não simpatizar com eles e sim com o confeiteiro. Quem escreve quer ser lido e/ou ouvido, e essa sede às vezes nos faz passar por situações bizarras. Às vezes até nos humilhar, voluntária ou involuntariamente. Porém, todas as agruras são esquecidas quando achamos alguém que, mesmo por um instante, nos concede atenção e apreço genuínos. Eu consegui isso, algumas vezes, ao longo dos anos, e suponho que também Mestre Ragueneau. Afinal, ele leva vantagem sobre mim, que não sei assar bolinhos.

Ragueneau - essa é outra informação recente - se baseia num padeiro que existiu de fato, enquanto Roxanne, a amada de Cyrano, foi composta a partir de duas mulheres. Uma delas foi casada com Christophe (e não Christien) de Neuvilette, e seu amor deve ter sido verdadeiro, já que, após a morte do marido, ela se retirou para um convento. Se Savinien Cyrano de Bergerac - o da vida real - chegou a visitá-la aí, não sei dizer. Mas o Cyrano, personagem de Rostand, fez isso até o fim do percurso daquele amor sofrido, cheio de atos de um heroísmo que emociona, não pela bravura do herói, mas pela renúncia e desprendimento de que está imbuído. Ao se fazer passar por Christien para fazer a corte, ao arriscar a vida, todos os dias, passando entre as linhas de fogo para entregar cartas a Roxanne, Cyrano não tem esperanças de vir a ser amado, mas, ao contrário, se esforça para fazer com que a jovem se sinta amada e seja feliz.

É claro, na vida real não se vê muito dessas coisas. Para a mentalidade de hoje, elas devem parecer estranhas e até meio doentias. Afinal, todos estamos cansados de ouvir que devemos amar, primeiro, a nós mesmos, e buscar o que é melhor para nós. Mas mesmo assim não consigo me convencer de que Cyrano, ao trabalhar em prol de Christien, não era também feliz, embora de uma forma tortuosa: feliz não apenas por proporcionar felicidade a Roxanne, mas porque, conhecendo seu papel naquele romance, este o fazia se sentir tremendamente satisfeito consigo mesmo.

Isso porque Cyrano, embora acreditasse que Roxanne não poderia amá-lo, amava a si mesmo, e amava a vida, por mais que ocultasse tristezas por trás do seu penacho. As bravatas que fazia, até mesmo em seu declínio ("Hoje comi carne!" afirma ele a uma religiosa, na sexta-feira em que a carne era interdita, quando na verdade não tinha dinheiro para uma refeição) -, a relação com os companheiros de guerra, a resposta rápida, a capacidade de fazer troça de si mesmo, tudo isso denota um grande prazer de estar vivo. Mais que isso: uma humanidade, com todas as imperfeições e complexidades, que é rara de encontrar, mesmo em pessoas de carne e osso. Sendo um poeta, um artista - escudo usado por muitos para não encarar a vida de frente -, Cyrano, ao longo da peça, provará inúmeras vezes que não é um homem feito apenas de palavras, mas de ações. E se estas, às vezes,parecem tolas, são também as mais nobres que se poderiam esperar de um herói.

Os efeitos desse livro sobre mim são dos mais duradouros. A exemplo de Ana Terra, Cyrano foi mais um personagem que resvalou das minhas memórias de leitora para meu trabalho de ficcionista. Uma leitura atenta de O Jogo do Equilíbrio (vejam ao lado) ou de qualquer outro conto ou romance em que apareça Cyprien de Pwilrie mostrará traços do espadachim no saltimbanco, do poeta no contador de histórias, sem falar no cavanhaque e no nariz proeminente. Cyprien tem até mesmo um amigo padeiro, cuja filha é a narradora do livro, ainda em projeto, que conta a vida do Mestre das Sete Artes. E por acaso ou ato falho ela se chama... Roxanne. ;)

Espero não precisar explicar que nada disso foi proposital, assim como não o é o vôo das águias comandadas por Kieran de Scyllix (herói da trilogia do Castelo das Águias, que escrevo atualmente), que atravessam o campo de batalha para levar mensagens à mulher e à irmã do mago. Quem já leu alguma coisa da minha ficção deve concordar (assim espero!) que ela não é uma simples colagem de referências. No entanto, como já disse várias vezes, acredito que todos os escritores têm uma "bagagem" na qual entram elementos da memória, tanto a intelectual quanto a afetiva, e que, conscientemente ou não, se valem desses elementos em seus textos. Érico Veríssimo expôs muito bem a situação quando constatou que o nome do seu famoso "capitão" era o mesmo do Cid Campeador, Rodrigo Díaz de Bivar: uma peça pregada pela memória, disse ele. E, apesar disso, ninguém pode negar a Rodrigo Cambará uma (intensa) personalidade própria.

Quanto a mim, fico feliz por ver, nos atos do sombrio e lealíssimo Kieran, no panache inquebrantável de Cyprien, um pouco desse Cyrano que tanto me fascina. Talvez eu me identifique com ele também, não no heroísmo (sou uma borra-botas: todo mundo sabe), não na capacidade de renúncia, mas no amor à vida e às palavras. Na medida do possível, procuro unir essas duas paixões: é por isso que falo tanto, que escrevo tanto. E no final - que eu espero seja mais feliz que o de Cyrano - é disso que vão se lembrar quando falarem de mim.

Um grande abraço a todos,

Até a próxima!

Ana

Um comentário:

Astreya disse...

Ai, que texto lindo Ana! Eu também sempre amei o Cyrano. Li uma versão em prosa curtinha do livro, quando era bem novinha, e essa foi uma das histórias que minha mãe me contou também. Acho a história linda! E realmente é interessante como a gente coloca traços de histórias que gosta no que escreve sem perceber, né?