Pacientíssimas Pessoas,
Duas semanas, um feriado, uma virose, uma aula inaugural e 210 repetições do “Carta de Capistrano” separam este post da sua primeira parte. O tempo continua curto e os deveres são muitos, mas no meio do corre-corre consegui reservar uns minutos para passar por aqui e, conforme combinamos, falar do lado mais interessante da minha vida de Barnabé.
A parte mais criativa e prazerosa do meu emprego tem a ver com o fato de eu poder exercitar o que considero minha verdadeira vocação: o trabalho com a palavra, tanto escrita como falada. Possuir essa habilidade (vamos combinar que esse é o caso) e, principalmente, gostar de exercê-la são por si fatores diferenciais em relação a meus colegas, a maioria dos quais não gosta de falar em público e não tem facilidade para produzir textos. Por outro lado, assim que cheguei à Divisão de Manuscritos, achei que aquele acervo maravilhoso precisava ser mais difundido para o grande público, e comecei a trabalhar nesse sentido. No início foram pequenas mostras, na nossa sala mesmo, que mais tarde ganhariam o corredor. Com o respaldo da minha chefe, da chefe da chefe e assim por diante, as exposições foram se tornando mais elaboradas, passando a incluir peças de outras Divisões, que eram sempre apresentadas como parte de um contexto e não como simples “curiosidades”.
Guardei todos os folders com textos de apresentação e todos os cartazes dessas mostras, algumas das quais chegaram a ser noticiadas em jornais e revistas. Quinto do Ouro, que tratava da administração colonial, deve ter sido a que fez mais sucesso, mas a menina dos meus olhos é inegavelmente A Escrita no Tempo, datada do ano 2000. Como o nome já diz, ela tratava da evolução da escrita, e contava com Livros de Horas e obras raras. Foi a única a ter um orçamento, a ganhar um banner do lado de fora da Biblioteca e a ocupar o saguão de entrada. A montagem foi feita pelo pessoal da casa, mas a seleção de peças, pesquisa, textos e legendas foram da minha exclusiva competência. É claro que fiquei muito orgulhosa com isso e cheia de planos para novas exposições, mas meus dias de curadora não-oficial estavam para acabar. É que esse período foi realmente muito criativo, em todos os sentidos... e assim, nove meses depois, eu tive que me afastar para dar atenção a esse pequeno/grande projeto que se chama Luciana.
Quando regressei da licença-maternidade, a Biblioteca Nacional tinha passado por uma reforma. Haviam sido criados um auditório e um espaço para exposições, essas realmente institucionais, com curadores de fora, pessoas contratadas para escrever os textos, firma especializada para montar e grana para bancar. Claro que nós, funcionários, colaboramos (e muito) nas pesquisas, mas a tendência é, cada vez mais, nos tornarmos “carregadores de piano”. Ainda assim, as exposições setoriais continuaram, e continuam, apesar das restrições de espaço. Aqui na sala, no momento, temos apenas uma vitrine com quatro peças de acervo; mas elas estão lá, com legendas bem explicativas, acompanhadas de um texto escrito por mim. Outros textos surgem aqui e ali, para a homepage da Biblioteca, para catálogos, para releases. Não é muita coisa, é verdade. Mas foi toda a minha prática de escrita ao longo de um ano e meio de bloqueio no campo da ficção.
E agora, que estou escrevendo bastante, publicando artigos e livros (em grande parte graças ao incentivo dos visitantes deste blog!) e precisando de lugares para divulgar meu trabalho, conto com o público da Casa da Leitura, onde se realizou pela primeira vez o curso sobre Contos de Fadas e onde estou, este mês, ministrando um sobre Organização de Bibliotecas Escolares. Os alunos comentam que transmito muito entusiasmo pela leitura e pelos livros em geral, e também que tenho boa-vontade, sou simpática... o que deve ser a maior razão pela qual sou sempre convocada para acompanhar visitas na Biblioteca. Podem ser os VIPs da Library of Congress, a Susan Sontag ou uma turma de estudantes... Nove em dez vezes, quando há visitas na Divisão, Merege está aqui para recebê-las!
Essa é uma parte muito gratificante do trabalho, já que posso me dirigir diretamente aos leitores e transmitir um pouco do que sei. Visitas oficiais, vindas do Gabinete, não são tão legais, porque em geral a agenda está apertada e é preciso falar muito rápido. Pesquisadores, por sua vez, são especialistas, e eu sou uma generalista, gosto de falar em termos amplos para um público mais leigo. Seguindo o mesmo raciocínio que uso ao montar as exposições, sempre mostro as peças do acervo dentro de um contexto, e quase sempre dou um jeito de falar um pouco sobre História do Livro ao mostrar nossos códices medievais. Se o grupo estiver interessado, nosso papo vai longe... e eu saio cansada, mas satisfeita, com aquela sensação gostosa que fica quando se partilha uma história.
Estou na profissão certa? Acho que sim. Mas às vezes surgem questionamentos sobre estar ou não agindo corretamente, brincando de Coiote com coisas tão sérias. Uma vez, por exemplo, recebemos uma turma de segundo grau de uma escola particular (e caríssima) a quem, como de hábito, mostrei os tais livros medievais. Eu os folheei sem luvas, porque estas atrapalham meu tato (antes que me crucifiquem, devo dizer que muitos especialistas acham melhor não usar). Acontece que, entre os alunos, havia um garoto que, depois de exibir seus conhecimentos durante toda a minha explicação, comentou que havia morado nos Estados Unidos, e que lá aprendera que é preciso usar luvas para tocar em acervo raro. Argumentei da forma descrita acima, e ainda tentei brincar dizendo que tinha tomado banho no sábado, mas ele foi inflexível: E os óleos da mão?
Bom, nesse ponto, creio que a maioria das pessoas teria parado para pensar naquilo, reavaliado suas atitudes, tido enfim uma crise de consciência sobre seus deveres para com a preservação do acervo, esse juramento de Hipócrates livresco do qual eu acabava de ser lembrada por aquele brilhante rapaz. Mas tudo que eu fiz foi dar esse meu sorriso cheio de dentes e perguntar, em tom de confidência:
- Vem cá: você leu, ou viu, O Nome da Rosa? Já pensou em quantos monges devem ter lambido o dedão e tacado em cima dessas páginas? Não é o óleo dos meus dedos, aliás recém-lavados, que vai destruir esse pergaminho... né?
Com isso, é claro, a turma caiu na gargalhada, a professora inclusive, e até o mala sorriu, embora tenha sido um sorriso meio amarelo. Mas a avaliação que recebi dessa visita foi a melhor possível. E eu aposto, ou pelo menos gosto de pensar que, de todos os barnabés que viram aqui na Biblioteca, nenhum ficou tanto tempo quanto eu na memória desses jovens.
.......
Esperando que vocês também não me esqueçam,
Abraços a todos!
Até a próxima!
Ana Lúcia
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