segunda-feira, julho 17, 2017

O Espetáculo Não Pode Parar : parte 2


Sem entender, obedeci mesmo assim, vestindo uma túnica velha – não o traje de retalhos – e seguindo meu avô para fora da tenda. Não sabia por que ele precisava de mim, mas nunca poderia imaginar que veria o que vi: a carroça menor, que meu pai usava quando tinha que transportar a bigorna, fora carregada com nossas tralhas de malabarista, e o cavalo treinado para os espetáculos estava ali perto. Aquilo não fazia o menor sentido.
-- Por que carregou a carroça? – perguntei. – Eu já disse que não iria à aldeia.
-- Mas eu vou – replicou ele, passando-me as rédeas. – Pode atrelar o cavalo?
-- Sim, mas... o que vai fazer lá? Alguma compra? Por que levar os apetrechos do espetáculo?
-- Que pergunta! Porque vai haver um, é claro – disse Thiers, sem ligar ao meu espanto. – Você não quer, mas eu não posso deixar de fazer minha parte.
-- Você? Mas como vai fazer com essa perna quebrada?
-- Bom, os braços estão inteiros – respondeu o velho. – Posso ficar sentado na carroça e atirar as bolas, como você faz quando chegamos a uma cidade maior.
-- Mas isso é só para chamar o público – argumentei, dizendo o que ele mesmo me ensinara. – Podem até vir, mas vão querer alguma coisa além disso.
-- Farei o que posso fazer – retrucou ele, com firmeza. – Agora, acabe de atrelar e me ajude, preciso subir aí... e que seja rápido, não quero que ninguém me veja sair do acampamento.
-- Mas... – comecei, mas me calei diante do olhar por baixo das sobrancelhas brancas. Atrelei o cavalo e ajudei meu avô a se acomodar, o que não pareceu causar mais dor, mas ele estava muito desajeitado no banco e com as rédeas. Também seria difícil, com aquela perna, pegar o que ele iria precisar na parte de trás da carroça. Ou seja, nem aquele arremedo de espetáculo Thiers poderia fazer se eu não o acompanhasse, e isso foi mais uma das coisas que ele disse sem usar palavras. Bastava ter olhos para ver.
-- Vou com você – murmurei, a contragosto. – Só para ajudar com as tralhas e a carroça.
Meu avô fez que sim e ficou em silêncio. Deixamos o acampamento, com o mínimo de barulho possível, e rumamos para a aldeia, a meia hora de distância ou pouco mais. Havia uma estradinha de terra cruzando campos onde alguns homens já trabalhavam, curvados sobre as espigas de trigo, foices subindo e descendo ao som de uma cantiga. De certa forma, aquilo era bonito, mas eu nunca pensaria em ser fazendeiro, a vida inteira no mesmo lugar, vendo as plantas crescerem para cortá-las e esperar que crescessem de novo. Também não pensava em ser artesão como meu pai, ter qualquer dos ofícios que vira na cidade ou entrar para o serviço de um templo. Não, eu queria ser um saltimbanco, ou pelo menos era o que tinha pensado até agora. Até ver meu avô cair do cavalo e as pessoas rirem enquanto ele estava no chão. Dor e zombaria. Era justo que o espetáculo terminasse assim?
O sol já tinha subido um pouco quando avistamos a aldeia. Meu avô tirou de uma bolsa um naco de pão e outro de queijo e dividiu comigo enquanto a carroça gemia pelo trecho final. Avançamos ao longo da rua tortuosa que devia ser a única do lugar, margeada por casas de madeira com telhados de palha trançada. Duas ou três eram de pedra, e numa dessas funcionava uma taverna, vimos pelos barris do lado de fora da porta. A rua se alargava numa praça onde havia um poço e um pequeno mercado, nada mais que meia dúzia de bancas onde os fazendeiros dos arredores trocavam produtos. Havia mais gente no mercado, crianças brincando na rua, uma velha sentada na frente de casa, e todas essas pessoas olhavam para nós, querendo saber quem éramos e por que estávamos ali.
Nas apresentações que tínhamos feito até então, era nessa hora que eu, usando a roupa de retalhos, fazia um pouco de malabarismo enquanto meu avô chamava o público. Só que dessa vez eu estava usando uma túnica velha, já sem cor nenhuma de tão desbotada, e Thiers não chamou ninguém, só pediu que eu pegasse algumas bolas para ele na tralha atrás da carroça. Peguei as que estavam mais perto, eram bolas de treino, pesadas, feitas de couro costurado e sem pintura. Acho que eu meio que esperava que ele pedisse as bolas de madeira colorida dos espetáculos. Meu avô, porém, não falou nada, só pôs as rédeas no colo e começou o jogo com as bolas, bem devagar, como se não quisesse chamar público nenhum e só estivesse treinando para não perder a prática. Ao mesmo tempo, começou a assoviar, acompanhando a subida e descida das bolas como os camponeses acompanhavam o ritmo das foices, e acho que foi isso, mais do que o malabarismo tão simples e discreto, que chamou a atenção de quem estava mais perto.
Devagarinho, eles foram se chegando. Primeiro as crianças, que se acotovelavam e cochichavam, excitadas, porque nunca deviam ter visto nem mesmo aquilo. Com elas, claro, vieram mães e avós, depois outras mulheres e finalmente alguns homens, esses sim com jeito de estar esperando um espetáculo de verdade. Meu avô estava tranquilo. Com um gesto de cabeça, que eu já conhecia, ele pediu que eu lhe lançasse uma bola, e depois mais outra, e eu não tinha como fazer isso a não ser calculando a trajetória e atirando aquela bola na hora certa, no lugar exato em que ela passaria a fazer parte da ciranda que girava entre as mãos de Thiers.
