quarta-feira, dezembro 30, 2020

Minhas Leituras Favoritas em 2020 - Nacionais

 Pessoas Queridas,

Aqui estou de volta para o segundo post das leituras do ano. Desta vez, serão os nacionais, usando o mesmo critério: em ordem de leitura, não necessariamente de preferência. Até porque são obras muito diferentes umas das outras, que provocaram vários tipos de reações e reflexões. Mas o prazer de lê-las foi enorme em todos os casos. Vamos lá?



 Guirlanda Rubra, de Erick Santos Cardoso

Como ele mesmo afirma, o livro de estreia do editor da Draco levou quinze anos para ser concluído. E valeu a pena! O Erick soube contar uma boa história dentro de um universo de fantasia diferenciado, que tende para o capa-e-espada e para a Idade Moderna mais que para o medieval e agrega várias referências de forma natural, não forçada. É também um romance de formação, mostrando a jornada e a evolução de Garlando, um herói relutante, presa de um Dom que não desejava e movido por um amor idealizado. Recomendo muito!



Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior

 O vencedor do Jabuti (merecidíssimo!) foi o primeiro livro que li ao se iniciar a quarentena. A ambientação e a construção dos personagens são impecáveis, a crítica social é inserida de forma precisa, e o melhor de tudo? Itamar conta uma história envolvente, que prende você e te faz querer saber o que acontece a seguir com aquelas irmãs, com aquelas pessoas, com aquela comunidade. Quem não leu, faça a si mesmo um favor e leia, é realmente muito bom.



Ana de Corona, de Gisele Mirabai

Sabem aquela escrita que conversa com você? Aquele jeito de contar uma história que parece te envolver, aqueles personagens absolutamente críveis, aquele protagonista com quem você se identifica? Esse livro traz isso. Foi escrito no início da pandemia, quando se sabia muito menos que hoje sobre o Covid-19 e não se podia prever quando e como as coisas se resolveriam, portanto o desfecho fica na conta do hopepunk. E a gente precisa de mais obras como esta da Gisele. 


Porém Bruxa, de Carol Chiovatto

Delícia de fantasia urbana que li com o pessoal do Clube de Leitura Espalhe Fantasia. Trata-se de uma investigação de crimes em São Paulo, misturando magia e... bom, e crime mesmo. A protagonista e narradora é muito bem construída, o livro traz muita diversidade e representatividade e uma trama ágil, bem encaixada no momento atual. Super vale a pena


Lágrimas de Carne, de Fernanda Castro

Não é um romance, é uma noveleta, mas não poderia deixar de estar na lista dos favoritos do ano. Partindo do folclore e das crenças do sertão brasileiro, Fernanda construiu uma mitologia toda própria, com criaturas fantásticas que são, ao mesmo tempo, absoluta e dolorosamente críveis em sua humanidade. E contou uma história de fazer sangrar o coração. Não deixem de ler, porque é maravilhoso. 

***

Eu esperava terminar o ano contando algumas novidades, mas acho que as postagens de 2020 vão ficar por aqui. Em janeiro, não demorarei a falar um pouco da produção do segundo semestre, em retrospectiva, e se tudo correr bem terei boas novas.

Espero que o mesmo se dê para todos nós, não apenas no campo profissional e da produção -- embora fazer boa arte importe, sempre! -- mas também em todos os outros aspectos de nossas vidas. Que venham as vacinas e o controle da pandemia, que a gente possa sair e se reencontrar, ainda que com cuidados, porém sem medo. Que vidas e dignidade sejam preservadas e que voltem os abraços. 

E que todos estejamos lá para celebrar. 

Até o ano que vem!

terça-feira, dezembro 22, 2020

Minhas Leituras Favoritas em 2020 - Estrangeiros

Oi, Pessoas Queridas! Tudo bem? Após um longo hiato -- sim, fiz muita coisa, só não consegui registrar aqui! -- enfim reapareço para um ritual levado a cabo há mais de dez anos: falar um pouco sobre os livros cuja leitura mais me agradou nos últimos meses. 

 Notem que não se trata de "resenha" nem de apreciação crítica, no sentido de seguir parâmetros estabelecidos. Também não quer dizer que eu não tenha gostado de outras obras que li nesse período. Essas foram as que me deram mais prazer, conversaram mais com as minhas ideias, minha memória afetiva, me instigaram mais a criar... Enfim, as que se destacaram dentre as minhas leituras, lembrando que este foi um ano sui generis. Não tenho o registro do que li antes de 17 de março (que ficou na minha agenda do trabalho), assim como também não anotei as várias dezenas de contos que li no formato Kindle, quase todos nacionais. E, como as anotações foram bem corridas, não sei o quanto isso reflete a totalidade de leituras. 


