sábado, dezembro 31, 2022

Retrospectiva de Escrita 2022

 Pessoas Queridas,

Este é o último dia do ano, e eu decidi quebrar uma das minhas tradições (listar as melhores leituras que fiz ao longo dos doze meses), mas também repetir algo que fiz ano passado, uma espécie de retrospectiva dos trabalhos literários.

Em 2020 e 2021, anos da pandemia, eu escrevi 22 contos de tamanhos diversos, um total aproximado de 100.000 palavras. Este ano, mesmo voltando ao trabalho presencial, e ainda que tenha passado por vários problemas de saúde (meus e do meu marido), a média se manteve, com um número menor de trabalhos finalizados (foram 9), mas totalizando 51.323 palavras nas versões finais.



Meus originais.
Lamento informar que, uma vez digitados,
seu destino é o beleléu. 


Até o final de novembro, eu não esperava chegar nem perto dessa marca, mas no último mês escrevi dois dos três contos longos (noveletas, vá) que produzi este ano. Dei a sorte de ser apanhada pelo que chamo de "febre ficcional" -- resumidamente, o contrário do bloqueio do escritor -- que me acomete vez por outra, e que  cheguei a descrever num post de 2004. Se alguém estiver interessado em detalhes, ei-los aqui. Seja como for, a produção me deixou bem feliz, e houve ainda vários textos escritos para a Biblioteca Nacional, um pouco mais da série sobre escritores brasileiros e uma sobre livros de aventura. 

Quanto a publicações, além do livro de contos Os Pilares de Melkart., publiquei duas novelas solo no mesmo universo, participei de nove coletâneas ou revistas, publiquei um artigo de divulgação e um capítulo de livro acadêmico -- esses trabalhos e seus links estão nos dois posts anteriores aqui da Estante Mágica. Não ganhei prêmio (acho; Allana e eu somos finalistas do Argos com o Jack London), mas o primeiro quadrinho que roteirizei está na coletânea Babalon, que ganhou o Prêmio ABERST de melhor HQ de horror ou crime. Fui jurada do Prêmio ABERST (noutra categoria, claro) e do Odisseia de Literatura Fantástica. Escrevi paratextos, fiz revisões, participei de lives, dei entrevistas e opinei em projetos que, tenho certeza, vão ter uma repercussão bacana. Infelizmente não participei de muitos eventos literários, como gostaria, mas espero compensar isso no ano que vem.

E o que mais espero, além, claro, de todos termos saúde e de ver o país iniciar sua recuperação após esses últimos anos tão difíceis? Espero escrever contos que fechem dois romances fix-up, espero produzir mais do universo do Balthazar, escrever um livro para adolescentes, ambientado no Brasil durante a pandemia, e possivelmente um romance curto de fantasia urbana. Espero participar de projetos e vibrar com as conquistas de amigos. Espero ler e assistir muita coisa boa, espero fazer um trabalho digno na Biblioteca Nacional (sob outra direção, hurra!) e se tudo der certo voltar a viajar, mesmo que pra pertinho daqui. Enfim, espero que o próximo ano seja pelo menos tão bom quanto os últimos em termos de produção e publicações... e que seja melhor, em todos os outros aspectos, pra mim e pra todos nós.

E, acima de tudo, espero que continuemos juntos, porque vocês fazem parte dessa jornada, e eu sempre soube, ninguém vai longe quando anda sozinho.

Grande abraço, e até o ano que vem!


sexta-feira, dezembro 23, 2022

Livro, Contos e um Capítulo Publicados: Segundo Semestre de 2022

 Pessoas Queridas,

Que ano doido foi esse! Aconteceram muitas coisas, infelizmente nem todas boas, na minha vida pessoal e profissional. Quase não vim aqui e estou repensando os canais de comunicação com amigos e leitores, inclusive para incluir algumas coisas que faço, publico e gostaria de partilhar. Mas ainda não tive como parar e resolver isso, então... Aqui vai pelo menos um post sobre as minhas publicações do segundo semestre. 


 Pra começar, claro que tinha de ser esse livro no qual venho trabalhando há tanto tempo! Os Pilares de Melkart é uma coletânea de três contos e duas novelas, que acompanham o capitão fenício Balthazar de Tiro e o jovem heleno Lísias em suas viagens no tempo, em vários lugares da Antiguidade. Neste livro, além da história ambientada em 323 a. C., que se passa no mar, eles participam de uma peça de Aristófanes na Magna Grécia, vão à Jerusalém do Ano Zero, à mítica Tartessos, na Hispânia, e à Creta do Rei Minos, vivendo muitas aventuras cheias de emoção e bom-humor. O projeto foi financiado pelo Catarse. Quem não tiver pode conferir a sinopse e, se curtir, adquirir o livro clicando aqui




Jogo do Destino é uma das duas prequels de os Pilares de Melkart que foram meta extra no Catarse. Nesta novela, conto como Balthazar e Lísias se conheceram e como o jovem heleno conquistou seu lugar na tripulação, apesar de algumas brincadeiras nem sempre inocentes dos marinheiros. Também apresento Sikkar de Cartago, herdeiro da Casa Aníbal e muito importante para sagas futuras, e a jovem vidente Hermínia, que faz algumas revelações a Lísias. Saiba mais e adquira clicando  aqui.



Outra prequel de Os Pilares de Melkart, a novela Entre Paredes é uma história de amor e fantasmas ambientada em Cartago. Sua protagonista é a jovem Thira, que tem sua deterninação posta à prova quando algo sinistro acontece durante a reforma da taverna de seu pai. A seu lado, enfrentando as forças do Outro Mundo, estão os hóspedes da casa, Balthazar e Lísias, e o mercador Sikkar, pretendente de Thira, além de um misterioso egípcio e da sorrateira gatinha Bastet. Sei que você se interessou, então adquira clicando aqui.



