quarta-feira, março 29, 2006

B de Bastian



Show no fear, for she may fade away.
In your hands the birth of a new day
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Oi, Pessoas! Tudo bem?

Finalmente, acabo de me sentar para escrever o segundo post do "Dicionário das Memórias de Leitura". Para quem não sabe, essa é uma série de posts acerca de livros que li entre os 4 e os 20 anos, alfabetado de acordo com um dos personagens da obra. A proposta é escrever apenas com base no que li na época (ou mais tarde, em releituras), sem recorrer a nenhum exemplar da obra e muito menos a críticas ou resenhas de outras pessoas... e, principalmente, escrever sobre o impacto que o livro teve em mim, o qual, em alguns casos, tem conseqüências até hoje.

O livro de que venho falar está num desses casos. Trata-se de A História Sem Fim, obra-prima (a meu ver) de Michael Ende, cujo protagonista é o Bastian citado no título. Bastian Baltazar Bux, um menino solitário, que menos compreende a si mesmo do que é incompreendido, e que não resiste à tentação de "pegar emprestado" um livro na loja do misterioso Sr. Koreander. Na capa, uma serpente que morde a própria cauda: o Ouroboros alquímico, relativo ao eterno retorno. O título: A História Sem Fim, o mesmo do livro de Ende, no qual vemos se fundirem a experiência de leitor de Bastian e as aventuras do herói da obra lida por ele.

No livro que Bastian lê - ou melhor, devora - , um reino denominado Fantasia está desaparecendo velozmente, e sua salvação está nas mãos de um jovem caçador chamado Atreiú. Este passa por toda sorte de provas e peripécias, acompanhadas por Bastian com o coração aos pulos e os olhos arregalados... até chegar à conclusão de que Fantasia deve recomeçar do ponto de partida, e que este depende da intervenção de uma criança humana. Bastian continua a ler, com ansiedade cada vez maior, à medida que os leitores externos vão vendo cada vez mais imbricadas as partes do livro que tratam dele e de Atreiú. Na verdade, a partir de certo momento, os trechos, compostos em cores diferentes (em verde para Bastian, em vermelho para Fantasia, na minha edição da Martins Fontes), começam a ser complementares um ao outro, e tal é a habilidade de Ende que, quando se percebe que a criança que todos esperam em Fantasia é o próprio Bastian, a própria noção de se estar diante de duas histórias paralelas praticamente já desapareceu. Um trabalho magistral de escrita... que, no entanto, está apenas começando.

Não vou adiantar o desfecho dessa primeira parte, a qual, aliás, foi adaptada para o cinema, na década de 80 se não me engano. Por causa desse filme, todos conhecem o Dragão da Sorte (o do cinema lembra um pouco um cachorro), o Monstro que Come Pedras, a Imperatriz Criança e outros personagens. O que poucos sabem é que o livro não termina daquele jeito, e muito menos naquele ponto; e a sua continuação nada tem a ver com as duas (atrozes) seqüências que a obra ganhou nas telas.

Na segunda parte do livro, após ter salvo Fantasia da destruição (ninguém duvidava, né?), Bastian é convidado a formular uma série de desejos, a partir dos quais aquela terra mágica vai sendo reconstruída e reinventada. No entanto - a exemplo do que acontece com os irmãos de Wendy e os Meninos Perdidos, em Peter Pan - cada um daqueles desejos vai apagando a verdadeira identidade de Bastian, fazendo-o esquecer de seu pai, de seu passado, de sua vida enfim no mundo que podemos chamar "real". Recuperar a memória e a identidade, a partir do único elo que sobrou, é um trabalho difícil, mas finalmente ele consegue - e volta para seu próprio universo, deixando que Atreiú, desde sempre habitante de Fantasia, viva por ele as aventuras que lhe restam por viver.

