sexta-feira, junho 15, 2012
Ainda Centauros
Já quase ninguém vê, mas acredite: aqui há centauros. Não como antigamente, não, claro que não é a mesma coisa. Naquele tempo eles eram muitos e andavam por aí à vista de todos orgulhosos e de cabeça erguida, como quem não deve a ninguém. Na verdade, talvez pensassem o contrário: os homens é que estavam em dívida. Eles é que tinham vindo de longe e se instalado, com seus filhos e rebanhos, no vale em que os centauros galopavam desde o início dos tempos. E que continuou a lhes pertencer, pelo menos durante algumas gerações, até que nossos bisavós os ocupassem com vinhedos e bosques de oliveiras.
Quando eu era menino, pastoreando as ovelhas de meu avô, era comum encontrar em meu caminho grupos de centauros. Por essa época eles já não corriam pelo vale com frequência, evitando conflitos com os lavradores que os queriam longe dos campos recém-plantados. Agora, seus cascos só pisavam as pedras e a grama áspera do monte, e os pastores seguravam seus cajados com força quando percebiam o som.
Não que tivéssemos motivo para temer os centauros. À exceção de umas poucas lavouras destruídas pelo tropel, não tinham feito mal a ninguém. No entanto, suas caras assustadoras – com olhos enviesados e dentes afeitos a triturar carne crua – e os braços poderosos, de veias como cordas de arco, eram o bastante para que os quiséssemos longe de nossas vistas. E poucos anos depois surgiram os rumores: histórias que não presenciáramos, que não sabíamos sequer se verdadeiras, mas que ainda assim fizeram crescer o medo e a desconfiança. Em uma terra distante, ouvimos contar, centauros tentaram raptar a noiva de um rei; uma batalha se seguiu e foram justiçados, mas, num monte vizinho ao nosso, outro bando se apoderara de mais que uma pastora de ovelhas. O que fariam conosco, perguntávamo-nos, se cruzássemos com eles quando estivessem cheios de vinho?
A ideia era tão terrível que nem ousávamos responder em voz alta. Felizmente, o medo não pairou sobre nossas cabeças por mais que algumas estações: de um e de outro lado, pela boca de aedos e mensageiros que percorriam toda a Hélade, chegaram notícias sobre os heróis que, em guerras ou combates singulares, estavam exterminando toda a raça dos centauros. E que tinham jurado acorrer, com suas armas e a proteção divina, em defesa dos homens que se vissem à mercê daquelas bestas terríveis.
Então – na verdade não sei bem como as coisas se desenrolaram. Pode ser que algum daqueles heróis tenha estado no vale, sem que tenhamos chegado a vê-lo, e afugentado a maior parte dos centauros. Ou talvez tenham sido eles que, pondo-se a par das ameaças, decidiram abandonar o monte e se isolar em terras ainda mais remotas. De qualquer forma, raramente foram vistos desde então; e nunca mais, pelo que sei, nestes últimos anos.
Mas o que posso lhe dizer, por toda uma vida passada a ler os sinais, é isto: sim, aqui há centauros. Ainda se ouve muito ao longe o som de seus cascos nas noites sem lua. E se você persistir talvez chegue a vê-los, caminhando de olhos no céu, a procurar, talvez, a morada que os homens e os deuses lhes negaram sobre a terra.
Lendo as sugestões para o "Bestiário", decidi postar na Estante este miniconto. Eu o escrevi em 2010 para um desafio do grupo "Fábrica dos Sonhos", no qual o tema "Centauros" devia ser desenvolvido em no máximo 550 palavras.
A ilustração é um detalhe do quadro "Batalha dos Centauros e Lápitas no Casamento de Hipodâmia", de Karel Dujardin (1667).
Espero que gostem e comentem!
Assinar:
Postar comentários (Atom)
3 comentários:
Que conto lindo, Ana. Triste, pois conta uma história bem verdadeira, apesar de falar de uma criatura mitológica. Mas lindo!!
Obrigada. Na verdade penso em um conto mais longo sobre um centauro. Mas não sei se será adulto ou juvenil e nem pensei na história.
Gostei muito deste conto Ana!
Mesmo com a restrição de palavras seu texto conseguiu criar uma ambientação perfeita para a história dos centauros. Parabéns!
Postar um comentário