Uma coletânea muito incrível de que participo! Terrores Asiáticos traz vinte contos de autores nacionais, que escrevem sobre seres assustadores do folclore da Tailândia, Coreia, China, Japão e outros países da Ásia. A mim coube escrever sobre o vetala, uma espécie de vampiro indiano que aparece em sagas e contos populares, e ambientei meu conto, O Banquete, em meio a algo bem presente na Índia contemporânea: uma filmagem de Bollywood. Todos os contos são ilustrados, e além do conteúdo bacana o livro ficou muito bonito. Saiba mais e adquira o livro  clicando aqui.



Produto do projeto Em um Mês, um Conto, Fragmentos Fantásticos traz 25 contos de fantasia de subgêneros variados. O meu, A Feiticeira do Mar, se passa na Antiguidade e mostra o relacionamento entre a feiticeira Cunala, vítima da maldição de um deus do rio, e o jovem hispânico Ilano, que é salvo de um naufrágio e passa alguns dias com ela em seu palácio sob as águas. O conto está publicado em três partes aqui no blog, mas com certeza você vai querer ler também os dos outros autores, então adquira o e-book clicando aqui



Rodas de Leitura Literária é um projeto desenvolvido na UERJ, para o qual fui convidada pela Prof. Márcia Cabral da Silva. O convite para participar de um debate e contar um pouco sobre minha trajetória como leitora e autora se estendeu a este livro, em que, num capítulo intitulado A História e as Histórias: uma bibliotecária nas trilhas do fantástico, eu conto tudo e mais um pouco sobre a minha vida, influências, trajetória e planos para o futuro. Quem tiver curiosidade pode adquirir o livro clicando aqui.

Teve mais? Sim, teve mais. Meu conto curto Às Margens do Rio Límpido foi selecionado numa coletânea de contos patrocinada pela Prefeitura de Bragança Paulista (foi publicado, mas acho que não tem como adquirir). Escrevi paratextos: a apresentação de um livro ainda inédito do Clecius Duran, a 4a. capa de Necroloquion, organizado por Carlos Hollanda, e o posfácio de Fractais, coletânea integrada pelo Lucas Amaral. Participei de um monte de projetos e estou trabalhando em histórias e livros bacanas que logo vêm por aí. E, claro, escrevi vários artigos sobre escritores brasileiros e sobre livros de aventura que foram publicados na página da Biblioteca Nacional -- é só clicar  aqui que você acha.

Enfim, gente querida, este foi um ano confuso, não muito feliz, não muito equilibrado, mas não deixou de ser produtivo. Espero, ano que vem, escrever com mais frequência, neste blog ou em algum outro meio que não sejam as redes sociais. Ainda passo aqui este ano, então... Até breve, não desistam de mim! 

segunda-feira, julho 04, 2022

Contos (e um Artigo) Publicados : Primeiro Semestre de 2022

Gente amiga,

Ainda muito feliz com o resultado da campanha de Os Pilares de Melkart, e um pouco frustrada por não ter podido ir à Bienal, venho atualizar vocês sobre as minhas publicações. Já saiu até mais coisa, mas vou mostrar o que já tenho na mão (ou, em alguns casos, no virtual). 

Vamos lá:


Das Profundezas saiu em janeiro. Organizada pela Lu Evans, é uma coletânea temática, que trata de encontros com criaturas míticas ligadas a corpos de água: rios, lagos, oceanos. Vários contos são ambientados no Brasil; o meu, intitulado Encontro em Mararaloka, se passa na Antiga Índia, e é mais uma história do jovem herói Mattan de Cartago, de seu amigo Necos e da jovem mergulhadora Rukmini. De todas as coletâneas organizadas pela Lu, eu acho, sinceramente, que essa é uma das melhores, se não a melhor. Vocês podem conhecê-la aqui.


Também organizada por Lu Evans, Estelar republica os melhores contos que saíram em suas coletâneas, bem como um conto da própria Lu e, ainda, os dos jurados do concurso. Sou uma dessas juradas, e o conto que escolhi para figurar aqui foi o vencedor do Prêmio Argos 2021, Vovó Nevasca -- uma história distópica que, embora singela, já fez alguns perderem o sono. Confiram aqui.


Com organização de Ale Dossena, Rafael Bertozzo Duarte e Valter Cardoso, Neon é uma coletânea do NLCAC - Núcleo de Literatura e Cinema André Carneiro - que homenageia os 20 anos de sua existência. Sou um membro remoto desde o início da pandemia. Meu conto se passa entre o mundo atual e a Idade Média e se chama Concerto para o Podestà. O livro pode ser encontrado aqui


Em maio foi lançado um projeto da Incubadora Literária em parceria com a Luva Editora. É um clube do livro com pacotes mensais diferenciados, e um deles dá direito a uma revista, a Litera. Fui convidada para participar de o primeiro número, e para ele escrevi o conto Os Ventos de Tamária, no mesmo universo dos contos que publiquei nas coletâneas Tempo de Dragões, Tempo de Exploradores e Histórias Fantásticas do Guardião. Conheçam o projeto aqui e, se curtirem, considerem assinar! : )


Outra revista, esta virtual, do pessoal do Movimento RPG. A Aetherica traz vários artigos e entrevistas sobre o universo do RPG e também três contos literários. A convite, escrevi um inspirado na Mitologia, que conta como dois fenícios recolheram do mar um náufrago fortão e confuso e o que rolou a partir daí. Confiram Trazido pelo Mar e os outros contos e textos da revista fazendo a assinatura mensal, bem aqui.


Lu Evans disse que Desígnios é a última coletânea que ela organiza, eu espero que venham mais! Por ora, foi um prazer entrar neste livro de contos inspirados pelo Tarot. Minha carta é O Eremita, e o conto A Escolha de Narendra novamente traz o trio Mattan, Necos e Rukmini. Ainda em Makaraloka, ele se veem às voltas com um sadhu muito indeciso.  Encontrem o livro aqui.



