-- Amigos... Olhem... Calma, por favor, tenham muita calma – disse Hanno, suando frio. – Eu vou embora, está bem? Vou só buscar minha avó e...
-- A avó – rosnou um dos nativos, deixando ver um par de presas crescentes, de tamanho respeitável. – Ele vai buscar a avó. Deixamos?
-- Deixamos. É a do cabelo branco, que falou com Halva – disse o outro.
-- Ah, Halva. Sim. Vá depressa, então – disse o das presas, brandindo a ferramenta. – Depressa!
-- Sim, eu... eu vou. Já estou indo. Até a vista! – exclamou Hanno, e se afastou a passos rápidos. Ganhou alguma distância antes de olhar por sobre o ombro e ver que outros nativos tinham saído da floresta e se juntado à dupla. Não o seguiram, mas ele podia sentir os olhares cada vez mais ameaçadores, e foi com o coração aos saltos que retomou o caminho do acampamento.
Um coro misto de balidos e ruídos guturais, que pareciam urros, chegou a seus ouvidos, vindo provavelmente da aldeia dos carsísios. Hanno apressou o passo, assustado, mas antes de mais nada preocupado com a segurança de sua avó. Para seu alívio, Elyssa surgiu logo adiante, acompanhada por Solônio, os dois parecendo tranquilos, alheios à nova sonoridade do cântico ou a qualquer mudança nos arredores.
— Ah, veja, aí está o rapaz! – exclamou Solônio. – Ele parece ter perdido a noção do tempo… ou será que o estava aproveitando com alguma garota?
— Se bem o conheço, aproveitou foi para tirar um cochilo – disse Elyssa.
Hanno olhou para o rosto da avó e enxergou além daquela expressão irônica: um brilho de triunfo nos olhos, sinal de que as coisas tinham ido bem, mas, ao mesmo tempo, uma apreensão traduzida pela boca contraída e pelas rugas na testa. Talvez houvesse notado alguma coisa. Ele ia contar o que descobrira e, sobretudo, alertar sobre o que acabara de ver, mas ela se antecipou, tomando seu braço e se dirigindo à trilha que ia dar no campo de pouso.
— Já achei meu neto, mas, por favor, acompanhe-nos um pouco mais – disse Elyssa a Solônio. – Explique a ele os termos do acordo que acabamos de firmar.
— Firmou o acordo com a Caríbdes? – surpreendeu-se Hanno. – Mas… deve ter sido com outro valor, certamente…
— Um crédito equivalente a mil e trezentos talentos de prata em favor da Liga Mercantil de Medistelara. O Comandante já expediu a ordem, e de qualquer forma tenho as cópias assinadas e seladas do acordo formal. O pagamento está garantido, haja o que houver.
— E o acordo sofreu uma pequena modificação – disse Solônio, que não prestara atenção à última frase. – A Liga Mercantil se compromete a não iniciar qualquer exploração em Carsis ou negócios com os nativos durante oito anos – um pouco menos do que nós queríamos, mas é aceitável –, e sua avó pediu a inclusão de uma cláusula segundo a qual essa parte do acordo será anulada se a Caríbdes se retirar do planeta sem deixar nenhum representante. Ou seja, se ela abandonar o empreendimento.
— E vocês aceitaram essa cláusula? – indagou Hanno.
— Sim, porque essa situação é altamente improvável. Diria quase impossível, tendo em vista que somos heládicos, insistimos e lutamos até o fim. Sua avó pensa em termos ken´ami, calculando o lucro imediato e o caminho mais fácil. Se me perdoam a franqueza.
— Ah, é claro que perdoamos. Vocês são os heróis do Aglomerado – disse Elysa, ácida. – Mas isso não significa que não tenhamos qualidades.
— Oh, não, não, não! Pelo contrário! A senhora mesmo, conseguindo cem talentos a mais, a redução no prazo de exclusividade… Confesso que não esperava que o comandante fosse aceitar.
— E, mesmo assim, ele riu quando pedi a cláusula. Pois bem, senhor mestre de leis. – Deteve-se, já diante do campo de pouso, onde podiam avistar a Balthazar-5. – Antes de nos despedirmos, ouça a voz da experiência e não desfaça aquela sua mala. Nunca se sabe quando será preciso viajar de repente.
O heládico piscou, sem entender, mas agradeceu o conselho. Um novo coro de urros e balidos soou ao longe, e com isso os dois ken´ami se apressaram a se despedir e a rumar para a nave, cuja rampa de embarque já tinha sido baixada para recebê-los.
— Tudo certo – disse Elyssa, dirigindo-se aos tripulantes na ponte de comando. – Podemos nos preparar para entrar em órbita. Ah, e assim que possível enviem uma mensagem ao escritório central da Liga para confirmar a entrada de um crédito em nossos cofres. Mil e trezentos talentos de prata.
— Bom, agora você vai fazer o favor de me explicar tudo – Hanno desabafou, retendo-a pelo braço. – Já tinha feito os cálculos, é isso? Tive trabalho à toa?
— Hanno, Hanno… Tenha calma, menino. Deixe sua avó descansar. – Sentou-se numa poltrona giratória e abriu uma bebida energética feita de tâmaras. – Eu tinha lido os relatos nos Anais da Liga. Sabia da existência das eras astronômicas. Mas só quando íamos para o acampamento e vimos o calendário no marco de pedra é que notei uma discrepância, que me fez pensar num lapso de alguns dias entre um e outro período.