 De qualquer forma, aqui vão, em ordem de leitura, meus favoritos do ano, começando pelos estrangeiros.

 
Circe, de Madeline Miller 

 Tal como no ano passado, o primeiro em ordem cronológica também foi o favorito do ano. Traduzido por Isa Próspero, lido e comentado com o grupo de leitura "Espalhe Fantasia" (por isso a leitura foi ainda mais prazerosa!), o livro conta em primeira pessoa a jornada de heroína de Circe -- sim, aquela mesma, a feiticeira das lendas gregas -- mostrando sua complicada relação com a família, seus amores, seu exílio, a maternidade, a descoberta do poder mágico, que passa pela descoberta da própria voz. Criticada por seu pai, Hélio, o titã que era senhor do sol, a voz de Circe é um elemento importante nessa narrativa -- para mim, o símbolo do poder da mulher, que começa a se impor quando ela ousa erguer a voz e se fazer ouvir. Recomendo a todo mundo, goste ou não de mitologia; se gostar e conhecer um pouco, a leitura será duplamente prazerosa.

 
O Urso e o Rouxinol, de Katherine Arden 

Já comentei sobre ele em postagem referente ao grupo de leitura, embora não tenha sido uma das obras que lemos em conjunto. O primeiro de uma série para jovens e adultos, muito bem ambientado na Rússia medieval, com uma heroína destemida que transita entre seres mágicos -- duendes, inclusive, o que é sempre um bônus -- e humanos absolutamente imperfeitos (e verossímeis), este livro, repleto de peripécias e reviravoltas, me fisgou e me deixou cheia de ideias para futuras histórias. Ainda não li as continuações (a primeira já está comprada), mas certamente está na minha lista para o ano que vem.

 
Changeling, de Victor Lavalle 

 Um livreiro negro, sobrevivente de complicado drama familiar, se casa com uma bibliotecária. Tudo vai bem, eles acabam de ser pais, quando uma súbita mudança no comportamento da esposa desencadeia eventos estarrecedores. O pai é levado a empreender uma jornada pelo lado sombrio de Nova York, e ao mesmo tempo visitar o que se esconde em seu passado, desvendando todo um mundo oculto a fim de -- talvez -- recuperar aquilo que mais ama. Não poderia recomendar mais esse livro, principalmente àqueles que gostam de fantasia urbana. E a tradução de Petê Rissati é muito boa.

 
Memórias de Porco-Espinho, de Alain Mabanckou 

Minha primeira leitura do autor congolês, que aqui envereda pelo realismo mágico (presente inclusive em referências trazidas por um personagem europeizado) e pelas lendas africanas, mostrando o relacionamento entre um feiticeiro e o porco-espinho que é seu "duplo" animal. Parte da história é bem enraizada na realidade local, visível a todos (embora as perspectivas possam diferir), outra parte transcorre dentro de parâmetros só compreensíveis dentro daquela cultura. Não foi uma leitura fácil, mas me intrigou e encantou.

 
Os Saqueadores, de Tom Cooper 

 Vamos de livro realista para concluir -- mas que livro! Vários personagens complexos, com histórias que vão do simples ao delirante, buscam sobreviver nos pântanos da Louisiana, conspurcados por um derramamento de petróleo: desde o rapaz inteligente que tenta se conformar com a morte da mãe e a perspectiva de uma vida de luta e pobreza até o velho que vai às últimas consequências para encontrar o tesouro perdido do pirata Jean Lafitte. O fim, ao menos para alguns, é a celebração do recomeço, ou pelo menos da resiliência. Venha passear no bayou! 

***

Bom, pessoal, essas foram as minhas melhores leituras estrangeiras em 2020. Imagino que alguns livros sejam conhecidos de boa parte de quem me acompanha, mas acho que nem todos. Agradeço comentários e sugestões para 2021! 

 Até breve, com as leituras nacionais!

quinta-feira, julho 23, 2020

Primeiro Semestre de 2020 : o que rolou


Pessoas Queridas,

O ano já passou da metade, um ano diferente que ficará para sempre em nossa memória. Infelizmente, não de um jeito legal. Isso, porém, não significa que paramos de nos relacionar, de produzir, de fazer boa arte e de compartilhá-la, como é vital acontecer em tempos difíceis.
Deixo aqui um pouquinho sobre meus trabalhos que vieram à luz este ano, esperando que os próximos apareçam quando as coisas já estiverem melhores.