Por fim, sob o meu outro chapéu, além de vários artigos publicados na página da BN -- sobre escritores brasileiros e livros de aventura -- saiu meu artigo Assinado : Machado na Comunicação e Memória, revista da Memória da Eletricidade. Falo sobre a publicação de livros no Brasil do século XIX e início do XX, com base, principalmente, nos contratos da Livraria e Editora Garnier existentes na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional, da qual sou curadora. A revista está aqui

*****

Como viram, foi um semestre bem cheio de novidades. No segundo espero ter mais, porém escreverei menos contos do que nos dois últimos anos. A produção, a partir de agora, deve se concentrar em algo um pouco mais longo, para lançar em 2023 ou 2024... o que não quer dizer que não role mais um continho ou dois, se eu receber  algum convite tentador ou me sentir inspirada a levar meus personagens em alguma aventura.

Até a próxima! 

terça-feira, maio 17, 2022

Os Pilares de Melkart: resultado da campanha e metas extras


 

Pessoas Queridas, 

Campanha concluída, últimos apoios computados, venho deixar algumas palavras sobre o que foi essa recente experiência no Catarse. As primeiras, claro, são de agradecimento! Não apenas 145 pessoas (além de mim) apoiaram o livro como dezenas de amigos ajudaram de outras maneiras, com divulgação, boca a boca, cessão de espaço em seus canais de comunicação e até a doação de seu próprio tempo e talento. Fico muito grata a Carol Mancini, que narrou um trecho do livro com sua bela voz, a Nilo Nobre, que fez a arte comemorativa dos 100%, e a Mara Sop, que criou várias artes e vídeos para incrementar a campanha. Também agradeço a meus editores, Erick Sama e Raphael Fernandes, por tudo que envolveu e ainda envolverá a empreitada. Sim, porque este foi apenas o fim de uma fase: ainda é preciso concluir a edição dos livros, produzir as metas extras, imprimir, embalar, enviar tudo para os apoiadores... ufa! Mas podem ter certeza, o Tesouro do Dragão vai chegar direitinho às suas mãos!

Talvez por seu tema não ser tão universal como os duendes e, principalmente, os contos de fadas que ofereci nas campanhas anteriores -- ao que se soma o fato de eu não estar acompanhada por autores incríveis, como das outras vezes --, "Os Pilares de Melkart" demorou um pouco mais para decolar. No fim, porém, a campanha ganhou fôlego e conseguiu atingir quatro de suas metas extras. Os apoiadores não apenas irão receber o livro, acompanhados de marcador e postal exclusivos, mas também dois e-books com novelas inéditas, no mesmo universo dos "Pilares", totalizando cerca de 33.000 palavras extras (equivalentes a um livro de pelo menos 100 páginas). Claro que eu adoraria ter chegado às metas seguintes, mas ter as novelas em e-book também é legal, porque depois elas ficarão disponíveis na Amazon e no site da Draco. Serão um produto de valor mais acessível que, se apreciado, pode conquistar mais leitores para o universo de Balthazar e Lísias.

Por falar em universo... Esse era o ponto em que eu queria chegar. "Os Pilares de Melkart" traz histórias originais de fantasia, com ênfase na aventura; mas para criá-las eu pesquisei muito, li muito e recordei mitos e lendas que me fascinaram desde a infância. Aprofundei isso ainda mais durante a campanha, fazendo posts, escrevendo conteúdos, participando de lives. E como isso é bem mais espontâneo do que escrever ficção -- nesta, por mais que se use o coração, também entra a técnica, a gente revisa e reescreve antes de mostrar --, a campanha mexeu bastante comigo. Me fez revisitar histórias, refletir sobre episódios da minha vida e ressignificá-los, me conduziu numa odisseia em que, felizmente, nunca estive sozinha. Amigos e leitores me acompanharam -- e agora, repassando os posts da campanha e suas interações, mais uma vez confirmo o quanto eles foram constantes e generosos. 

Se eu queria ter atingido um público ainda maior? Claro que sim. Se estou feliz com o que conquistei?  Sem dúvida alguma. Desde o início eu soube que os trabalhos de um escritor não são nada fáceis e que a maioria de nós avança passo a passo, grão a grão, gota a gota. O importante é a gente não se sentir como Atlas ou Sísifo, e sim como Héracles, que luta, rala, passa perrengue, mas sai vitorioso no fim. 

É essa a vibe do Balthazar, foi isso que a campanha me fez sentir, graças ao apoio de vocês.

Obrigada por estar comigo nessa jornada!

quarta-feira, abril 27, 2022

Os Pilares de Melkart : Rumo às Metas Extras!

Evoé! Tenho o prazer de anunciar que nossos navegadores chegaram ao porto!!!

Muito obrigada, de coração, a todos que apoiaram, divulgaram e torceram pra que a gente conseguisse.

Ilustra de Nilo Nobre

Mas, embora tenhamos chegado ao primeiro porto, a viagem não terminou! 

Até o dia 6 de maio, lutaremos pelas metas estendidas de "Os Pilares de Melkart", que serão enviadas a todos os apoiadores. Começaremos com marcador e postal, depois virão e-books de duas Novelas de Cartago (histórias de Balthazar que se passam antes das viagens narradas no livro), ilustras exclusivas do Erick Sama e, se atingirmos 200%, um LIVRO IMPRESSO EXTRA contendo as duas novelas!! 



Se você não apoiou, este é o momento. Se apoiou, continue a dar uma força na divulgação, para chegarmos o mais longe possível. Quanto mais metas alcançarmos, mais recompensas para todos!

Acesse a página do projeto e nos ajude a ir mais além!

domingo, abril 03, 2022

Os Pilares de Melkart: nova campanha no Catarse

         Gente amiga, chegou a hora de compartilhar algo que venho preparando há muito tempo.