Isso é o que me lembro do livro que li aos 17 anos - e que, curiosamente, nunca reli, embora hoje o considere meu livro preferido, o que afirmo tranqüilamente sempre que me perguntam. Isso porque, sem falar na qualidade literária - a d´A História Sem Fim é superior à maior parte dos livros que já li, em todos os gêneros, e olhem que são muitos - essa obra foi uma espécie de "sacudida", ou melhor, de "despertar" para a pessoa que eu era, para o que vinha fazendo e para o rumo que queria dar à minha vida.

Quem leu minha autobiografia ou a contracapa dos meus livros sabe: eu conto histórias desde que me entendo por gente. Isso é uma verdade: eu sempre fiz isso, gosto de fazê-lo, acho que sempre farei, independente da minha profissão ou ocupação naquele momento. Mesmo nos períodos mais áridos, em termos de produção literária, nunca deixei de criar histórias e, sempre que possível, contá-las, o que me valeu ser rotulada de “louca”, “infantil” e até mesmo “esquizofrênica” em diversas ocasiões. A alegação era a de que eu “vivia em outro mundo” e “não separava a fantasia da realidade” coisa que hoje, olhando para trás, posso afirmar com naturalidade que não acontecia. Ao contrário de Bastian, creio que nunca corri o risco de perder meu elo com o “mundo real”. Não. O risco que eu corri foi, isso sim, o de cercear minha criatividade, abdicando de tudo que havia de original em mim pelo desejo de ser “igual às outras pessoas”.

Claro que com isso não estou afirmando que era, ou que sou, melhor do que ninguém. Acredito, isso sim, que cada pessoa tem um potencial a ser desenvolvido, e que existem vários tipos de inteligência e de talento cuja expressão às vezes faz de nós uns tipos gauches na vida. Muita gente é como eu, é verdade, e nestes últimos anos tenho conhecido vários. Mas houve um tempo em que não conhecia – e que o fato de escrever, contar e até mesmo gostar de ler histórias, especialmente do gênero fantasia, me afastou das pessoas com quem eu queria conviver. Naquele tempo o gênero era pouco divulgado, não havia uma Internet que unisse as pessoas com os mesmos interesses, e praticamente ninguém com quem eu pudesse trocar idéias. Mais tarde tive uns poucos amigos que jogavam RPG e que não me achavam tão maluca. Mas eles não eram escritores. E não tinham tempo nem interesse em ler os meus originais, até porque não sou nenhum talento precoce. Eu tinha boas idéias, acho. Mas escrevia muito mal mesmo.

Na época em que li A História Sem Fim, eu passava por um momento de crise e de muitas indagações a esse respeito – se valia a pena continuar, se eu estava perdendo tempo, se era possível que um dia escrevesse alguma coisa que prestasse e principalmente se alguém ia gostar daquilo (sim, eu já queria um público, embora ainda não pretendesse tornar a escrita minha principal ocupação. Não tenho vergonha de confessar isso). E não sei dizer exatamente no que aquele livro me tocou, mas A História Sem Fim me fez ter uma espécie de insight : a consciência de que um mundo fantástico, maravilhoso, existia dentro de mim, e que eu podia criar o que quisesse, desde que (como Bastian faz no final) respirasse fundo e enfrentasse os problemas que existiam “lá fora”.

Os meus tinham a ver com me amar e respeitar a mim mesma pelo que eu era, e buscar aquilo que eu queria, sem abrir mão do meu jeito próprio de ser.

E – como sabe quem me conhece – foi o que eu fiz.

Danke schön, Herr Ende!

A vocês - até a próxima!

Ana Lúcia

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Lines that keep the secrets will unfold behind the clouds.
There, among the rainbow,
Is the answer to a never ending story.

terça-feira, março 14, 2006

Retalhos de Prosa Solta

Oi, Pessoas, tudo bem?

Enquanto o próximo post literário não fica pronto, e atenta à possibilidade de uma greve dos servidores federais - se houver, como estou sem micro em casa, terei que recorrer às Lans - , resolvi deixar aqui alguns dedos de prosa solta. Só para registrar minha passagem pela Estante... que eu freqüento sempre que posso, é claro, para ler e me alegrar com os comentários. É bom saber que, embora relapsa para escrever e visitá-los, ainda tenho o carinho dos meus amigos.

