quinta-feira, setembro 15, 2011

Crônica das Últimas Luas

Dias antes da sua viagem, você é convidada para participar de uma antologia. O tema não é bem seu forte, mas é interessante; a organizadora é sua amiga e há bons escritores com nomes já confirmados. Você aceita, mas, como tem trabalhos mais urgentes, apenas faz uma anotação no seu caderno, na página tantas vezes recopiada onde anotou seu cronograma. Vai tratar disso no final de agosto, quando faltar um mês para o prazo de entrega. Ao fim e ao cabo não deve ser um texto longo.

Você se esforça para entregar três contos antes de partir. Um deles é seguramente um dos melhores que já escreveu, os outros saíram a contento. Você viaja levando um caderno onde espera tomar notas para futuros trabalhos, mas, como de outras vezes, acaba por usá-lo apenas como diário de viagem. E além das paisagens que vê, das sensações e reflexões que surgem no caminho, escreve sobre o evento que irá se desdobrar, tingindo os próximos meses, e talvez toda a sua vida, de matizes inesperados.

Mas você volta e vê os primeiros prazos acenando logo à frente. Há um conto para escrever, que exige bastante pesquisa, e três artigos onde fala do que conhece, mas numa linguagem que deve ser entendida por diferentes públicos. Você lê, rascunha, adapta e reescreve, tentando se ver no lugar do outro, ler através dos olhos aos quais se destinam suas palavras. Em meio ao processo, passa um tempo entre seus pares, editores, ilustradores, escritores, principalmente escritores. Eles falam de seus fracassos e vitórias, contam seus planos e exibem publicações, e você volta convencida de que as coisas são assim mesmo.

O conto é concluído na dilatação do prazo, sem tempo para revisões. Uma amiga a elogia, outra diz francamente que é a pior coisa que você já lhe deu a ler. Isso te abate, mas você tem os artigos para terminar, um curso para preparar e divulgar enquanto faz malabarismos com sua vida familiar e o emprego de que gosta, mas que lhe rouba tantas e tão preciosas horas. E, como resta quase um mês para entregar o próximo conto da lista, é quase com alívio que você tira umas férias do fazer literário.

Os dias correm entre muitas leituras, muitos filmes e a revisão dos artigos. Chega a Bienal; você não se anima a fazer o longo percurso, evita ler as mensagens sempre eufóricas dos amigos nas redes sociais, vim, vi, venci. Você se sente meio pária porque não está produzindo, é um momento de suspensão daqueles que tanto odeia, embora saiba que são normais e talvez mesmo necessários. Uma preocupação é eliminada, outra persiste; novos convites surgem, há gente com quem precisa falar e assuntos que deve resolver, de forma que, no fim, restam sempre interrogações.

Você consulta o cronograma e morde o lábio ao ver tão perto a data da entrega do próximo conto. A ideia inicial surgiu há tempos, mas ainda é preciso trabalhá-la, pensar no enredo e nos personagens que cercarão o seu profeta relutante. Ignorando o apelo dos livros e filmes, o ruído das obras em casa e a sua própria insegurança, você começa a pesquisar, a rabiscar um roteiro, tentando encontrar aquela chama que dará vida à história que quer contar. Não é sem preocupação que o faz, pois o tempo não para, e a sua veia ficcional pulsou bem pouco nos últimos tempos. E mais de uma vez – você se lembra – ela secou durante anos.

Você contempla as anotações que fez para tornar o conto plausível. Por mais que tente, não consegue deixar de pensar que faltam apenas dez dias e você não sabe o que escrever; que ao fim desse tempo talvez você precise admitir que dali não sairá nada, que chegou ao seu ponto alto e não adianta prosseguir, pois o que escrever a partir de agora nunca será tão bom. É o que você diz a si mesma quando fecha seu caderno. E ao se deitar refugia-se em pensamentos que passam longe desse quadrante da sua vida.

Então, de manhã, seus personagens estão à espera. São deles os rostos que você vê tão logo abre os olhos. Sob o chuveiro, ainda acabando de acordar, escuta nitidamente suas vozes, frases inteiras que dirão no conto e que, à medida em que as puser no papel, irão revelando suas motivações. Você toma seu café da manhã com o caderno aberto, anotando, registrando, aceitando com gratidão esse presente, o pão e o sal da sua história. Que ainda não escreveu, que ainda demandará muito esforço para ser completada, mas que, agora, já brilha dentro de você como uma chama viva.

E é nesse instante – justamente nesse instante – que tudo volta a valer a pena.

3 comentários:

Vânia Vidal disse...

É por momentos como esses (todos eles) explicitados por você, com todas as respectivas reflexões e aprendizados - e colocando nisso as vitórias, e as derrotas - que vivo, que vivemos todos.

"Então, de manhã, seus personagens estão à espera. São deles os rostos que você vê tão logo abre os olhos. Sob o chuveiro, ainda acabando de acordar, escuta nitidamente suas vozes, frases inteiras que dirão no conto e que, à medida em que as puser no papel, irão revelando suas motivações (...)"

Quando meus personagens vêm me visitar sei que estou viva, que a veia ficcional pode ficar fraca, bem fraca, mas pulsará enquanto não deixar a desdita dessa vida para morrer, dormir, talvez sonhar... e continuar a contar estórias eternamente, como deve ser uma estória bem contada... Sempre.

Achei sua crônica, que ontem você julgou "aprisionada", tão bonita, tão jovial, tão escorreita que não entendi o grilo de ontem.

bjos
V.

Tânia Souza disse...

Ana, seu texto falou como poucos ao meu coração, lembrei de algo que sempre comento com meus alunos, sobre o porquê de gostar tanto de literatura, eu digo, " em algum lugar, alguém escreve palavras que poderiam ser minhas, ou então; que sabem de alguma essencia dentro de mim que, por vezes, eu nem sabia; em algum lugar, alguém dedilha a alma humana" e sem exagero, entendo tão bem o que você diz e, ao mesmo tempo, admiro a forma como escolheu dizer. Ótimo texto.

Arlequina disse...

Amei, Ana! =)

Quem sabe um dia eu tenha contos pra serem entregues no prazo, mas tomar café da manhã com meus personagens é algo já está se tornando algo quase (quase, eu disse) habitual.

Beijos!