          Vocês devem saber como sou fascinada por Mitologia e pelos épicos antigos. Alguns já devem conhecer os personagens que criei em cenários da Antiguidade e trouxe para os meus contos: Balthazar, o pirata e capitão mercante fenício, e o sonhador heleno Lísias. Agora, estou pronta para publicar um primeiro volume contendo as histórias da dupla, que vai levá-los a diferentes épocas e cenários do Mundo Antigo, desde a Creta de Minos à Jerusalém do Ano Um, passando por Tartessos e pelos bastidores do teatro grego.


        Junto com a Editora Draco, preparei uma campanha onde explico tudo sobre o projeto. Vocês poderão perceber que é um trabalho bem elaborado, que requereu muita pesquisa, mas também contou com a minha imaginação e o meu desejo de, antes de tudo, contar boas histórias repletas de fantasia, aventura e um pouco de humor.

        Convido vocês a visitar nossa página no Catarse e, se curtirem, a apoiar, não apenas com a aquisição do livro ou dos combos (o que, claro, seria fantástico!), mas também com divulgação, compartilhamentos, boca a boca...  Tudo para levar nossos navegadores o mais longe possível.

        Que as Musas nos sorriam, pois aqui vamos nós!

quinta-feira, março 24, 2022

A Feiticeira do Mar (Final)

             Pessoas Queridas,

Por fim, chegamos à última parte do conto.  Espero que gostem da resolução!


A Feiticeira do Mar

(Final)

Ilano pisca os olhos cheios de lágrimas enquanto ela volta as costas, sua expressão de dor e amargura confiadas tão somente ao espelho. A superfície de prata mostra também o rosto do jovem. Tem as feições contraídas, mas o brio que lhe resta é suficiente para que deixe a câmara em silêncio. Vai em direção ao túnel, ela adivinha. Vai chegar à cova antes que seja inundada na primeira maré da lua cheia, a mesma cova e o mesmo túnel por onde entrou o pastor, há um século, há dois séculos, tanto faz, são gotas num mar de solidão. Em contrapartida, os dias são enumerados, ano após ano, lua após lua, um calendário que se reinicia a cada vez que ela desperta na sala dos tesouros. A cada vez que seu pesadelo de escamas e sangue se assegura real.

Esta noite, o ciclo irá recomeçar. E Ilano não estará aqui para ver.

Quando a dor houver passado, talvez ainda reste algo de bom em suas lembranças sobre Cunala.

Ela se deita, olhos abertos fitando as espirais das conchas no teto. Pensa em Ilano, tão parecido com o pastor, mas cheio de uma doçura que nunca existiu no outro; pensa nele e fecha os olhos, as pálpebras de repente pesadas, tremores percorrendo sua pele enquanto a consciência afunda na espessa dimensão dos sonhos.

Seus membros já não lhe pertencem, ou talvez tenham deixado de existir. O corpo que coleia para fora do leito não obedece à sua vontade, e sim à voz do vingativo deus do rio, à maldição lançada sobre a jovem que rejeitou suas carícias. Ela se arrasta pelos cômodos do palácio, e o ruído de sua aproximação põe os servos em fuga enquanto a imagem do ouro acumulado invade seus pensamentos. É parte do seu fado, essa obsessão que cresce junto com a lua e a faz querer guardar seus tesouros, envolvê-los com as curvas de seu corpo e vigiá-lo para que ninguém o leve. Pois houve alguns, ela não sabe há quanto tempo, houve homens fortes e duas ou três mulheres que tentaram fazê-lo, e todos gritaram, cheios de horror e repugnância, quando a enorme serpente se ergueu diante deles. Seus rostos passam diante dela aos estilhaços, detalhes capturados em cacos de espelho: um par de olhos muito grandes, a barba escura de um heleno, os longos cachos da moça que era levada para ser escrava. Todos esses viveram com a feiticeira, todos ficaram no palácio durante a lua cheia -- todos tentaram roubar seus tesouros e por isso foram punidos. Seus traços se fundem num único rosto aterrorizado que ela revê enquanto sua pele sangra rasgada pelas arestas do metal.

Então, em meio ao pesadelo, outro rosto surge diante de Cunala. É o do amante que ela teve por anos, o único de quem se lembra com certa clareza quando está sob o efeito da maldição. Ele devia ter ido para a superfície, ela pensa, mas logo uma desconfiança vem encher seu coração de sombras: talvez, no fim, o belo pastor seja como os demais, talvez ele também tenha vindo por seu ouro e ela precise detê-lo, livrar-se da ameaça dessas mãos gananciosas antes que se fechem como garras sobre o seu tesouro. Neste momento estão vazias, ele as estende com as palmas para cima enquanto a boca se move proferindo palavras humanas. Cunala não as entende, mas algo nessa voz consegue apaziguar sua urgência de atacá-lo. Ela desliza para o lado e estende o pescoço, querendo ver e ouvir melhor o pastor de ovelhas --

-- e de repente o homem à sua frente não é ele, e sim um outro com traços parecidos e uma estranha doçura na voz. A feiticeira já o viu, não há muito tempo, mas é difícil situá-lo entre suas lembranças. Tudo que tem é o aqui e agora, um homem na câmara do tesouro, alguém que a maldição a impele a destruir. Ainda assim, o som que sai de seus lábios a faz hesitar; e quando, finalmente, o colhe em seus anéis, não é para esmagá-lo, e sim para trazê-lo até ela numa espécie de abraço.