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Bom, pra começar, um pouco sobre a viagem. Foi tão legal quanto eu imaginava, ou até mais. A serra gaúcha é seguramente um dos lugares mais lindos do Brasil, e à beleza natural se somam atrações maravilhosas que o povo criou por lá. A preferida da Luciana: o Labirinto de arbustos, na praça central de Nova Petrópolis, onde erramos entre sebes de 2 metros de altura até encontrar o centro. A minha: o Mundo a Vapor, na estrada para Canela, onde, entre outros modelos que funcionavam perfeitamente em pequena escala (olaria, usina, locomotiva...), visitamos a menor fábrica de papel do mundo. É incrível ver onde podem chegar o talento e o engenho de algumas pessoas!

Por falar em pessoas, tive o prazer de conhecer uma que, nos últimos meses, se tornou para mim muito querida: Adriana Paz, a "Drix", portoalegrense com quem travei contato através do Orkut e que hoje participa do blog-RPG baseado nos meus livros sobre o Castelo das Águias. O tempo que passamos juntas foi curto, pois ela só ficou em Gramado durante o Carnaval, mas foi o bastante para fortalecer o meu carinho pela Drix. Foi realmente um privilégio conhecê-la.

Lamento não ter podido, também, finalmente, conhecer o meu caro
Milton. É o terceiro desencontro, pois ele já esteve duas vezes no Rio e também não nos vimos. Mas sei que um dia há de acontecer.

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Pois bem, cheguei e tudo estava como antes. Ou quase: o Exército tinha ocupado algumas favelas do Rio,operação que durou cerca de dez dias. As manchetes dos jornais de hoje dizem que as forças armadas estão se retirando, sem ter encontrado as armas que procuravam; que sua saída foi aplaudida pelos moradores e que o tráfico voltou com força total.

Com essa e outras manchetes (como a da greve, que pode incluir a Polícia Militar) estampadas nos jornais, vi, no centro de Niterói, três soldados agrupados em volta da banca, discutindo num tom muito sério. Aproximei-me, querendo saber. Estavam falando sobre a possível vinda do Ronaldinho para o Flamengo. Ah, tá.

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Mas eu estou sendo terrivelmente injusta com os rapazes. Também não me ocupo dessas notícias e sim da minha ficção. Um Ano e um Dia, livro 2 da trilogia do Castelo das Águias, vai indo devagar, mas bem. Nas horas vagas, tenho lido Doris Lessing: os dois volumes da sua autobiografia - Debaixo da Minha Pele e Andando na Sombra - levaram á releitura de alguns contos e à compra do livro que é considerado a obra-prima da autora, O Carnê Dourado. Esse ainda não li, mas a protagonista é, parece, uma escritora chamada Anna Wulf. Ana Lobo. Eu venho constatando que sou um Coiote, cada vez mais.

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A greve do ano passado "comeu" minhas férias, e a viagem ao RS me deixou no "vermelho" no banco de horas, mas mesmo assim sonho com muitas outras. Com a "veia ficcional" aberta, não me mexo para marcar cursos e palestras - já aprendi a não me preocupar com isso : é um ciclo - , então em vez disso planejo viagens, ou talvez fugas, se formos um pouco mais fundo na questão. As factíveis: litoral paulista, Bonito, Maceió. As menos prováveis: Patagônia, Sete Cidades. E os países nórdicos, que talvez fiquem só no sonho mesmo. Quem sabe?

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Assim, bem ou mal, vou seguindo o caminho. Não me deixo abater pela falta de perspectiva porque estou conseguindo escrever - não em todos os lugares, não muito aqui, mas no meu próprio universo fantástico. Não é sempre que essa porta se abre, por isso estou indo em frente, deixando que se acumulem projetos e saudades. De tudo que eu ainda não fiz. De tudo (e todos) que eu ainda não vi.

Abraços pra vocês,

Até a próxima!