Terror na Amazônia. Já no início do ano saiu essa bela coletânea da Pará.Grafo, que traz vinte histórias de terror, horror e fantasia dark ambientadas nas florestas, vilas e cidades amazônicas. Algumas são ambientadas no presente; outras, como a minha, no passado, já que voltei ao século XVIII para contar uma passagem perdida da Viagem Filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira, mas... posso garantir que algumas questões trabalhadas ali continuam atuais.




Depois da Quarentena Organizado por Rosana Rios, este livro reúne poemas, contos e crônicas sobre o que nos espera após o confinamento. No meu caso, foi quase uma autoficção, o que eu imagino que pode acontecer e o sentimento que irá me acometer diante disso. Outros trabalhos puxam mais para o fantástico e/ou são mais otimistas. Aposto que os leitores vão gostar.




Simplesmente Más. Esta coletânea organizada por Lu Evans e Ale Dossena mostra mulheres malvadas – ou, em alguns casos, simplesmente duronas, como é minha protagonista, a Vovó Nevasca. Numa localidade possivelmente situada na América do Norte, num futuro de cores distópicas, ela acolhe três órfãos, e mantê-los alimentados e em segurança é... bom, uma tarefa nada fácil.




Tempo de Dragões. Os amigos do Núcleo de Literatura e Cinema André Carneiro abriram essa seleção, e eu adorei escrever a história de Yolanda, que administra o palácio do governo de Flândria e de repente se vê às voltas com as idiossincrasias de um hóspede: o Embaixador de Skamandra. Os outros contos do livro trazem uma grande variedade de estilos: humor, romance, suspense e às vezes uma mistura de tudo isso.


Cyprien retratado por Hidaru Mei


E não pensem que me esqueci de Athelgard...! Nos primeiros meses do ano postei uma história sobre a visita de Cyprien de Pwilrie à recém-fundada Escola de Artes Mágicas. Está em várias partes no blog do Castelo das Águias e pode ser lida de graça, como vários outros contos e artigos publicados lá.




Por fim, quem quiser me conhecer melhor, conferir algumas das minhas opiniões sobre o ofício da escrita e o mercado editorial pode procurar a coluna Na Mesa do Escritor, no blog Ficções Humanas; ou ainda acessar esta entrevista que dei para o Café Pós-Moderno, ou esta live, no canal do escritor e professor Saymon César.

Espero, em todos os casos, que vocês gostem do que irão encontrar. E que depois me digam!

Abraços, e até a próxima! 


domingo, julho 12, 2020

#Espalhe Fantasia : O Urso e o Rouxinol

Pessoas Queridas,

        Nossa campanha #EspalheFantasia entrou numa nova fase, e nela cada participante irá compartilhar uma obra do gênero que o tenha encantado, de preferência leitura recente.


       Eu saltei logo pra dizer: vou falar de O Urso e o Rouxinol, de Katherine Arden. E falo por vários motivos. Primeiro, por ser uma fantasia muito bem escrita, dirigida principalmente a jovens adultos, mas sem cair na tentação de simplificar demais o texto ou enchê-lo de coloquialidades próprias de hoje. Segundo, por se passar na Rússia medieval, que é um lugar encantado e foi caracterizado com mestria. Terceiro, por remeter aos contos de fadas que eu tanto adoro, quarto por ter uma heroína muito bacana e quinto porque... DUENDES!

       Sim, duendes! Os Reinos Invisíveis ocultos em solo eslavo são riquíssimos e ainda hoje muito presentes no imaginário popular; imaginem só naquele tempo. As pessoas eram cristãs, mas, tal como na Irlanda e em outros lugares muito mágicos, sua fé era permeada pela crença e pelo convívio com o Povo Pequeno, com todas as bênçãos e maldições que eles podem trazer. O livro está repleto não apenas de domovoi, dos quais a maioria das pessoas ouviu falar (aqueles que moram embaixo do fogão), mas também de duendes que vivem em lugares como o estábulo e a casa de banho, fadas do rio e criaturas ligadas às árvores. E ainda dois irmãos misteriosos, lendários, possivelmente terríveis, com os quais a jovem Vasya, herdeira e catalisadora de antigos poderes,  tem de se envolver a fim de proteger sua família.

       Por falar em família, tanto os parentes de Vasya quanto os demais personagens são bem caracterizados, com personalidade e modos distintos. Destaque para a madrasta (fiquei com pena, sinceramente, apesar de ela não ser uma boa pessoa), para o sacerdote (humano demais, coitado) e para o irmão Sasha, que espero encontrar no próximo livro, A Menina na Torre. Ainda não comprei; pelo que li, se passa em Moscou e é mais realista. Como tenho o primeiro em papel, acho que vou esperar para comprar o segundo junto com o terceiro, quando este for lançado no Brasil.