Sua cabeça paira sobre a do rapaz como a ponta de uma lança. Os olhos encontram os dele e percebem medo, mas também algo mais forte, que o faz desafiar o próprio destino. As mãos se erguem para tocar a pele e o sangue de Cunala, os braços ao redor de seu corpo, que aos poucos vai relaxando o aperto. O jovem poderia se libertar, mas em vez disso continua a abraçá-la, retendo-a para que não volte a se arrastar sobre as pilhas de ouro. Assim ficam os dois por muito tempo, imagens se sucedendo na mente da feiticeira até que, pouco a pouco, as tintas comecem a esmaecer e a se apagar.

Quando, enfim, Cunala reabre os olhos, sua impressão é de ter tido novamente aquele pesadelo. Está deitada em seu leito, na câmara de nácar onde se movem os servos que trouxeram o desjejum; a câmara está aquecida, mas sua pele arde, e, ao olhar para o ventre e as coxas, percebe que estão cobertos de bálsamo. Ela se volta para os servos, que nunca antes haviam ousado tirá-la de perto do tesouro, e vê sorrisos nas bocas de lábios carnudos e dentes serrilhados. Eles se inclinam numa reverência e a deixam ali, tentando compreender o porquê de não haver despertado sobre a pilha de ouro e cambaleado sozinha até o leito, mas suas dúvidas não se prolongam por mais do que um instante. Só o tempo de descobrir Ilano entre as sombras do aposento.

-- Perdoe-me. Não pude ir – ele murmura. Cunala tenta dizer que está perdoado, mas antes que consiga falar o rapaz avança e se ajoelha junto ao leito, os braços em torno dela, a boca afundada na escuridão do seu cabelo. Ele repete que não conseguiu partir, voltou em segredo pelo túnel e descobriu a verdade sobre a maldição, mas, em vez de medo ou repulsa, sentiu ainda mais amor e orgulho por ela suportar a horrível metamorfose ao longo de séculos. Cunala diz que tornará a acontecer, e Ilano responde que sabe, mas escolheu não deixá-la sozinha; na próxima lua cheia, e em quantas mais vierem, ele estará a seu lado e a abraçará antes que ela possa se infligir o mínimo corte. Ele faz essa e outras afirmações, jura que irá amá-la para sempre e faz promessas que talvez não possa cumprir, mas a feiticeira não contesta, porque neste momento palavras não têm importância. Tudo que importa é ouvir a voz que suplantou a do deus do rio, estar nos braços que a impediram de se ferir e de feri-lo, sentir a força e a pureza desse amor que venceu a morte.

E, se não for assim para sempre, ela terá a doce lembrança de agora.

-- Você parece contente – diz Ilano, da cama, algum tempo depois.

Cunala assente, fitando o espelho de prata. Seus olhos estão límpidos, verdes, cristalinos. Não haverá tempestade, hoje, no Grande Mar.


***

E aí, o que acharam? Deixem nos comentários! Também adoraria saber se curtem histórias nesse estilo, ou escritas num estilo um pouco mais solto e ambientadas na Antiguidade. 

Não deixem de visitar o perfil Um Mês, um Conto no Instagram -- e, se gostaram desta história,  fiquem ligados no da Editora Draco. Muito em breve, nós levaremos nossos leitores a navegar nas águas do Mediterrâneo na companhia de um heleno e de um astuto capitão fenício!

Até lá!

quinta-feira, março 17, 2022

A Feiticeira do Mar (Segunda Parte)

Pessoas Queridas,

Aqui vai a segunda parte de "A Feiticeira do Mar". Espero que gostem do desenrolar da história, do romance e do mistério!



A Feiticeira do Mar

(Parte 2)

Ele começa em tom formal, agradecendo pela ajuda, depois se solta um pouco e diz que sua avó sempre falou sobre Cunala, sobre o palácio no mar e a cova na superfície. Fica junto a uma aldeia chamada Pedra do Abutre, não longe da grande cidade onde ele vive, e onde também há quem faça oferendas com vistas a ganhar as boas graças da feiticeira. Ela pergunta qual a cidade, e ele esclarece tratar-se de Gadir, fundada pelos fenícios sobre um arquipélago e agora sob os auspícios de seus deuses exigentes e caprichosos. Baal, Astarte...

-- E Melkart – diz Cunala, sem disfarçar o travo de rancor. É esse deus dos fenícios que vem angariando cada vez mais devotos, e com isso se fortalece, amplia seu poder sobre as águas e os ventos e as marés. Isso, porém, ela guarda para si, preferindo ouvir mais a respeito do náufrago, que diz se chamar Ilano e pertencer a uma família muito antiga de Gadir. Possuem uma salga de peixe, e ele tentava ampliar os negócios vendendo seu produto na Sicília. Muita esperança e boa parte do dinheiro da família viajavam naquele barco que nunca chegará a seu destino.

Cunala não tem como ajudá-lo a enfrentar essa perda. A tempestade não foi trazida por ela; o mar tem seus caprichos. Também não pode resgatar os tripulantes, pois seu poder a faz saber que estão todos mortos. Ela diz isso a Ilano, e o rapaz chora lágrimas amargas que ela recolhe no seio. Do abraço à primeira carícia, ao primeiro beijo com gosto de sal e mel – não é muito, na verdade, o tempo que transcorre.

Ilano tem pouca experiência, mas o que a maioria dos jovens compensa apenas com ardor ele oferece em carinho e cuidado. Suas mãos são ternas, a voz é doce; o ato em si é desajeitado, mas nunca brutal. Quando terminam, ele continua a fitar Cunala com os olhos muito abertos, cheios de um brilho diferente do que havia até então.

-- Quero ficar com você – ele murmura. A feiticeira hesita – já viu esse brilho noutros olhos, e lembra o que aconteceu --, mas no fim decide seguir com seus planos. Não será isso que irá perder Ilano para sempre, e ela merece esse presente, sete dias e sete noites em que terá um amante, quem sabe um amigo, alguém que a ajude a não esquecer as palavras humanas. É isso, e nada mais, que ela promete ao náufrago.

