O primeiro conto do projeto nos leva até a Cartago do século IV a. C. Ali, Balhazar de Tiro (que meus quatorze leitores e meio devem conhecer) foi adotado como avô pelos filhos de seu antigo ajudante, Sikkar, sobrinho do rico negociante Aníbal, o Achacoso. Ele visualiza um futuro para a família longe de Cartago, especialmente para as gêmeas Nikka e Jeza, a quem conta histórias do seu passado com a clepsidra mágica... e com alguém de quem nunca foi capaz de se esquecer.
A ilustração foi pedida a Sheila Lima Wing, que tem um traço limpo, bem legal para ilustrar histórias para crianças ou jovens. E aqui vai uma confidência: estou escrevendo histórias da Nikka e da Jeza um pouco mais velhas. Espero que vocês gostem e deixem muitos comentários!
-- Ei, vocês, podem parar! Aonde as gatinhas sorrateiras pensam que vão?
Balthazar cruzou os braços e fez cara de mau. Pegas em flagrante, as gêmeas se deram as mãos, faces vermelhas num primeiro momento, para explodir em risadinhas logo a seguir. O fenício também riu. Atravessando a sala, sentou-se num divã, próximo à janela, e chamou as garotas para junto de si.
-- Sua mãe está fazendo seu irmãozinho dormir – explicou, pela terceira ou quarta vez, apontando a escada. -- Não é para vocês irem lá em cima.
-- Ah, Avô Baltha, a gente só queria ver ele. É tão gordinho e fofinho – disse uma das gêmeas, apertando as próprias bochechas.
-- E a gente não iria fazer barulho. Tiramos até as pulseiras – disse a outra, estendendo os braços.
-- Eu sei, mas ele fica agitado quando vê vocês, mesmo que estejam quietas. Sua mãe precisa de tranquilidade, e sua aia está ocupada, então vamos ficar um pouco aqui embaixo, certo?
-- Certo, mas a gente pode brincar? – perguntou a menina. Balthazar concordou, e ela olhou com malicia para a gêmea antes de prosseguir. – Adivinha quem eu sou: a Nikka ou a Jeza?
-- Hum... Deixe-me ver. – Enrolou a barba branca entre os dedos, fazendo-as rir: o Avô Baltha era um ótimo parceiro de jogos. – De manhã me disseram que Nikka estava de verde e Jeza de lilás. Mas vocês podem ter trocado uma com a outra nesse meio-tempo, não podem?
-- Podemos. – As vozes iguais, os dentes como gotinhas de leite, um deles faltando. Até os dentes elas mudam ao mesmo tempo, pensou o capitão.
-- Bom, não sei se trocaram de roupa, então... Já sei: levantem o braço direito. Aaaargh! Podem baixar, já vi que as duas vão precisar de um bom banho daqui a pouco!
Com isso, as crianças se puseram a rir, uma apenas divertida, a outra gargalhando tanto que teve de segurar a barriga. Essa devia ser Jezabel, que chamavam de Jeza, sempre disposta a uma brincadeira. A outra, mais comedida, era Nikka, apelido de Nikkal. Se bem que ele tinha um jeito infalível de saber, bastando olhar a trancinha discreta, quase escondida entre os cachos negros da gêmea risonha. Aquilo fora feito em segredo por Núria, a aia siciliana, enquanto as duas dormiam – e não fora descoberto, nem refeito por dedinhos de sete anos no cabelo da irmã mais séria.
-- Bom, vou arriscar. Você, que não para de rir, é a Jeza – disse Balthazar, sem querer deixá-las ganhar todas as vezes. – A outra é a Nikka. E vocês não trocaram de roupa. Acertei?
-- Acertoooou! – Jeza se atirou para a frente, caindo nos seus braços e o beijando na face antes de subir no divã.
-- Como você descobriu? – Nikka o olhou desconfiada.
-- Ah, eu conheço vocês – disse ele, evitando revelar o truque da siciliana. – Mesmo vivendo em Alexandria e vindo poucas vezes a Cartago, conheço o jeito de todos os meus netos.
As palavras saíram de seus lábios com facilidade. Ele conhecera o pai e a mãe daquelas meninas quando bem jovens, e, com o tempo, passara a amá-los como se fossem do seu sangue. Agora tinham sete filhos, e Balthazar se sentia um avô de verdade, gostava de aconselhar os rapazes mais velhos e de brincar com as crianças. Estava encantado com o novo bebê. Em tudo e por tudo, por mais que anos atrás isso parecesse impossível, aqueles cartagineses tinham se tornado a sua família, e isso o ajudava a aplacar a dor de tantas perdas.
E, ainda assim, às vezes ele tinha que achar maneiras de extravasá-la.
-- Bom, venci o jogo – disse, sorrindo para as gêmeas. – Agora, quem quer ouvir uma história?
-- Eu! – gritaram as duas.
-- Uma história do Lísias – disse Jeza, como Balthazar esperava que uma delas fizesse. – Mas não uma das tristes, em que vocês viram escravos e são chicoteados ou coisa assim. Conte uma engraçada.
-- Qual? A do Epaminondas?