       Enfim, O Urso e o Rouxinol me trouxe várias horas de leitura envolvente, uma trama emocionante e cheia de reviravoltas envolvendo criaturas fantásticas, e deixou um belo gancho para os próximos volumes. Ainda que não seja tão fã de duendes quanto eu, se você gosta de mitologia e folclore e de histórias medievais, acho que esse livro irá te encantar também.

     Até a próxima, e não se esqueça: seja onde e como for, #EspalheFantasia! O mundo precisa voltar a ter esperança.

terça-feira, junho 23, 2020

Duendes : vencedor do Prêmio Le Blanc

Pessoas Queridas,

No dia 20 de junho aconteceu a live que anunciou o Prêmio Le Blanc, organizado pela ECO/UFRJ e pela UVA - Universidade Veiga de Almeida.

Após os votos populares terem determinado os finalistas, um júri técnico ligado a cada área entrou em ação. Foram premiadas várias categorias de quadrinhos, tirinhas, trabalhos de animação e, ainda, o melhor romance e a melhor coletânea de Literatura Fantástica publicados em 2019. Eeeee...


Sim! Duendes levou o prêmio!

Quero agradecer muitíssimo ao Erick e ao Raphael, da Editora Draco, aos autores que colaboraram com o livro e aos apoiadores que o adquiriram no Catarse, bem como a todo mundo que leu, divulgou, resenhou e se interessou de alguma forma. A vitória é de todos esses e não apenas minha.

Para os que quiserem assistir à cerimônia, conhecer os outros vencedores e me ver pagar mico online, a live está disponível no Instagram.

Aqui, uma prévia do livro, com seu interior e alguns trechinhos dos onze contos, no site do Omelete

E como eu seu que você gostou e vai querer comprar, aqui vão os links para a obra no site da Editora Draco e na Amazon.

Espero que vocês gostem, e... Ai, como estou feliz!

terça-feira, junho 02, 2020

Sonethos dos Profetas, por Evandro von Sydow


o nome deste rio é Maranhão
em Minas coração de Minas se
te causa isso estranheza lembra
o nome desta pedra é sabão


Assim meu amigo de décadas, Evandro Von Sydow, inicia seu livro de sonetos em homenagem aos profetas de Congonhas. E que livro, senhoras e senhores! Além do trabalho delicado de poeta, que é também professor de Literatura, Evandro o faz acompanhar por suas fotos, umas em cores, outras em preto e branco – fotos que ele já gostava de tirar nos tempos em que, adolescentes, fomos juntos a Minas e caminhamos por aquelas cidades e paisagens antigas.

Evandro é autor de outros livros, marido de Camila e pai de um menino lindo chamado Dante. Mora no Rio de Janeiro e será um dos primeiros que eu vou convidar para tomar um café, quando as tempestades passarem.

Agora, meu convite é para que conheçam o trabalho dele, disponível no blog-revista virtual Escamandro

quinta-feira, maio 14, 2020

Na Mesa do Escritor : Coluna no Blog Ficções Humanas

Pessoas Queridas,

Venho contar pra vocês uma novidade muito legal: estou responsável por uma coluna do blog Ficções Humanas, aquele das resenhas e dicas literárias incríveis!


O convite foi feito pelo Paulo Vinícius, e a ideia é compartilhar um pouco da minha experiência como escritora e organizadora de coletâneas. Os assuntos serão os mais variados, indo desde a construção de mundos e personagens até questões ligadas ao mundo editorial.

Os dois primeiros artigos já foram publicados, e vocês podem conferi-los aqui:


Apresentação

Essa Tal de Pesquisa


Espero que vocês passem por lá, deixem comentários e sugestões para textos futuros. Vou adorar!

E fiquem com a famosa "mensagem que eu deixo para meus leitores"...



Até breve, aqui ou no blog Ficções!