Ilano não entende o porquê de um prazo tão curto, mas aceita e jura devotar a Cunala cada instante que passar no palácio. Nessa noite, os dois se dedicam ao conhecimento do outro, bocas, mãos e cada desvão do corpo do outro, um aprendizado que dispensa palavras, mas que, ao menos para Cunala, é o que se mostra mais urgente. Por sua vez, Ilano tem perguntas, porém as guarda para fazer ao longo dos dias seguintes: os sete dias que passarão juntos, boa parte deles na cama, mas às vezes diante das janelas translúcidas que lhes permitem ver o mar sem deixar o palácio.

A paisagem de rochas e algas é sempre a mesma, mas Ilano se encanta com os cardumes prateados, com os polvos lentos e solenes, com o ruído surdo das correntes e os súbitos clarões do mar noturno. Em Gadir, ele sempre esteve cercado pela água, mas nunca foi além da superfície. Jamais teria sonhado ver essas maravilhas, como jamais teria sonhado estar com alguém como Cunala, e tanto o mar quanto a mulher o têm cada vez mais preso a seus encantos. Ela percebe o que se passa com ele, e às vezes pensa em adverti-lo, mas sempre acaba por deixar a ideia de lado. Não há por que antecipar o sofrimento que virá no fim, provavelmente intenso para ele – um homem doce, e ainda tão jovem --, porém mais duradouro para ela, porque as lembranças dele se misturarão com as de outros amantes, a todas as ausências que acrescentam peso à sua solidão.

Sem querer falar do assunto, Cunala se desvia das perguntas que, como a maioria dos homens, Ilano faz a respeito de seus antecessores. Em vez disso, conta sua própria história: a história de uma jovem comum, de uma beleza sem par, diziam, porém mais uma moça vivendo numa aldeia à sombra da Pedra do Abutre, naquele tempo em que os deuses fenícios ainda não haviam destronado os locais. Lá vivia um antigo senhor do rio, que cobiçou Cunala e tentou arrastá-la para sua morada sob as águas. Para livrar-se dele, ela se atirou ao mar, onde a Grande Mãe lhe deu refúgio e onde, com o tempo, cresceram seus poderes de feiticeira. Há muito ela suplantou o deus do rio, que desapareceu pelo esquecimento, como tantos senhores das águas, dos bosques e das cavernas. Suplantou e sobreviveu a ele, embora carregasse uma maldição que a impediu de voltar ao mundo dos homens e causou a morte de muitos dos seus amantes. O último foi o pastor de ovelhas, que ela pensou poder manter para sempre a seu lado... e cujo rosto lhe vem à memória sempre que ela vê o perfil bem desenhado de Ilano.

As lembranças são dolorosas, mesmo para alguém tão provado pelo tempo como a feiticeira. Ela não fala do pastor nem conta os detalhes da maldição, embora isso lhe passe pela cabeça sempre que as mãos do amante encontram suas cicatrizes. São miríades de linhas brancas que se entrecruzam em seu ventre, em seus seios, em suas coxas, e sobre elas algumas rosadas mostrando os ferimentos mais recentes. Outras virão, muito em breve: ela nem precisa olhar para as conchas enfileiradas ao lado da cama, às quais jamais se esquece de fazer o acréscimo diário. Cunala sabe, porque seu ânimo é cada vez mais sombrio; ela se enfureceu com os servos, por entrarem sem avisar em seus aposentos, e com os homens na superfície pela escassez de oferendas. Zangou-se até com Ilano e suas perguntas. E quando, nessa mesma noite, volta a sonhar com a câmara do tesouro, ela compreende que já não pode adiar o assunto doloroso.

-- A lua cheia se aproxima – diz Cunala ao jovem hispânico. – Você precisa deixar o palácio. Leve moedas, joias, o que puder ajudá-lo em seu regresso a Gadir. Aqui... em breve... deixará de ser um lugar seguro.

Cada palavra é um espinho ferindo sua boca. Ela não quer que Ilano se vá, não porque o ame – sua alma é velha demais, experiente demais, ela conhece demasiado o mundo e a si mesma para receber a dádiva do amor --, mas porque gosta de sua companhia e de ter companhia. Mais uma vez, precisa resistir ao desejo de prolongar sua estada ali, como fez com o pastor, pois sabe que no fim virão a amargura e o arrependimento. De qualquer modo não é justo. Salvar a vida de alguém para depois decidir onde e como ele irá vivê-la – é o mesmo que salvá-la pela metade.

Ilano não recebe bem as palavras da feiticeira. Ele a ama, diz, sem saber quantos homens fizeram o mesmo ao longo dos séculos que dura a maldição. Ele fala sem saber que em sua voz ecoa a dos amantes mortos. Cunala insiste que ele vá, ameaça-o com seus encantos e até com sua ira, mas tudo que consegue é que se ajoelhe e implore que o deixe ficar, ainda que como um simples escravo. Então ela decide contar sobre o pastor de ovelhas, e o faz num tom sussurrado que a cada momento se torna mais áspero.

O mar escurece através das janelas enquanto ela murmura: o homem antes de Ilano foi o que mais falou a seu coração. A feiticeira deixou que ficasse, porque pensava ter achado um jeito de mantê-lo ali para sempre. A cada quarto de lua, mandava-o ficar na superfície, oculto nas proximidades da Cova de Cunala, alimentando-se das oferendas que levava consigo. Depois, voltava para ela, que o fazia beber um elixir a fim de preservá-lo da velhice. E assim viveram juntos muitos e muitos anos.

-- Então, ele começou a ter saudades de casa – sussurra a feiticeira. -- Lembrava-se dos pais, chorava por tê-los abandonado, e seu coração se afastou de mim. No entanto, muito tempo havia se passado; ele se converteria num ancião assim que se afastasse de minha magia. Eu lhe disse isso, mas mesmo assim ele partiu, e eu não pude impedi-lo. Não sei o que aconteceu, mas... se ele voltou à sua aldeia... deve ter sido apenas para morrer nos braços de homens e mulheres que poderiam ter sido seus netos.  