Ana

terça-feira, fevereiro 21, 2006

As Estranhas Manias de Ana: um Elo na Corrente

Oi, Pessoas! Tudo bem?

Este post deveria dar continuidade à série de memórias literárias, mas admito que não tive tempo nem inspiração para escrevê-lo. De qualquer modo, por mais disciplinada que eu fosse, teria de haver, necessariamente, alguns "desvios" ao longo do alfabeto; e, além disso, esta é a minha última oportunidade de escrever algo pelos próximos 12 dias, então... vamos agarrá-la!

Recebi, recentemente, uma daquelas "correntes" ou "brincadeiras" que circulam pela rede. Não costumo aderir a elas, mas essa é divertida: listar cinco das minhas manias, passando adiante a proposta para mais cinco pessoas. Isso, sinceramente, não sei se terei tempo de fazer, pois estou sem computador em casa e viajo amanhã, mas as manias... Essas eu dou a conhecer a vocês. Aqui estão elas, na ordem em que as lembrei:

Roer as unhas. Deve ser a mais antiga das minhas manias, as que estão aqui e as que não estão. Não me lembro das minhas unhas sem estarem roídas, não a ponto de tirar sangue, mas de forma a não deixar nem um pedacinho desgrudado da carne. Por isso, as pontas dos meus dedos são "rombudas", deformadas mesmo, e nunca em meus 37 anos de vida usei esmalte. Aliás, para quem não sabe, não uso maquiagem há quase vinte anos. Espero que isso não desencoraje os meus fãs.

Abrir a mochila toda hora, ou apalpá-la por fora, para ver se tudo continua lá. Algum tipo de mania doméstica tinha que substituir aquela (que eu nunca tive) de ficar pensando se fechei bem a porta ou apaguei as bocas do fogão a gás. O tempo todo, na rua, estou tocando em minha mochila para sentir o volume do chaveiro, da carteira, do caderno, do celular... e, quando posso, abro-a e esquadrinho tudo lá dentro. Ainda bem que não sou do tipo que carrega "o mundo dentro da bolsa"!

Anotar imediatamente, no canhoto do talão de cheques, todos os saques e débitos na minha conta. Mais uma questão de organização do que de economia, pois não anoto o dinheiro que vou gastando depois que o tirei. Só quero saber com certeza quanto tenho no banco. Tenho horror à idéia de ficar devendo alguma coisa.

Bisbilhotar comunidades do Orkut que nada têm a ver comigo. Os que já viram meu perfil sabem que quase todas as minhas comunidades são de leitores e escritores (também tem a das Mães que Trabalham Fora e mais umas poucas exceções à regra). O que não sabem é que eu gosto de bisbilhotar determinadas comunidades das quais jamais faria parte, só para ler as "crônicas da vida privada" que são contadas ali. Entre aquelas que visito com freqüência estão: Odeio Homem Pão Duro e Pão Duro Não, Sou Econômico (histórias ótimas, algumas de mulheres que querem ser "bancadas" - e usam todo tipo de argumento estúpido para isso - mas outras também de pessoas, homens e mulheres, que são incrivelmente "mãos-de-vaca", a julgar pelo que dizem); Meu Marido é Gringo (histórias muito bem-humoradas sobre o choque de culturas), Professores Sofredores, sobre as agruras da vida dos mestres modernos e muitas outras. É uma verdadeira Comédia da Vida Humana em pequenos relatos. E sempre posso usar a desculpa de ser uma escritora fazendo laboratório.