Foi desse jeito que, sem perceber, acabei entrando no espetáculo. Ou melhor, fui arrastado, porque algumas pessoas murmuraram com admiração, porque eu não queria ver meu avô fracassar e porque Thiers, aquele velho trapaceiro de quem eu gostava tanto, me fez morder a isca e me enrolou direitinho. Ele não tinha chamado o público nem prometido nada grandioso, mas as pessoas estavam ali, e ele me conhecia o bastante para saber que eu não ia cruzar os braços enquanto ele passava vergonha. Não ia deixar de lançar as bolas, nem pegar as que ele desviava para mim, nem ficar sentado deixando que uma delas, atirada muito alto de propósito, se perdesse e acabasse caindo no chão. Quando dei por mim, estava de pé, atrás de meu avô que se sentava na ponta do banco, as cinco bolas girando em minhas mãos para depois voltar às dele, o círculo ampliado, a harmonia. O público aplaudiu, e, pensando que poderia entusiasmá-los ainda mais, mantive os olhos no que estava fazendo e pisei cheio de confiança no ombro de meu avô.
E, no instante seguinte – plaft!
O som diz tudo, não, senhoras e senhores? Serve para o estalo da perna de Thiers, para o som da minha queda dos ombros dele, para o barulho das bolas de couro batendo no banco da carroça. Até hoje, anos passados, não sei o que aconteceu, mas imagino que meu avô tenha se apoiado na perna por uma espécie de instinto, para manter o equilíbrio enquanto eu subia; o osso quebrado cedeu, e a dor repentina o fez se encolher. E com isso eu caí, e foi como acordar com um choque, o mundo de repente virado do avesso; e no instante mesmo em que isso acontecia eu escutei o ooooooh da plateia, de susto e pena e também decepção, como se a gente houvesse deixado de cumprir uma promessa.
E risos. Ah, sim, houve risos, talvez alguns inocentes, gente que achava que o tombo era parte da apresentação, mas outros de deboche, como tinham sido as risadas diante da queda de meu avô. A diferença é que daquela vez ele estava no chão, e o cavalo fugira desembestado, e a multidão em volta me impedia de ver o que tinha acontecido -- ao passo que com o plaft eu despertara e via tudo claro, como nunca antes. Sabia que Thiers estava bem, a não ser pelo medo de ter falhado comigo e de me ver recuar para sempre; sabia que o cavalo estava ali e o que ele podia fazer quando não lhe atiravam pedras; sabia que as pessoas estavam rindo, que algumas eram más e estúpidas e nada do que eu fizesse mudaria isso, mas, acima de tudo, sabia, agora com certeza, que o espetáculo precisava ir em frente. Mesmo aos trancos e barrancos, a vida precisava ir em frente. E, nos dois casos, eu tinha de agir antes que fosse tarde demais.
-- Muita calma, senhoras e senhores! Foi só um pequeno acidente! – exclamei, passando ao dorso do cavalo, sem descer da carroça; isso já causou alguma impressão, e eu aproveitei para continuar. – Meu avô, Thiers de Pwilrie, está machucado e não pode atuar, mas ele me ensinou duas ou três coisas que vou mostrar a vocês. O senhor, aqui na frente -- acenei para um homem novo e forte, que parecia ser boa gente, porque não tinha rido e segurava uma garotinha pela mão --, pode soltar os varais da carroça? E vocês, não vão embora! Fiquem um pouco mais!
-- Isso mesmo, fiquem! – Era meu avô, sua voz forte suplantando a dor que devia estar sentindo. – Fiquem e vejam o que um cavalo bem treinado pode fazer... O espetáculo mal começou!
E, a não ser por duas ou três pessoas, todos ficaram. E, sim, tivemos espetáculo. Não tão bom quanto aqueles que fazíamos antes -- não era muito o que eu tinha para mostrar --, mas fiz o melhor que pude, e meu avô me incentivou, e todos aplaudiram vendo-me girar na sela, soltar as rédeas e me equilibrar de pé enquanto o cavalo galopava em círculos. A carroça ficou no meio, e Thiers voltou a fazer malabarismo, e, quando eu tinha feito tudo que sabia, nós tornamos a atirar as bolas em dupla. O público riu bastante, dessa vez um riso bom, quando foi o cavalo que segurou o chapéu entre os dentes para pedir contribuições. Riram ainda mais quando um sujeito se negou, e o animal bufou pelas narinas, pois não sabiam que eu havia tocado suas costelas com o calcanhar. O chapéu acabou ficando com um peso considerável, e ainda ganhamos um queijo do homem que desatrelou a carroça, um presente por deixar sua filhinha montar e dar algumas voltas, a passo, segurando minha cintura. O presente maior, no entanto, não caberia em nossas mãos. Estava em meu coração e nos olhos de meu avô, e se multiplicou de várias formas quando voltamos ao acampamento com a comida que tínhamos comprado para a família.
Eu poderia falar mais, me estender em episódios alegres e tristes, contar que Thiers nunca pôde voltar a fazer acrobacia e como encontrei um mestre que me ensinou várias outras artes. Mas essa seria uma longa história. Assim, digo apenas que meu avô sempre estará presente, que posso vê-lo em cada fracasso e em cada vitória, em cada riso e cada aplauso do meu respeitável público.
Pois ele vive em mim, assim como eu viverei em meus aprendizes.