sábado, maio 09, 2020

Das Páginas Perdidas de um Bestiário



A criatura nasce em cativeiro, numa jaula de ossos. Dentro desta, para alimentá-la, um coração, do qual irá começar por roer as beiradas, e que, se for frio e consistente o bastante, irá bastar até que chegue à maturidade. Ali ela crescerá, de preferência em segredo: os criadores que deixam seus espécimes à mostra têm menos chances de sucesso. Sabendo disso, a maior parte deles escolhe o anonimato, acabando por se converter em seres tão sombrios e ensimesmados quanto suas criaturas.
O escuro é preferível, assim como o silêncio. Luz e alegria tendem a irritar e inibir os pequenos seres, embora, à medida que crescem, eles se tornem mais resistentes. Perto da idade adulta, já não importa se contam ou não com um ambiente tranquilo, prosperam ainda que em meio à algazarra e ao entusiasmo, e alguns são capazes de coexistir até mesmo com a felicidade. Para que isso aconteça, basta garantir que já tenham devorado a maior parte do coração, e é ainda melhor que tenham se aninhado em seu interior, garantindo o fluxo contínuo de sangue para o interior de suas próprias artérias. Quando isso chega a acontecer, pode-se ter certeza de se haver atingido o sucesso: consumido o coração hospedeiro, em pouco tempo a criatura romperá com garras e dentes a jaula de ossos e se lançará sobre o inimigo.
Então, tudo pode acontecer. Talvez o contendor seja destruído, talvez apenas ferido; talvez saia incólume, cantarolando uma canção pelas estradas enquanto a criatura agoniza em meio ao sofrimento de seu criador. Este é sempre quem recebe o dano maior, razão pela qual não compreendo como pode haver demanda. O sacrifício me parece grande demais, sem que se tenha, ao menos, garantia do resultado.
E, ainda assim, cada vez mais pessoas se esgueiram pelas ruas, braços cruzados sobre o peito, acalentando o ódio que aos poucos lhes devora o coração.

***

Imagem: reprodução de manuscrito de Leonardo da Vinci

terça-feira, março 31, 2020

Na Quarentena : Comédia de Erros

      Após onze dias em isolamento, para fazer compras no mercado em frente de casa. Não usei luvas, porque não achei para comprar, mas estava de máscara e com o cabelo preso em coque. Pensei que estaria irreconhecível, mas mal entrei as caixas saudaram: "Oi, Ana!" "Tá sumida, estranhei!" , e o gerente "Aqui o nosso número se a senhora quiser fazer compra pelo zap". Mas o zap não garante a data de validade do queijo minas, então... a senhora entrou.

      Depois das compras - mercado bem abastecido, não muito cheio, só uma ou duas pessoas de máscara, mas dando bom espaço de uma para a outra na fila --, voltei com alguns itens de geladeira e cruzei com minha vizinha, Ana Cristina, subindo com compras pedidas por Whatsapp no mesmo mercado. Entrei, fiz todo o ritual de tira roupa/tira máscara/higieniza produto/guarda produto e estava quase no fim quando tive que me paramentar de novo e descer pra pegar minhas compras. Estava esvaziando o carrinho quando toca o interfone. Meu marido atende e o porteiro informa:

     -- Seu João, o rapaz da entrega voltou e disse que vieram umas coisas que não são pro seu apartamento.

     -- Olha, João -- eu, da porta, conferindo as compras e o nome inequívoco na papeleta de entrega: -- Eles misturaram minhas compras de produtos resfriados com as da vizinha.

      Meu marido entende e avisa ao porteiro que já vou descer. O porteiro:

      -- Seu João, ele está dizendo que "Dona Lúcia" já tinha levado seus gelados para casa.

      Meu marido informa que não, que alguns de meus itens não foram entregues. O rapaz do mercado assume a interlocução e há uma irritada troca de frases entre ele e João, que ele tentava convencer a todo custo de que eu só tinha o que devolver e não o que pegar. Mas vê lá se eu vou abrir mão das minhas pizzas e das minhas bandejas de frango. No way! Termino de esvaziar o carrinho, desço com ele e a sacola e levo cinco minutos explicando que eu tinha pegado o iogurte, sim, mas o frango e a pizza não, e que a sacola da Ana Lúcia tinha ido para a Ana Cristina, três andares abaixo. Que, avisada, desceu com meu frango e pizza e pegou seu queijo, salsichas e... as mesmas pizzas, que de relance haviam nos confundido e nos feito subir com as sacolas trocadas.

   Shakespeare escreveu ótimas peças em quarentena, mas essa é a melhor Comédia de Erros que eu sou capaz de narrar.

***

   Imagem retirada da loja online do Magazine Luiza, que está fazendo bonito neste período complicado: fez uma doação para ajudar a quem precisa e não vai demitir ninguém nos próximos meses. Porque o oceano é feito de muitas gotas. 

quinta-feira, março 05, 2020

#EspalheFantasia: Os "Quatro Esses" de Eduardo Massami Kasse

Pessoas Queridas,

Dando sequência ao projeto #EspalheFantasia, estamos divulgando livros e autores nacionais que escrevem no gênero.

Série Tempos de Sangue
O autor que escolhi é um parceiro de trabalho de longa data, que eu tenho orgulho de também chamar de amigo: o Eduardo Massami Kasse, autor da série Tempos de Sangue e da saga Vikings, além de contos e roteiros de HQ, sempre publicados pela Editora Draco.