-- Não, a do cachorro não. A do camelo Menelau – propôs Nikka.
-- Ah, essa também não – disse Jeza. – Conte uma nova, Avô Baltha!
-- Uma nova? Acho que já contei todas.
-- Invente uma – replicou a menina.
-- Não posso. Essas histórias não são inventadas.
-- Aníbal disse que sim – teimou Jeza. – Que o Lísias existiu, claro, mas era só um escravo que viajava com você. Não houve nada dessas histórias de clessipidra.
-- Clepsidra – corrigiu Balthazar. – Seu irmão diz isso porque é um cabeça-dura, igual ao velho tio de quem herdou o nome. A clepsidra era real. Lísias e eu viajávamos com ela para o passado e para o futuro. Já contei como a conseguimos?
-- Eu sei! No templo do deus egípcio! – exclamou Nikka.
-- Não, não. Você está misturando as coisas. A clepsidra era de Thoth, o deus egípcio de cabeça de íbis, mas nós a pegamos num templo dos helenos. Do deus do mar, que eles chamam de Poseidon. Então, estávamos na ilha de Ebusos...
Foi em frente, contando como um estranho sacerdote egípcio o contratara para roubar a relíquia, como eles tinham feito para descobrir o encanto da viagem no tempo e como Lísias o usara pela primeira vez, tirando-os de cena em meio a um ataque de piratas. Enfeitou a narrativa para ressaltar a bravura de Sikkar, o pai das meninas, embora não tivesse visto como ele se saíra em combate. Tudo que sabia é que ficara vivo e negociara sua liberdade e a dos companheiros remanescentes, paga por seu tio Aníbal, que era o dono do barco. Isso naquela outra linha da história, a linha em que Balthazar não retornava de suas viagens. Por que, no fim, tinha escolhido um caminho diferente? Essa pergunta o acompanhara por um bom tempo depois de voltar a Cartago.
E só mais tarde – bem mais tarde – ele conseguira entender.
(Continua... Mas, para quem ficou curioso, dá para ler, aqui mesmo no blog, a história do Camelo Menelau.)
Sigam para a Parte 2!
9 comentários:
Oi Ana!! Que delícia acompanhar um projeto assim! Adorei te descobrir no canal da Lu evans, seu livro está me ajudando no meu TCC sobre contos de fadas e agora quero conhecer todo o seu trabalho!! Bjs e sucesso!
Puxa, muito obrigada! Com esta série você conhecerá vários dos meus personagens. Se curtir, comente e divulgue, isso ajuda muito. Beijos!
Que texto leve e limpo!!! Adorei as meninas e a história dos piratas é aquela mesma da coletânea, não?
Gostei muito do texto! Como a Claudia disse, está muito leve.
Me deu aquele gostinho de mil e uma noites.
E o tamanho dele está ótimo, para um blog e para crianças lerem, hehe.
Linha de história? Isso pode ser interessante (e um pouco "tricky" dependendo de como a história vai ser conduzida)! Só posso especular aqui que aconteceu alguma viagem no tempo que mudou o futuro, masvou tentar segurar minha tendência Whovian de sair especulando sobre as coisas... hehe.
A Jeza e a Nikka estão mais novas na história? Muito fofo o momento avô-netinhas! Logo, logo vou conhecer o camelo Menelau também, o texto já está no meu Kindle.
Beijinhos Alados ♥
Oi, Sheila, sim, nessa história elas têm sete anos e na série de livros começam com 13. O bebê que aparece aí pequenininho já tem seis anos na série e se chama Hanon, como o navegador de Cartago. :)
Muita coisa pode ter acontecido, há um grande mistério envolvendo Lísias! Mas isso só vai saber quem acompanhar as três fases da série.
Claudia, é o mesmo Balthazar, que se refere às viagens que ele fez com a clepsidra (e Lísias). O conto de Piratas conta como a adquiriram. Esse conto menciona também Sikkar, o pai das gêmeas, que acabou por se tornar um dos personagens-chave da série.
Ana, amei este início, como o pessoal disse, ficou tão leve e limpo, e as meninas e o Balthazar de vovô ficaram adoráveis!!! Mas o meu coração está apertadíssimo por causa do Lísias, o que aconteceu com ele? Como você disse aí em cima, é um grande mistério, e juro para você que fiquei de olhos marejados só de ler a parte do início em que você menciona "alguém de quem ele nunca foi capaz de se esquecer". Sim, o texto é leve, mas consegui sentir toda a saudade e a nostalgia que há nessa figura mais grisalha do Balthazar, algo bem agridoce. Enfim, desculpe a falação, mas é que adoro o Lísias (sério! Mesmo, mesmo) e a parceria desses dois... e olha que nem li tudo o que há para se ler deles ainda, mas o carisma é tanto...
(E será que sai uma história com Anna e Kyara depois?)
Astreya querida, o que aconteceu com o Lísias é um grande mistério que só alguns anos à frente será resolvido! Mas não esquente, ambos estão felizes com o que escolheram... e sabem esperar! :)
Quanto à sua última pergunta: que dúvida? :) Sexta-feira elas estarão por aqui. Espero que continue conosco! :)
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