Ler o final dos livros antes de chegar lá. Pois é, eu leio. Nem sempre antes de começar, mas quando a trama já está esboçada. Não reclamem: esse é um dos direitos do leitor, conferido pelo mestre Daniel Pennac. E como criatura sensível e inteligente que sou, isso determina o uso ou não de outros direitos, que são o de pular páginas e - mais raramente - não chegar ao fim do livro, que é o que faço quando os personagens são artificiais e o fim é excessivamente piegas. Mas, num bom livro, ou mesmo num livro mediano, nada me alegra mais do que um final feliz. ;)

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Pessoas, meu post anterior foi sobre um livro que se passa no Rio Grande do Sul. Lá vou eu de novo para lá, mostrar à Luciana as belezas de Gramado e Canela e, se tudo correr bem, do cânion do Itaimbezinho. Não terei tempo de visitar vocês e não vou postar por umas duas semanas, pois só volto de viagem no dia 6 de março. Por isso, desejo a todos um excelente Carnaval, de folia ou de descanso, conforme preferirem... Até a volta!

Abraços a todos,

Ana Lúcia

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

A de Ana Terra

Oi, Pessoas! Tudo bem?

Estive por vários dias me preparando para escrever este post. Não no sentido acadêmico - não tomei notas, não li estudos ou resumos e, fiel ao que me propus, nem mesmo abri meu exemplar do livro -, mas sim no que concerne ao fator emocional. Isso porque o primeiro personagem desta série, a Ana Terra de Veríssimo, dá seu nome a uma obra que mexeu muito comigo, e que propiciou inúmeras descobertas e reflexões. Sem falar nas tentativas literárias, que foram um fracasso, mas importantes mesmo assim. Mas disso vou falar quando chegar a hora.

Meu primeiro contato com a obra de Veríssimo se deu através de Gente e Bichos, quando eu tinha seis ou sete anos, passou pelo Tibicuera e prosseguiu, previsivelmente, com Clarissa e Música ao Longe. Não tínhamos, então, os outros livros da série, nem tampouco O Tempo e o Vento, saga da qual Ana Terra faz parte. Mas, quando eu tinha dez ou onze anos, apareceram em casa - não sei se compradas ou oferecidas pela editora a meu pai, como acontecia naquela época - dez ou doze brochuras publicadas pela Globo de Porto Alegre. Algumas eram traduções, como o Admirável Mundo Novo de Huxley, mas a maioria era de autores gaúchos, e havia várias de Veríssimo. Ana Terra foi uma das primeiras que li, e uma das poucas leituras que compartilhei com minha irmã. Sorte a minha! Com tantos questionamentos, tanta emoção suscitada por aquele livro, o que seria de mim se não tivesse alguém com quem comentá-lo?

Ana Terra foi lido num só dia, mas relido inúmeras vezes, na íntegra ou não, até que eu assimilasse tudo que trazia de novo. Para começar, o universo era bem diferente do que eu conhecia, e minhas noções de tempo e espaço eram precárias, de forma que era tão fácil imaginar o pampa gaúcho do século XVIII quanto uma paisagem na Lua. O contexto histórico era completamente desconhecido - tudo bem, eu sei o que é um castelhano, mas e um continentino? - e o sentido de palavras como sanga, coxilhas e tordilho teve que ser decifrado. Por fim, seguindo a descrição do autor e umas poucas referências, acabei por conseguir visualizar uma imensa planície verde, com grama alta que o vento nunca cessava de fazer ondular. Nesse lugar selvagem, um tanto fantasmagórico, eu me encantei e me emocionei com a história de Ana, uma mulher forte e endurecida pela vida - para sobreviver, tinha que ser assim - mas que, no fundo, jamais perdeu sua ternura.

O livro e o personagem se prestam a muitas interpretações, a maior parte traçando um paralelo entre a história de Ana e a do Rio Grande do Sul - representando-a, enfim, como uma pioneira - mas nada disso fazia sentido para mim naquela época. O que me tocou, além da paisagem "mágica", foi a narrativa, fluente e sóbria e saborosa, e também as relações humanas, tão diferentes daquelas que eu vivia no dia-a-dia. Além disso, como era de se prever, eu me apaixonei por Pedro Missioneiro, e fiquei inconsolável quando ele morreu. Inconsolável e revoltada, pois, se ele sabia o que aconteceria, por que não fugiu com a Ana? E ela, por que aceitou que o pai e os irmãos o matassem? Eram perguntas que eu fazia a minha irmã e que ela respondia, vagamente, com argumentos a respeito da sociedade da época (quando estava com paciência) ou dizendo que o Pedro não batia bem da cabeça (quando não estava). De qualquer maneira, eu não me conformava com aquilo, e lia e tornava a ler os trechos em que aparece o casal - muitos dos quais sabia de cor, e sei até hoje -, imaginando que eles agiam de forma diferente e ficavam juntos.

