sexta-feira, junho 23, 2006

D de "Doidinho"

Oi, Pessoas! Tudo bem?

O quarto post da série Memórias de Leitura será, certamente, mais curto e menos revelador que os demais. Isso porque, enquanto os livros aos quais se referiram os primeiros três foram tão importantes a ponto de influenciar meu trabalho como escritora, aquele do qual vou falar hoje foi apenas um livro que gostei muito de ler. Que li diversas vezes. Que me levou a outras leituras e me introduziu num universo até então desconhecido.

A obra da qual estou falando é Doidinho, um dos romances do ciclo da cana-de-açúcar de José Lins do Rego e a continuação do seu livro de estréia, Menino de Engenho. Neste, o protagonista, o menino Carlos de Melo – Carlinhos, em família – vai viver com seu avô, o Coronel José Paulino, dono do engenho Santa Rosa e, de certa medida, também de seus moradores. No segundo, encontramos o mesmo Carlos, um pouco mais velho mas ainda menino, enfrentando outra comunidade de opressores e oprimidos: o Instituto Nossa Senhora do Carmo, mais conhecido como “o colégio do Seu Maciel”, onde ele se torna um dos alunos internos e recebe o apelido algo cruel de “Doidinho”. À exceção de umas férias passadas no engenho do avô de Carlos, toda a ação do livro transcorre dentro do colégio, cujo cotidiano é hábil e dolorosamente dissecado pelo narrador. Da péssima comida (que não tinham o direito de recusar) aos piolhos de que todos estavam contaminados, dos banhos de cuia aos “bolos” de palmatória, do professor autoritário ao colega de hábitos perversos, cada ação, pensamento e sentimento de “Doidinho” se revelam para o leitor como um nervo exposto. E alguns de seus companheiros são tipos dignos de figurar numa Comédia Humana.

Recentemente li uma crítica segundo a qual “Doidinho” é um dos melhores livros a retratar a realidade da juventude e da educação no Brasil; que as situações e personagens são tão verossímeis que, mesmo após muitas décadas, muito do conteúdo permanece atual. Isso, para mim, é um fato: enquanto Sérgio e seus colegas do “Ateneu” ficaram no século XIX, os meninos e rapazes de “Doidinho” quase poderiam ser “transportados” para um cenário moderno, guardadas as diferenças de linguagem (seriam tantas assim?) e suavizados, um pouco, os métodos pedagógicos. Para o protagonista, vindo de um meio rural e do espaço aberto, o confinamento no ambiente e na sociedade do Nossa Senhora do Carmo é uma ruptura e um pesadelo – e o abismo se torna ainda maior quando Carlos confronta sua realidade com a que lhe é apresentada em “Coração”, livro de Edmundo de Amicis que, já tendo sido apontado como substituto do manual escolar, era lido também pelos alunos de Seu Maciel. Nele, a escola era boa, amigável; os mestres eram sábios e dedicados; os próprios estudantes eram alunos e crianças quase perfeitas, aquilo que “Doidinho” jamais teria condições de vir a ser. Sua fuga, no final, de volta ao engenho do avô representa a desistência de seguir aquele modelo, de se deixar moldar, a ferro e fogo, tão dolorosamente como o amigo “Coruja”; no entanto, ao contrário deste, obrigado a “mudar de lado” e se tornar bedel para prosseguir os estudos, o neto do Coronel José Paulino encontrou (ou teve quem lhe encontrasse) uma outra saída, já que, em romances posteriores como Bangüê e O Moleque Ricardo, ele aparece devidamente bacharelado como o “Doutor Carlos de Melo”.

Da primeira vez que li “Doidinho”, lembro, eu tinha oito anos de idade. Menos que o suficiente para entender o xingamento de um dos colegas de Carlos (filho da quê? Mãe, o que que é p***?) mas o bastante para que a explicação (incompleta, claro) não me satisfizesse. Como não me satisfaço com pouco, em breve li também o Menino de Engenho, depois O Moleque Ricardo e Fogo Morto, e essas foram minhas primeiras incursões no universo do romance regionalista nordestino. Não muito mais tarde, as obras de Rachel de Queiroz e Graciliano de Ramos viriam se somar à minha percepção desse mundo e de sua sociedade, e tardiamente viriam outros como Suassuna; mas, embora admire a todos esses, os livros de Zé Lins continuaram ocupando um lugar especial. Vai ver que é porque eles foram os primeiros... ou porque ele conta histórias tão bem quanto sua outra protagonista, a Velha Totônia. Vai-se saber?

De qualquer forma, a leitura de “Doidinho” foi um prazer repetidamente saboreado na minha infância, o qual eu não podia deixar de registrar aqui. Infelizmente, a edição da década de 60 da José Olympio, com a capa esfrangalhada e papel amarelado, já não está na minha, nem em nenhuma outra estante “real” da família. Que a memória fique, então, na Estante Mágica. Vale a pena guardá-la.

Abraços a todos,

Até a próxima!

Ana Lúcia

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