Eduardo é paulistano, nascido no bairro da Liberdade (o sobrenome e os olhos puxados já entregam!) e trabalhou a maior parte da vida com TI. De 2009 pra cá, no entanto, ele vem se dedicando à escrita de livros e contos de fantasia – e é tão disciplinado e persistente que nestes 10 anos concluiu, entre outros trabalhos, uma incrível série de fantasia histórica. Trata-se da Tempos de Sangue, que conta com nada menos de cinco livros e vários spin-offs publicados em e-book, além da HQ “A Teia Escarlate”.


A série gira em torno de Harold Stonecross, inglês que vive em tempos medievais e se torna imortal. Não como o Highlander, mas por meio de um dom que ao mesmo tempo é uma maldição. Em sua jornada, ele conhecerá outros que partilham do mesmo destino, fará aliados e inimigos e passará por muitas aventuras, em cenários extremamente bem apresentados e verossímeis. Isso porque o Eduardo é um mestre da pesquisa histórica e tem grande facilidade para levar seu leitor a visualizar e a se sentir dentro das cenas que ele descreve.

Psiu! Psiu! Aqui tem conto do Kasse!

Eu, que tive o prazer de fazer o copidesque da maioria dos seus livros, costumo dizer que o trabalho do Kasse tem quatro “esses”: sexo, sangue, suor e sujeira. De fato, a Idade Média é pintada por ele em suas cores mais cruas, o que faz de seus livros um prato cheio para quem gosta de uma fantasia histórica mais hardcore. Isso se aplica não apenas à série Tempos de Sangue, mas à saga Vikings, seu trabalho mais recente, aos quadrinhos e também aos contos.

Falando nisso, nós dividimos a organização da coletânea "Medieval", que venceu o Prêmio Argos de melhor coletânea em 2017, e o Kasse participa de várias outras. Inclusive da minha mais recente, "Duendes", com um conto ambientado no universo Tempos de Sangue.

Assim, se você curte fantasia medieval do tipo realista e quiser ler uma boa história à qual não faltem os "quatro esses", conheça o trabalho do Eduardo. Seus livros estão à venda no site da Draco, na Amazon e em outras livrarias, mas não deixe de visitar seu site pessoal, onde o autor apresenta a si mesmo e à sua obra.

Garanto que vale a pena!

segunda-feira, fevereiro 10, 2020

#EspalheFantasia : Adaptações Literárias

Pessoas Queridas,

Nossa segunda proposta, neste projeto #EspalheFantasia, é falar sobre uma adaptação. Acho que a maior parte das postagens será sobre livros que deram origem a filmes; eu, porém, desde o início decidi fazer o caminho inverso e falar um pouco mais detalhadamente sobre o livro que mais me encantou no ano passado, O Labirinto do Fauno, escrito por Cornelia Funke a partir do filme homônimo de Guillermo del Toro.


Todos aqui já devem conhecer o filme, não é? Foi lançado em 2006, tem imagens impressionantes, desde o próprio fauno (que foge um pouco à estética mais comum, aquele cara simpático de barbicha com pernas de bode, como Mr. Tumnus e o amigo de Percy Jackson; o do Labirinto é ameaçador, cheio de violência contida, algo demoníaco) às criaturas do subterrâneo, em especial o Homem Pálido, aquela figura sinistra cujos olhos estão nas palmas das mãos. Mesmo nas partes que se passam no “mundo real”, o ambiente é sombrio, cheio de estranhezas: estamos numa floresta remota, na Espanha franquista, e as feras de duas patas que transitam por lá são piores do que qualquer outra.

Na adaptação para a literatura, Cornélia Funke usou bastante essa analogia com feras, em especial o lobo, ao qual é comparado o Comandante Vidal. Essa é uma ponte brilhantemente construída pela autora com os contos de fadas, uma fonte na qual o filme de Del Toro ia buscar inspiração constante, tanto pelo visual – os contos tradicionais da Europa costumam ter essa atmosfera de penumbra, essa proximidade de bosques e florestas – quanto pelas referências e pala própria jornada empreendida pela protagonista, a menina Ofélia. Funke, ao escrever, deu um passo além, não apenas por fazer suas referências de forma mais direta, mas também por inserir na história o que ela chama de “interlúdios”: contos curtos, referentes aos personagens que habitam o subterrâneo, cujas histórias pregressas afetam os acontecimentos presentes. Esses contos nos revelam, por exemplo, de que forma o Homem Pálido está ligado à Igreja – isso foi afirmado por Del Toro, mas não é colocado explicitamente no filme --, antecedentes da história de Ofélia e até mesmo de seu padrasto, Vidal, o lobo de duas patas. Também contribuem para criar a sensação de maravilhamento que não se esgota quando a ação regressa ao tempo presente; pelo contrário, ela acompanha o leitor ao longo da trama e o faz perceber com mais clareza o que criou as distorções na mente de Vidal, o que move os revolucionários, o absurdo e as contradições da própria guerra. E o que no filme já era sentido, ou ao menos pressentido, aqui se traduz em palavras cheias de uma beleza perturbadora.