— E, já naquele momento, concluiu que haveria uma Era do Leonte? – insistiu Hanno.
— Bom, a posição deste planeta sugeria que o Leonte poderia ser visível nesta época, mas eu não tinha certeza, nem sabia se os nativos iriam considerar esses dias como uma Era. Fico feliz que você tenha chegado a essa conclusão – acrescentou, com orgulho —, porque, se a sacerdotisa não houvesse me explicado tudo, seus cálculos seriam fundamentais para confirmar minha teoria.
— Sacerdotisa? Halva? Como você sabia…?
— Ah, uma mulher de idade com um colar daqueles devia ter algum poder, ao menos conhecimento. Eu perguntei diretamente, e ela não teve receio de me contar, pois viu que não concordo com as maneiras daquele Comandante. A Era do Árion termina em algumas horas, e entra a do Leonte, quando os nativos vão rugir e mostrar as garras. Alguns já devem estar começando, aliás – os mais jovens e sensíveis, segundo disse Halva. Logo, a transformação vai se estender a todos, e eles vão pôr fim à tirania dos heládicos.
— Pôr fim? Então eles pretendem…? – Hanno deixou a pergunta no ar.
— O quê, matá-los? Em princípio não, porque eles mudam de temperamento, mas não perdem a consciência. Mesmo agressivos, serão capazes de falar e esperar algumas horas até que os heládicos se retirem de Carsis; é o que vão exigir, e não tenho dúvidas de que conseguirão.
-- Será? Os heládicos têm militares com eles, devem ter muitas armas...
-- É verdade, mas já faz um bom tempo que os carsísios vêm se preparando para a nova Era. Árions são mansos, mas não são tolos! Como serviçais, eles têm acesso ao acampamento e até ao Bucéfalo – e nestes últimos dias, sem que os heládicos percebessem, neutralizaram todas as armas e acabaram com seu poder de fogo. E eles são centenas, contra umas duas dezenas de engenheiros e militares. A Caríbdes não terá alternativa a não ser dar o fora, e eis o porquê de eu pedir a inclusão daquela cláusula no contrato.
— Para que nós, passados esses dias…
— Você não sabe mais terminar as frases? Mas sim, é isso mesmo, Hanno. Eles vão abandonar o empreendimento – sorriu Elyssa. -- E isso, segundo o contrato, equivale a abrir mão da exclusividade e da preferência.
— E aí vamos ficar orbitando o planeta, esperando que acabe a Era do Leonte – resmungou o rapaz. – E então vai ser a nossa vez de explorar os nativos.
— Explorar? Esqueceu que eles mudam de comportamento de acordo com as Eras? Com o Leonte seria perigoso até chegar perto, por isso vamos ficar uns dez dias em órbita. Quando voltarmos a Carsis, encontraremos os nativos na Era do Táurio, e Halva deixou bem claro que o negócio se dará em outros termos. Eles vão ser nossos sócios, não subalternos. E a extração do deltrílio vai ser feita pelo processo ken´ami. É menos agressivo ao meio ambiente que o heládico… ou, pelo menos, é o que ensinam na escola.
Hanno a encarou com assombro e um respeito crescente. Sua avó não conseguira apenas uma compensação financeira – se fosse isso, ela jamais aceitaria tão pouco – e sim a perspectiva de um excelente empreendimento para a Liga Mercantil. Isso já bastaria para admirá-la, contudo havia mais. Ela entendera a visão dos nativos e planejara tudo de acordo com seu tempo. Agira, e agiria rigorosamente dentro do acordo, de forma que não caberiam reivindicações por parte dos heládicos. E tanto os carsísios quanto os ken´ami sairiam ganhando.
— Sim, vovó. – Elyssa franziu a testa: Hanno costumava chamá-la pelo nome. – Sobre a extração, eu aprendi na escola. Sobre o espaço e como navegar, aprendo com os mestres da Liga. Mas tenho que confessar… Há coisas que só aprendo com você.
O rosto da matriarca se enrugou num raro sorriso aberto. Hanno deslizou a mão por seus cabelos curtos e brancos, depois a pousou no seu ombro, e os dois ficaram lado a lado, em silêncio, observando o espaço pela escotilha.
A mesma pela qual, dentro de poucas horas, veriam passar a Bucéfalo a toda velocidade, movida pelo último deltrílio que os heládicos tinham extraído de Carsis.
Parte 1
Parte 2
2 comentários:
Adorei o final! A Elyssa é muito esperta :D, a minha reação e a do Hanno foram bem parecidas XD! E eu fiquei com vontade de beber o energético de tâmaras, confesso...
Muito, muito bom, Ana! Acabaram os contos dos avós? De qualquer modo, terminei todos eles com um sorrisão no rosto (e, no caso do conto do Balthazar, umas várias lagriminhas também...).
Oh, querida! Acabaram sim. Que bom que vc acompanhou e gostou deles. Vai ter muita história de Balthazar com seus netos pela frente, mas não saem tão já, receio. Por ora, serão as histórias das viagens dele com o Lísias.
Obrigada mais uma vez pelas leituras, comentários, contos, carinho, tudo.
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