E foi aí que eu comecei a escrever minha própria versão da história.

Não foi exatamente como uma fan fiction. Eu não usei os personagens de Veríssimo, apenas me inspirei neles para criar os meus. Algumas coisas ficaram - por exemplo, um dos protagonistas, meio índio como o Missioneiro, tinha também um punhal de prata - mas, de modo geral, eles se desenvolveram de forma independente. Modéstia à parte, criar personagens nunca foi o meu problema. Situá-los... bom, isso era mais difícil, ainda mais quando eu conhecia tão pouco sobre o tempo e o lugar. Mas eu estava empolgada e fui em frente. Em obras de referência e em autores como Simões Lopes Neto (de Contos Gauchescos e Lendas do Sul - aliás, outra daquelas brochuras), tentei conseguir um pouco mais de base para o que eu chamava de "romance histórico", e que era, na verdade, um tremendo folhetim, pessimamente escrito ainda por cima. Não lembro quem foram os primeiros personagens, nem como a história foi sendo construída, mas, para resumir, tratava-se de uma família - os Torres - que tinha uma estância em algum lugar no meio do pampa e que se envolvia em episódios da Guerra dos Farrapos. Naturalmente, li um pouco sobre a guerra, sobre o lugar, sobre os costumes, mas quaisquer pretensões de "realismo" desmoronavam diante dos diálogos e do roteiro. Nesse, eu me lembro, havia um pouco de tudo. Senhor apaixonado por escrava? Tinha. Filho que procurava mãe e mãe que procurava filho? Também. Gravidez indesejada? Tinha. Tinha tudo, no melhor estilo do novelão. Felizmente, nenhuma daquelas (literalmente) maltraçadas linhas sobreviveu à autocrítica. Juro que eu voltaria para puxar o pé do descendente que as publicasse!

A saga da família Torres ocupou meus pensamentos e minhas horas vagas durante cerca de três anos, mais ou menos dos onze aos quatorze. Nesse intervalo de tempo, li também a dos Terra-Cambará em O Tempo e o Vento, outras obras de Veríssimo e tudo quanto pudesse sobre cultura gaúcha, pela qual, aliás, tenho uma grande admiração até hoje. Em 1990, fiz uma viagem até lá - não às Missões, como teria gostado, mas à serra - e voltei apaixonada pelo lugar, como já era por sua literatura e folclore. Porém, a chave desse mundo, que tanto me fez sonhar, sempre esteve nas mãos de Ana Terra, com a qual me identifiquei desde a primeira leitura, embora fôssemos Anas muito diferentes uma da outra. Será por termos ideais parecidos, ou senso de clã? Ou será pela solidão que a personagem tinha dentro de si, por mais que estivesse cercada de pessoas, e que tanto se parecia com o meu sentimento de inadequação?

De qualquer forma, foi uma grande viagem a que se iniciou com Ana Terra - uma viagem da qual ainda não voltei. Hoje, escrevendo ficção, não acho que meu estilo lembre o de Veríssimo, mas que muitas vezes trechos de suas obras me vêm à cabeça, especialmente ao escrever cenas que envolvem sexo. Como ele, prefiro deixar as coisas insinuadas: acho que sofremos do mesmo pudor. E várias vezes me peguei em atos falhos, pondo no papel expressões e metáforas que saíram de Ana Terra e que me vêm naturalmente. Se não tomo cuidado, mais de um personagem meu acaba voltando para casa, como Ana, com a morte na alma. E isso é só para citar um dos casos mais flagrantes.