Ilano engole em seco, mas mesmo assim insiste em ficar. Não precisam ser anos; que seja uma lua, um quarto de lua, o tempo que Cunala decidir. Ela pensa na solidão que a aguarda quando ele se for, dias e noites sem outro som que não os ruídos do mar, sua cama vazia, mas disso mesmo consegue fazer sua fortaleza: ela é capaz de passar por tudo outra vez. O que não quer é reviver sua história com o pastor, nem que aconteça a Ilano o mesmo que a ele, ou ainda que se arrisque a acabar como alguns dos outros – e antes que se traia, revelando aquilo que, por monstruoso demais, decidiu guardar só para si, Cunala endurece suas palavras e seu coração.

-- Nem mais um dia. Eu me cansei de você – diz ela. Usa seu poder para fazê-lo acreditar que é verdade. Escorraçado, o jovem mal consegue erguer os olhos cheios de dor, e assim permanece enquanto a feiticeira põe em seus ombros a pele de uma ovelha deixada na gruta pelos devotos. Não torna a oferecer dinheiro e joias, porque estão na sala dos tesouros e ela a evita o mais que pode na proximidade da lua cheia, mas lhe dá um odre de vinho e alguma comida para levar na viagem. Dentre os súditos fiéis, convoca os que podem sair à superfície, seres com pinças e duras carapaças, e ordena que escoltem Ilano pelo túnel de terra que dá acesso à cova em Pedra do Abutre.

-- Perto dali passa um rio que se encontra com o mar, e deve haver barcos. Entre num deles e siga sua vida – diz Cunala. – Não olhe para trás.


(Continua... Voltem dia 24/3 para ler o final!)

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Até a próxima!

quinta-feira, março 10, 2022

A Feiticeira do Mar (Primeira Parte)

 Pessoas Queridas,

Hoje começa o projeto "Um Mês, um Conto", idealizado pelos amigos Paloma Bernardino e Luca Creido. Vários autores irão postar contos de fantasia divididos em três partes, e as postagens serão divulgadas pelo instagram do projeto.


Minha participação se dá com um conto (até agora) inédito, passado na Antiguidade. Espero que gostem!


A Feiticeira do Mar 

(Parte 1)

 

O sonho é o mesmo, noite após noite. Cunala está em seu palácio, no salão onde se erguem montes de joias sobre as quais ela rasteja. O metal lhe fere a pele, e a feiticeira se debate, sem saber se este é apenas mais um pesadelo ou uma daquelas noites das quais desperta em agonia, nua sobre uma pilha de ouro sangrento.

Para seu alívio, o dia a encontra na câmara de nácar que lembra o interior de uma concha. Ao lado está o desjejum trazido por seus súditos, fruto de diferentes sacrifícios. O deles próprios, seres do mar, que ofertam a carne de seus semelhantes, e o dos homens e mulheres da superfície, que temem sua ira e querem apaziguá-la. Eles lhe trazem animais da terra, além de grãos, azeite e vinho deixados numa gruta. Na lua cheia, a maré carrega as oferendas, e por isso o lugar é chamado de Cova de Cunala: seu principal local de devoção, ligado à sua morada por um túnel escavado na rocha. Pois sob o Grande Mar há inúmeras portas, embora poucos, até hoje, as tenham atravessado.

Entre as ondas e os seres do mar, a feiticeira vive em silêncio.

Ela contempla sua imagem num espelho de prata. Tem traços delicados, a pele ainda mais translúcida em contraste com os cabelos negros. Seus olhos refletem a cor do mar, e hoje eles lhe dizem que uma tempestade se aproxima. Isso traz um sorriso a seus lábios: Cunala ama as tempestades. Não as provoca, exceto quando algum navegante é tolo o suficiente para incorrer de verdade em sua ira, mas raramente as detém, por mais que a gente da superfície lhe dedique oferendas. O que ela faz é deixar que os ventos soprem, que as ondas quebrem sobre os barcos e os atirem contra os rochedos, que seus destroços sejam arrastados para as profundezas. Quanto aos homens... Qual deles não sabia dos riscos, quando entregou seu destino aos caprichos do mar?

As águas se agitam, percorridas por uma vibração que ela sente ao deixar o palácio. A tempestade começou, e a feiticeira quer estar lá, dançar nos turbilhões, ouvir o bramido das ondas e o uivo do vento. Não quer perder um só momento do espetáculo, por isso busca uma corrente marinha e se impulsiona até a superfície, onde um rochedo acaba de cobrar seu tributo a um barco mercante. Os destroços passam diante dos olhos de Cunala: primeiro as ânforas em que levavam a carga, depois madeiras e remos, restos de corda e velas feitas em trapos. Por fim, os homens. Estes costumam ser pesados, mas demoram a chegar ao fundo porque resistem, lutam para voltar à superfície e ao que resta do barco. Alguns conseguem, talvez acabem sobrevivendo à tempestade; outros tornam a afundar e se debatem até perder as forças. Então sobrevém uma estranha calma, e é quando eles se entregam ao mar e se deixam conduzir numa última viagem.

Os homens colhidos pelas ondas neste naufrágio ainda não aceitaram seu destino. Cunala os vê em meio a redemoinhos de espuma, clamando aos deuses por misericórdia enquanto suas bocas não se enchem de água. Nesse momento nada mais importa, o barco, os bens, todas as coisas levadas pelo mar. Eles nem percebem quando a feiticeira sobe numa rocha, embora – quem sabe? – talvez, num último momento, a visão da mulher de vestes esvoaçantes fique para sempre gravada em suas pupilas.