Guillermo Del Toro é mexicano e, embora seu filme seja uma co-produção do México, Espanha e Estados Unidos, fez questão de que fosse gravado em espanhol (o norte-americano Doug Jones, que interpreta tanto o Fauno quanto o Homem Pálido, aprendeu as falas em espanhol, por isso a dublagem de seus personagens ficou perfeita). Cornelia Funke é alemã e, pela primeira vez, escreveu seu livro em inglês. Eu li em português e tive muita sorte, pois a tradução de Bruna Beber é excelente, e a edição da Intrínseca é primorosa. Como escritora de fantasia, bibliotecária e pesquisadora de contos de fadas, só tenho coisas positivas a dizer sobre esse livro, que recomendo a todos, quer tenham visto ou não O Labirinto do Fauno. Porque lê-lo é uma experiência diferente -- e, no mínimo, tão boa quanto assistir ao filme.

Vamos lá?

#EspalheFantasia

quarta-feira, fevereiro 05, 2020

#EspalheFantasia : Por Que Ler Fantasia?


      Pessoas Queridas,

      É com prazer e muito orgulho que iniciamos a campanha #EspalheFantasia. Como o nome já diz, essa é uma ação orquestrada no sentido de conquistar mais e mais leitores para a fantasia – essa vertente muito especial da Literatura Fantástica, onde as coisas acontecem segundo regras próprias e em que percorremos o texto com o fôlego suspenso e os olhos maravilhados.



       Existem muitas razões para ler fantasia, e elas vão além do próprio prazer da leitura, que pode ser proporcionado por todos os gêneros da ficção (e pela não-ficção, se você gostar de obras informativas). As mais antigas obras literárias que conhecemos têm essência fantástica: cosmogonias, hinos sacros, narrativas mitológicas e poemas cujos protagonistas enfrentam monstros e desafiam a vontade dos deuses. E, embora alguns pertençam a linhagens divinas, esses personagens são quase sempre humanos, refletem as qualidades e os anseios dos leitores, que por isso se identificam, sofrem e torcem por eles. É assim que, até hoje, ler fantasia significa fazer uma jornada ao lado do herói.

      E para onde essa jornada nos leva? Outros mundos, talvez baseados no nosso, em tempos mais antigos? Universos construídos pela imaginação do autor? Ou a uma dimensão diferente, uma realidade paralela, que coexiste com o que vemos no cotidiano? Não importa: onde quer que a fantasia nos leve, ela sempre nos traz de volta, e a cada vez regressamos transformados, com uma nova energia e uma nova perspectiva sobre nossa vida, nosso mundo e como enfrentar nossos problemas. Pois isso, também, a fantasia nos proporciona: ela espelha nossa realidade e nos faz enxergar as coisas de um novo ângulo, faz aflorar aquilo que temos dentro de nós. E pouco a pouco nos tornamos os protagonistas de nossa própria história.

*****

      A campanha estará no ar ao longo dos próximos meses. Dela participam escritores, blogueiros, booktubers e instagrammers literários, falando de temas específicos, fazendo resenhas e sugestões de leitura, sempre no gênero fantasia. Se você quiser participar das postagens, entre em contato com um de nós, listados abaixo (preferencialmente a Brena Gentil ou o Paulo Vinícius). Se quiser apenas divulgar a campanha, basta compartilhar com a hashtag #EspalheFantasia.

Vamos à jornada?

                                                                            *****

Participantes (até o momento)


Ana Lúcia Merege (claro), neste blog e no Instagram Ana Merege.

Brena Gentil  : blog Et Survive e Instagram Et Survive

Paulo Vinicius F. dos Santos:  Blog Ficções Humanas , Insta Ficções Humanas , Página Ficções Humanas

Natália Rocha : Insta Fantástico Mundo Literário, Página Fantástico Mundo Literário

