— Ajude a senhora, Hanno – ordenou a matriarca. – Quanto ao senhor, deveria moderar o tom. Os carsísios não são seus escravos, e, ainda que fossem, isso foi inteiramente fora de propósito.
— Não são escravos – concordou Agapipókias –, mas trabalham para a Companhia e só entendem as coisas no grito. Se não for assim, vão fazendo do jeito deles, com desleixo, apesar da mansidão. Mas estão melhorando, é verdade. – Pegou o primeiro copo de vinho servido por Hanno. – Quando chegamos era bem pior. Era uma lerdeza, um desânimo que dava até raiva. Todos andavam feito uns velhos, com a cabeça caída para a frente, e ainda tinham aquela mania de ficar enfiados em casa boa parte do dia. Agora trabalham com mais vontade.
— Claro – acudiu Solônio –, porque, se não, como ganhariam ferramentas e coisas bonitas? Não é mesmo, Halva?
Forçou um sorriso cheio de dentes para a mulher com a bandeja. Ela retribuiu com outro, dócil e cansado. Em seu pescoço brilhava um pingente composto por três pequenos discos, sendo o maior uma lasca de pedra polida, o segundo de cristal transparente e o terceiro de ouro. Hanno, de pé a seu lado, teve uma estranha sensação ao perceber como os três círculos se sobrepunham, lembrando a inscrição que tinham visto no marco de pedra, à beira da floresta.
Enquanto ele refletia, o Comandante Agapipókias deu início ao que chamava de “ir direto ao ponto”. Do seu pad dourado ele projetou uma tela holográfica, pela qual fez passar algumas imagens em rápida sucessão: o registro da chegada dos heládicos e da montagem do acampamento, as primeiras perfurações da montanha, pilhas de deltrílio extraído sendo levadas para os cargueiros. Os carsísios apareciam em várias imagens, no início parecendo lentos e apáticos, depois mais decididos, mas tudo dentro daquele jeito manso. Agapipókias mostrou também os números do empreendimento, a quanto montavam as despesas e quão baixos, segundo ele, ainda eram os lucros com a venda do excedente. Feito isso, foi a vez de Solônio entrar em ação, lembrando a vocação dos ken´ami para as viagens e o comércio, e como fariam melhor em levar seus excelentes pilotos e veículos a desbravar rotas desconhecidas. Teriam até um incentivo dos heládicos, se Elyssa, em nome da Liga, abrisse mão de explorar as minas de Carsis pelos próximos dez anos.
— Depois disso, com a expansão do negócio, talvez possamos discutir uma parceria comercial – disse o mestre das leis, todo sorrisos. – Até lá, oferecemos um crédito equivalente a mil talentos de prata.
— Mil talentos por ano, durante dez anos? – indagou Elyssa.
— Nnnn… não, minha senhora. – Solônio sorriu amarelo. – Por todo o período em que valer o acordo.
— Então é um valor ridículo! – exclamou Hanno, indignado. – Vocês tiram isso desta mina a cada dois meses!
— Sim, mas e as despesas? E o investimento? – lembrou o homem das leis. – O que os ken´ami teriam de gastar para estabelecer uma concorrência? Isso, é claro, sem falar no desgaste político, nas relações entre Qartag e as cidades heládicas. Elas sofreriam um abalo se…
Nesse momento, um som melancólico, produzido por várias vozes, se fez ouvir ao longe. Parecia um cântico, mas sem palavras, apenas a repetição sincopada de aaaaas e eeeeees. Hanno ia perguntar o que era aquilo quando Halva, a nativa que trouxera o vinho, se pôs subitamente a vocalizar junto com os outros em alto e bom som.
— E isso, agora! Saia já daqui, mulher! – berrou Agapipókias, levando as mãos aos ouvidos. Halva obedeceu, mas, uma vez lá fora, prosseguiu com o cântico, que soava quase exatamente como um balido de árion. Ou melhor, de centenas de árions. Todos os nativos de Carsis num raio de vários estádios.
— Viram só? Eles fazem isso todos os dias, três vezes por dia. Começaram tão logo acabou aquele costume de ficar trancados em casa. Vocês não vão querer passar por isso – afirmou Solônio.
— Então eles imitam árions, não é? Deve ser… a religião deles. – Elyssa lançou ao neto um olhar penetrante.
— Sei lá! Nós perguntamos, mas eles não quiseram falar. Também não vimos templos, nem sacerdotes, nem qualquer tipo de culto a não ser esse coro de balidos. Os Anais da Liga Mercantil não dizem nada sobre isso? – indagou Akapipókias. – Quando os primeiros ken´ami vieram a Carsis, sabe…
— Não. Os relatos contam de um povo muito espiritualizado, com pouco interesse em bens materiais, que vivia à beira-mar e dali tirava o sustento.