E o espetáculo nunca terá fim.

*****

Parte 1.

Que tal conhecer um descendente do Zemel, que inclusive leva o nome do seu avô, Thiers? É só clicar aqui.

No blog do Castelo vocês conhecem o futuro mestre do Zemel.

E... É isso, pessoal. Espero que tenham gostado dos saltimbancos de Athelgard!

Estou saindo de férias, mas dia 26 vai ter outro conto no ar. Literalmente, pois ele se passa no espaço, num planeta chamado Carsis, onde uma avó durona e seu neto sonhador desembarcam para um surpreendente encontro de negócios.

A gente se vê lá!

2 comentários:

Astreya disse...

Nossa, que lindo esse conto! Todo mundo tem os seus dias de saltimbanco que cai... e o mais importante, o "público" não pode determinar tudo o que fazemos, ou então a gente simplesmente paralisa pensando em como agradar e como ser sempre aplaudido - o que não é nem saudável. Adorei o Thiers e a narrativa do Zemel, Ana!

ALE DOSSENA disse...

Adorei a narrativa do Zemel, aliás, narrativas em primeira pessoa me encantam sempre. Gosto do seu estilo que permite em paralelo com a história, repassar ensinamentos como nas fábulas, o que torna tudo mais belo para nós leitores. Sim! O espetáculo não pode parar!! Até guardei aqui essa postagem para meus momentos de desânimo. \o/
Beijos!