João Victório Bevilacqua : Insta Queria Aquele Livro, Canal JVSB no Youtube

Clecius Alexander Duran : Crônicas da Lua Cheia, Insta Clecius Duran

Luis Henrique Bonaventura : Nerd Geek Feelings e Insta Luis Henrique

Fabiana Ferraz : Página da Fabiana e Insta da Fabiana

Julianne Vituri : Insta da Julianne

Celly Nascimento Insta Me Livrando

domingo, janeiro 26, 2020

Três Países


        Vivemos em três países diferentes. Isso me ocorreu quando esperava na fila da padaria. À minha frente, um homem de meia-idade, calvo e de bermudas, discorria para um amigo mais novo sobre os indiscutíveis avanços do governo federal, tudo de bom que os ministros vêm fazendo e como em apenas um ano o Brasil já cresceu tanto que caminha para se tornar uma potência. O problema é que a imprensa, vendo-se privada das tetas em que mamou durante tantos anos, só divulga notícias falsas, de forma que o senhor na fila da padaria não sabe como as pessoas ainda compram jornais e assistem à televisão. Ele mesmo se informa através de um jornal online que é o único realmente conservador, parece até que certo filósofo autoproclamado é um dos colunistas. De qualquer jeito, a coisa vai tão bem que em breve os opositores do governo perderão qualquer oportunidade de virar a mesa, principalmente se o governo for reeleito. Depois de quatro anos, a imprensa não terá mais como esconder a verdade, e a aprovação popular será tão grande que aos canalhas só restará calar a boca.

        A mim, que geralmente não me calo, naquele momento achei que fosse o mais prudente, inclusive por educação. Não conheço, portanto não me cabe opinar sobre o país onde vive aquele senhor; no meu os ministros só cometem barbaridades, quisera fosse apenas contra a língua pátria, e, se o Brasil caminha para algum lugar sob essa direção, não tenho a menor dúvida de que é o abismo. Mas não havia de ser eu a discutir com o estrangeiro, naquele momento exaltando a inteligência e o preparo de um famoso jurista egresso do sul. Restou-me voltar as costas e conversar com a senhora que esperava na fila atrás de mim, e assim falamos sobre as vantagens e desvantagens de adicionar ovos ou linguiça à farofa, e concordamos em discordar, e nos despedimos sorridentes, sem que eu soubesse – e nem queria saber – se  vivemos no mesmo país ou se ela habita a mesma terra que produz pessoas de bem, tais como aquele homem de meia-idade, calvo e de bermudas.

         E o terceiro país? Ah, é aquele em que vivem as pessoas que estavam do lado de fora, esperando que concluíssemos nossas compras para pedir que, com o troco, lhes pagássemos algo para comer. Mas esse é um país que quase ninguém enxerga.  

quarta-feira, janeiro 01, 2020

De Palavras e Rotinas

      Acordo tarde no primeiro dia do ano, e a primeira pergunta que me faço é: continuo contando as palavras?

      Não entendam mal. Não estou praticando a austeridade ou coisa do tipo. As palavras a que me refiro são as escritas; contá-las é uma prática de vários autores, que adotei desde 2017. Naquele ano eu escrevia furiosamente as histórias das gêmeas de Cartago, então foram quase 100.000 palavras a mais que no ano seguinte, e o que acabou ontem foi muito próximo do anterior. Deve ser essa a média mesmo, em torno de 180.000 por ano, se tudo continuar como está: um pouco de escrita espremida nos dias de semana, entre o transporte e o trabalho diário, duas ou três horas produtivas no sábado, outras tantas no domingo, se não houver nenhum evento e se eu seguir uma rotina cuidadosamente planejada. Seus passos: acordar antes de todos na casa, não ligar a TV durante o café da manhã, sentar logo em seguida para escrever e, se for no laptop, não olhar a Internet em hipótese nenhuma. Às vezes ainda dá para reverter a situação se abrir só o e-mail, mas se for rede social a escrita já era. Fim da história.

     Chamei isso de rotina, mas me parece mais ser um truque, um artifício que eu uso para me concentrar. De qualquer jeito, funcionou, inclusive nesta manhã do primeiro dia do ano: acordei tarde, como disse (passava de oito e meia), fiz café e uma torrada, olhei pela janela, pensei em sair para dar uma volta, decidi que mais tarde iria com meu marido (mas fez calor demais e não fomos), tomei café com torrada, pensei em ver um filme antes que ele ou minha filha acordassem e fossem jogar videogame, pensei em me rebelar – hoje vou descansar e não escrever! --, dei risada dessa simples ideia, me levantei para ligar o laptop, mas antes de chegar ao escritório lembrei que tinha um caderno em branco e tinha decidido estreá-lo nesse primeiro de janeiro.

      E como eu sou uma autora que está tentando se disciplinar, sentei à mesa e comecei a escrever as primeiras páginas do caderno, as primeiras do dia, as primeiras do novo ano.

      E como eu sou uma pessoa de hábitos, decidi que vou continuar a contar as palavras.

      Só aqui, neste primeiro post  de 2020, foram 394.

      Feliz Ano Novo!