— À beira-mar? Então eles se mudaram em massa para o interior? Já estavam aqui, nas suas malditas casinholas, quando chegamos…
— Pois é. Não sei o que pode ter acontecido – respondeu Elyssa.
Seu tom de voz fez Hanno ter certeza de que ela sabia. Os heládicos deixaram de lado a questão dos nativos e prosseguiram com as explicações, tentando convencê-la das vantagens de assinar o acordo e até insinuando a possibilidade de uma quantia passada diretamente às mãos de Elyssa, à parte dos mil talentos oficiais. Ela deixou claro que não aceitaria suborno. A proposta se elevou a mil e duzentos talentos. Para o espanto de Hanno, a avó deu mostras de estar disposta a considerar, ao mesmo tempo que pedia uma pausa, alegando cansaço.
— A idade requer cuidados, vocês entendem. – Elyssa tinha mais fôlego e resistência que Hanno e uma saúde de ferro. – Se houvesse um lugar para esticar os ossos…
— Claro, claro – concordou Solônio. – Venha comigo, vou levá-la a uma tenda onde poderá repousar.
— Meu neto também deve estar cansado de ficar em pé – disse Elyssa.
— Ah, sim, sim, é claro. Que descortesia. O rapaz pode acompanhá-la, e haverá um banco para ele quando voltar.
— Não demorem – rosnou o comandante.
Hanno e Elyssa seguiram o mestre de leis até uma tenda no extremo do acampamento. Talvez fosse a do próprio Solônio, que chegara uns dias antes, no último cargueiro a pousar em Carsis. A cama parecia nova, e ao lado havia uma mala de viagem com fechos reluzentes. Elyssa se estirou na cama, enquanto Hanno se sentava num banco dobrável a seu lado, curioso para saber onde ia dar aquela manobra de sua avó.
— Precisa de mais alguma coisa? – indagou Solônio.
— Massagem nos pés – respondeu Elyssa, sem hesitar; o heládico estremeceu, e ela prosseguiu em tom natural. – Mas não vou pedir isso a você, que deve ter muitos afazeres. E Hanno é um desajeitado. Pode chamar aquela mulher que serviu o vinho? Ela parece tão gentil…
— Ah, isso é mesmo. Os nativos são boas pessoas, apesar de simplórios. É uma de nossas metas integrá-los à cultura heládica, à verdadeira civilização.
— Perfeito. Podem começar por ensiná-los a ler – disse Elyssa, e Hanno reprimiu um sorriso: o alfabeto heládico derivava da escrita ken´ami. Solônio, porém, não percebeu a ironia e saiu todo feliz para chamar a carsísia. Foi então que os dedos de Elyssa se fecharam sobre o braço do neto.
— Escute, Hanno, este é o momento em que você vai ter que honrar sua medalha de primeiro da turma. Está com o Atlas Estelar Avançado aí nos seus arquivos, não está? E os Anais da Liga Mercantil?
— Sempre. – Ele bateu no peito, onde um bolso interno guardava o pad carregado de livros e textos sobre navegação.
— Ótimo. Você precisa consultá-los e fazer uns cálculos, mas não aqui, não quero que o vejam mexer nesse material. Vá até o marco de pedra pelo qual passamos, você já sabe o que ele é, não sabe?
— Um… mapa celeste?
— Mapa? Começo a achar que deveria ter trazido seu primo Himilco, e não você. Mapa, tem certeza? Com todas aquelas marcas que havia ao redor do círculo? Para que acha que elas servem?
— Poderia ser para… Já sei! – ele exclamou, encantado com a súbita compreensão. – As linhas marcam a passagem do tempo. Aquilo é um calendário!
— Muito bem. – Tornou a apertar seu braço, a ênfase na voz. – Saia daqui discretamente e vá até o marco de pedra. Não deixe que ninguém o acompanhe. Compare as marcas no calendário com o movimento de Carsis e de suas luas, que vai encontrar no Atlas, e tente descobrir quando eles mudam de fase, de era, ou como quer que chamem este período. Tente saber o que vem depois e quanto tempo irá durar. Eu tenho uma suspeita e vou tentar confirmá-la com a nativa, mas, se não conseguir, seus cálculos podem…
— Pronto, aqui está ela! – anunciou Solônio, entrando na tenda. Halva estava atrás, com a expressão parada de antes, mas o andar parecia mais decidido. Seus olhos tiveram um lampejo de reconhecimento ao ver Elyssa. Tomara que isso ajude, pensou Hanno.
— Vou dar uma volta por aí, tudo bem? – perguntou ele a Solônio. – Não preciso assistir à sessão de massagem da minha avó.
— Claro, pode ficar à vontade. – O heládico saiu com ele, deixando as mulheres na tenda. – A aldeia dos nativos fica depois da mina, mas, seguindo a trilha a partir daquelas árvores, você chega a um rio onde as garotas costumam lavar roupa. Se estiver com sorte, vai encontrar alguma por lá. Quem sabe também consegue uma massagem, hem, garotão?
