terça-feira, agosto 23, 2011

Na Travessia (3)



Quando ela chega à estação, eles já estão lá.

O estranhamento é imediato, não por jamais ter conhecido outros de sua espécie, mas porque não esperava que viessem nesta época do ano. Desde a infância, ela se acostumou a vê-los no verão, suando em grossas gotas multicores que mancham os assentos na travessia. Agora é inverno, e as cores parecem muito vivas em seus corpos e pêlos empastados.

O que vai à frente é todo cinza, a pele com uma textura como se houvesse rolado sobre cimento fresco. Pouco atrás, uma fêmea alaranjada acompanha um macho cujo torso é rajado de preto e branco, à maneira das zebras. Eles se acomodam num canto, as cabeças unidas, trocando sussurros rápidos que ela não pode, nem procura ouvir. As pessoas passam sem se deter, às vezes lhes lançando um olhar rápido, mas sempre evitando cuidadosamente o contato visual. Cuidado desnecessário: pelo menos por agora, eles se esqueceram do que têm à sua volta, se descuidaram da missão, imersos uns nos outros e em seu próprio universo.

Então, quando a embarcação está prestes a partir, um deles entra apressado pela porta traseira. É um macho de pêlo preto e longo, a pele azul sobre a qual foram pintados símbolos em branco. Ao contrário dos demais, está sozinho e caça por sua conta, o que o torna um predador mais atento e potencialmente perigoso. De pé, diante das pessoas encolhidas em seus assentos, ele procura aquela que lhe parece mais vulnerável – e como acontecera tantas vezes, é a ela que escolhe para ser sua primeira presa.

- Oi, tia. Dá uma força? Qualquer moedinha – pede. Ela sorri, sem se importar com o tratamento: já vinte anos se passaram desde que esteve onde ele está agora. E, claro, vai ajudar. Pescada no bolso do jeans, a moeda é a primeira no copo de plástico, ao que o rapaz agradece com um “valeu” e um sorriso no rosto lambuzado de azul.

- Tá parecendo o Avatar – ela adivinha a referência.

- É, tem a ver – ri ele, afagando o peito onde se leem as letras U – F – F.

E, simpatizando com a "tia" anônima, confidencia com orgulho:

- Passei pra Cinema.

2 comentários:

Arlequina disse...

Amei.

É um puta orgulho que dá na gente.

;) Saudades das nossas conversas, moça-'tia'. =D

Vânia Vidal disse...

É Ana... só de pensar que passei por isso três vezes: na primeira, tínhamos que ir todos de verde limão; na segunda, doar sangue, e como eu não tinha peso para tal, ganhei outras atribuições como trabalho voluntário no centro acadêmico; e na terceira eu simplesmente não me lembro, mas acho que alguém entrou pela janela...

Adoro quando eles dizem: passei para x
Quando passei no vestibular pela primeira vez, eu disse: - nunca mais farei isso. Pois fiz mais três vezes. Passei em todas, mas nunca pedi moedas...eita vida injusta!
bjs