Por tudo isso, acho que deu para perceber como esse livro foi e ainda é importante para mim. Não tenho dúvida de que ele foi uma das melhores aquisições da minha bagagem, não só como leitora e escritora, mas em todos os sentidos. Correndo o risco de parecer naïve, fico feliz por Ana Terra começar com A: esse era o ponto de partida perfeito para as minhas memórias!

E a próxima etapa vai me levar de volta a uma das fontes do que hoje é o meu universo de fantasia. Espero que vocês estejam comigo!

Abraços a todos,

Até breve!

Ana Lúcia

sexta-feira, janeiro 27, 2006

Minhas Memórias de Leitora (preâmbulo)

Oi, Pessoas... Como estão?

Este blog é a confirmação de que resoluções de fim de ano não dão certo comigo. Eu terminei 2005 mais do que determinada a voltar ao pique inicial da Estante, postando pelo menos uma vez por semana e trazendo, além de notícias minhas, artigos, dicas literárias e quem sabe até alguns jogos. No entanto, Janeiro está quase no fim e este ainda é o primeiro post - e, o que é pior, um post por assim dizer "introdutório". Isso porque, ao longo dos primeiros meses, quero escrever uma série de textos sobre personagens e livros que li na infância e na adolescência, e uma lembrança puxa outra... e eu quero explicar o que vou fazer, deixando claro, especialmente, o critério que usei para dividir minhas memórias em duas partes.

No ano passado, além de escrever muita ficção, li bastante sobre o ofício (vamos chamar assim) de escritor e sobre a forma pela qual se adquirem subsídios para escrever. Em alguns casos, tem a ver com nossas próprias vidas - as pessoas com quem convivemos, os acontecimentos, as situações pelas quais passamos e as lições que tiramos disso -, mas, muito freqüentemente, seguimos o rastro de outros viajantes, inspirando-nos e recorrendo à nossa bagagem literária. Isso não significa ser menos original, nem que nos limitamos a recriar o que já foi feito. Cada um de nós é único, e todos acrescentam seu ponto. No entanto, a grande maioria dos escritores se compõe de pessoas que gostam de ler, e que incorporam ao seu universo matizes, imagens, idéias e palavras encontradas nas obras de outros autores. E, é claro... eu não sou uma exceção à regra, ainda mais por escrever fantasia, que muitas vezes se baseia em mitos, lendas e histórias de um imaginário coletivo e ancestral.

Refletindo sobre isso, e sobre o fato de que tenho comprado para minha filha novas edições de obras que li quando criança - as que não ficaram na estante desde aquele tempo - , decidi fazer uma brincadeira, listando, de A a Z, nomes de personagens de livros que eu tivesse lido nos meus primeiros anos. Por "primeiros" entenda-se aqui "os primeiros dezesseis": obras com que travei contato entre os quatro anos de idade, quando aprendi a ler, e os vinte, quando entrei na Universidade. Isso divide a exatamente ao meio a minha vida de leitora, e deve ser a melhor metade. Duvido que eu tenha lido tanta coisa interessante dos vinte e um aos trinta e seis!

Então, o que me proponho a fazer é dedicar um post a cada personagem - o que, é claro, levará à obra, ao autor e, principalmente, às minhas lembranças muito particulares acerca deles. Não serão resenhas, muito menos críticas, e vou me basear apenas naquilo que houver ficado retido na memória. No máximo pegar o livro para confirmar uma editora ou o sobrenome de um autor. Alguns dos posts podem não evidenciar mais do que o meu gosto literário, outros vão ser pretexto para contar um causo da minha infância, e outros provavelmente me trarão ao presente e à minha opção pelo ofício de escritora. Não sei ainda. Sei que faço isso como uma espécie de exercício, que é ao mesmo tempo uma reflexão... e ainda, espero, uma forma de trazer à tona as recordações daqueles que me lerem. Pois, como eu já disse, uma lembrança puxa outra. Que tal vocês, que lerão as minhas, me falarem das suas?

Até breve, com A de Ana Terra

e abraços desta outra - sempre de cabeça nas nuvens -

Ana