Deu uma cotovelada cúmplice no braço de Hanno. Desconcertado, mesmo assim o rapaz assentiu: de certa forma, aquilo lhe fornecia um álibi. Ele se apressou a seguir a trilha que levava ao rio e, tão logo se encontrou longe das vistas dos heládicos, deu a volta pelas árvores, seu instinto de navegador o ajudando a localizar o marco de pedra, onde estava o calendário. Usou um dispositivo em seu pad para conseguir imagens de vários ângulos e se afastou, seguindo outra vez em direção ao rio, onde sua presença despertaria menos suspeita.
Quando pôde ouvir o barulho da água, ele se sentou numa pedra chata e acionou a biblioteca do pad, ao mesmo tempo que projetava as imagens do marco diante de seus olhos. Elyssa tinha razão, aquilo só podia ser um calendário, embora Hanno ainda não soubesse como os carsísios mediam o tempo. Tinha a ver com constelações, aquilo estava claro, mas em relação a quê? Ao Sol? A uma das luas? Ele consultou os dados contidos no Atlas Estelar, puxou uma nova tela e desenhou projeções, testando possibilidades, até encontrar um padrão que parecesse plausível. Então, lembrou-se de consultar os Anais da Liga Mercantil, onde os primeiros ken´ami a comerciar em Carsis tinham dito que
De acordo com suas crenças, os carsísios adotam o comportamento que julgam adequado à era astronômica corrente. Neste momento, a constelação mais brilhante no céu é a do Delfino – e eles adotaram um andar ondulante, ergueram casas perto do mar e abandonaram qualquer luxo ou tecnologia desnecessária à subsistência. Os delfinos são seres muito espirituais, conforme nos explicou o sacerdote.
É curioso ver como os carsísios se adaptaram tão bem à nova vida, mas para nós, no que toca aos negócios, é a certeza de uma perda ou ao menos adiamento. A presente era vai durar mais vinte anos, e depois virá a do Quelonídeo, quando todos ficarão o máximo possível dentro de seus cascos, ou seja, de suas casas...
Hanno interrompeu a leitura, estarrecido. Ali estava a explicação, bem debaixo do seu nariz. Também estivera diante dos heládicos, que não dispunham dos Anais da Liga, mas poderiam ter feito os cálculos, ter feito mais perguntas aos nativos, ter chegado às suas próprias conclusões. Em vez disso, haviam se estabelecido em Carsis no final da Era do Quelonídeo e se julgavam responsáveis pelo novo comportamento dos carsísios, agora mais propensos ao trabalho duro, só desobedecendo às suas ordens quando se uniam em um novo cântico ritual.
O balido do árion. Essa era a fase atual – e Hanno devia descobrir quando terminava. Ele se concentrou nos círculos, jogando constelações na tela e traçando órbitas planetárias, e trabalhou as imagens do calendário, fazendo simulações que levassem em conta a posição das luas. Conhecendo sua avó, não foi uma surpresa concluir que a Era do Árion se encerraria, muito oportunamente, no decorrer de sua visita a Carsis – mas o que ele não entendia era o lapso de tempo, cerca de quatro ou cinco dias, antes que o calendário entrasse na Era seguinte.
O aprendiz repassou os cálculos em busca de erros. Era isso mesmo, a marcha do planeta ia deixando Árion para trás, e em seguida surgia Táurion, que reinaria durante cerca de quinze anos, mas o calendário de fato apresentava uma falha. O que seriam esses dias vazios? Hanno ampliou as imagens que trouxera do marco de pedra e analisou cada detalhe; e então seus olhos de repente se estreitaram, o coração batendo forte ao perceber a pequena constelação, formada por apenas cinco estrelas, como o único ponto brilhante naquele período de tempo.
— Leonte – murmurou, fechando as telas abertas e se levantando de um salto. – Preciso avisar…
-- Aaaaaahrghh! Ali! – exclamou, ou melhor, rugiu alguém às suas costas.
O rapaz se virou, alarmado, e o que viu o fez recuar sobre os próprios passos: dois carsísios adultos, segurando ferramentas de mineiro, olhando-o com as caras fechadas e os olhos injetados. Ainda se continham, mas suas expressões tinham perdido toda a docilidade e se tornado quase selvagens.
Bem como se esperaria do que estava por vir.
(Continua...)
Parte 1
Parte 3
Um comentário:
AAAaaaargh digo eu!! Que final!! O que é a era do Leonte e o que vai acontecer agora??? Nossa, Ana, que interessante toda essa cosmologia e essa crescente de descobertas do Hanno, me deixou de cabelinhos em pé. Você disse que não escreveria neste gênero sem ajuda, mas este conto só seu está muito, muito bom. Vai parecer um comentário clichê, mas é a mais pura verdade: mal posso esperar pela parte 3!
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