Cunala se põe de pé e ergue a cabeça. O vento uiva em seus ouvidos; as ondas batem contra as rochas, molhando seus pés e salpicando-lhe o rosto com água salgada. A feiticeira ri, ergue os braços e grita para a tempestade, trazendo uma chuva de raios que se abatem sobre o mar. Eles atingem o mastro, naquele destroço de barco que teima em se manter à superfície, e os homens que ainda estavam lá são precipitados para o meio das ondas. É quando a voz de um deles rasga o céu.

-- Ó Mãe! – é o que ele grita, e poderia ter usado qualquer das línguas faladas no entorno do Grande Mar: não é à sua própria mãe que se dirige, e sim à Mãe Primordial que vive em todas as mulheres. Muitos homens a invocam, mas raramente o fazem com tanta força, com tanto fervor. É isso que atrai a atenção de Cunala para esse náufrago.

Num impulso, ela mergulha e nada em direção ao barco. Ainda não viu o rosto do homem, mas sabe que deve salvá-lo. Ele tenta voltar à superfície, e em seus esforços gasta o ar que tem nos pulmões, por isso está quase inconsciente quando Cunala o alcança. Ainda consegue vê-la, arregalar os olhos cheios de espanto, mas em seguida eles rolam nas órbitas, e isso a faz saber que cada instante passou a ser precioso.

Ela se concentra, convocando os súditos mais próximos enquanto sopra no rosto do náufrago. Uma bolha de ar se cria ao redor da cabeça do homem, permitindo-lhe respirar até que possa ser levado para a superfície e deixado num ponto em que as ondas não tornem a arrastá-lo. Era o que Cunala pensava ao socorrê-lo: pouparia sua vida, pelo amor da Mãe que vive no mar, mas o deixaria entregue ao destino, para que outros homens ou deuses se apiedassem dele. No entanto, o corpo que ela segura nos braços é jovem e forte, e o rosto envolto pela bolha lembra o de alguém que não pode esquecer, de forma que, no fim, a feiticeira não consegue ignorar o apelo. Os súditos que chamou não questionam a ordem, e o jovem é transportado, sobre escamas e dorsos brilhantes, até as profundezas do mar.

Na antecâmara do palácio, outros servos estão a postos para despir o náufrago e enxugá-lo com panos de lã. Depositam-no numa cama em outro aposento e partem em silêncio, enquanto a feiticeira murmura os encantos que irão induzi-lo a um sono profundo. Assim ela poderá ver melhor, ou ao menos contemplá-lo por algum tempo antes que acorde e fale com ela, sabe-se lá em que língua, sabe-se lá se com medo, ou raiva, ou ímpeto de fuga. Também que indague sobre o barco ou sobre os companheiros, pois as respostas que Cunala tem para lhe dar não são alegres.

Ela se pergunta se ele é responsável por eles, o que tornará as coisas ainda mais difíceis. As pistas são contraditórias: ele parece jovem demais para ser o capitão, mas suas roupas não eram as de um simples marinheiro. Suas mãos são fortes, mas não grosseiras. O rosto é bonito, com traços bem desenhados e queixo forte, o cabelo castanho-escuro é cheio de cachos. Cunala se pergunta de onde vem – Hispânia, Cartago, Oriente --, e então decide que não importa. De qualquer forma ele lhe agrada, e ela fará com que a deseje e permaneça ao seu lado. Desta vez, porém, não será como foi com a maioria dos outros – e pensando nisso ela consulta o calendário de conchas que mantém sobre uma pedra, perto de onde repousa o jovem resgatado. É o seu jeito de contar os dias, marcados pela alta e baixa das marés: para cada um, uma concha alinhada sobre a pedra lisa, e quando somam vinte ela sabe que em breve será lua cheia.

-- Sete dias – diz, em voz alta. É o tempo que terá ao lado desse belo jovem, e não é muito, portanto ela não deve desperdiçar um só momento antes de despertá-lo. Para isso, usa os lábios duas vezes: primeiro, murmurando o encanto que irá tirá-lo desse estado suspenso, e em seguida, quando ele já franze a testa e flexiona os músculos, beijando-o no canto da boca. Ele abre os olhos, que logo se arregalam, cheios de surpresa, diante da mulher e da câmara com paredes cobertas de conchas nacaradas.

-- Eu estou... – pergunta, mas em seguida junta as mãos diante do peito. – Não acredito, não pode ser... Você é Cunala!

O nome sai de sua boca com uma forte carga de medo, mas também veneração. Isso a faz saber que ele é hispânico, descendente dos povos antigos da península, e não de helenos ou fenícios, que dificilmente saberiam quem é a feiticeira do mar. Ela o acalma, assegura que nada lhe fará de mal, e depois de algum tempo o temor recua o suficiente para que o jovem recobre a fala.

(Continua... Voltem dia 17/3 para ler a segunda parte!)

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Até a próxima!

quinta-feira, fevereiro 17, 2022

Primeiro Conto do Ano e Entrevista no Leia Novos BR

Pessoas Queridas,

Até que enfim estou de volta! Já estava passando da hora de espanar as teias de aranha... 

Este ano começou a todo vapor, com a produção de um conto de fantasia urbana (logo, logo ele aparece por aí) e a publicação de uma coletânea, organizada pela incansável Lu Evans, que traz um conto curto meu passado na Antiga Índia. Quem se interessar pode lê-lo aqui. Também estou preparando uma surpresa grande para breve, com a Editora Draco... Aguardem!


Por ora, quero convidá-los a ouvir o episódio 24 do podcast Leia Novos BR, no qual fui entrevistada. Vocês terão a oportunidade única de testemunhar (ainda que apenas com os ouvidos, e não com os olhos) e incrível transformação que se operou durante a minha visita à antiga Livraria da qual são funcionários Carol Vidal e Caio Henrique Amaro. :) 

Espero que curtam - e que este ano seja melhor para todos nós.

Beijos pra vocês!